sábado, 16 de março de 2019

O Álbum da Vida #2 (Matizes)


“Não é para iniciantes. Na audição, as músicas parecem simples. Mas, na hora de botar a mão, a pessoa nem sempre consegue encontrar a harmonia completa.” Djavan ao comentar o lançamento de sua, então, obra completa em songbook, maio de 2008
Djavan, giz de cera sobre canson, 07/03/2019
  
Como você mensura a importância de um álbum?  A métrica é o número de vezes em que você recorreu àquelas canções? Pode ser você se pegar analisando como ele funcionou como porta de entrada para outras nuances de algo que você julgasse conhecer? Procurei ouvir Matizes após ler uma crítica comentando sobre “compassos quebrados”. É certo, a audição deles era familiar pela incursão na obra de Lenine. A descoberta do termo, por si, talvez não justificasse o apreço, mas o todo encontrado ali, sim. Djavan chegava ao 18º álbum da carreira “ao mesmo tempo” em que eu chegava a meus 18 anos, àquela altura, eu não tinha me dado conta disso.

Djavan Caetano Viana é desses artistas: fatalmente você já o ouviu. O ato de conhecer sua existência foi com Nem um Dia, em 1996? Passando a associar a leitura de um livro com os dias frios? Talvez tenha sido em 1998, já brincando com o fato da estranheza inspiração causada por sua musa afinal, dinossauros não podem ser bonitos. Ali, naquele tempo pós-Titanic e seu glorioso VHS com duas fitas, era curioso ouvir sobre Leonardo DiCaprio numa canção (fato que a jornalista Adriana Küchler apresentou ao ator em 2016). Pode ser também que eu tivesse consciência de cantarolar a abertura da novela Meu Bem Querer.

Já em posse de um violão e tateando os primeiros acordes, uma revista de cifra me apresentou a Se Acontecer (sob os holofotes como parte da trilha de Senhora do Destino), iria seu Sol menor incidir em minha Um Conto no Jardim, dali a três anos? Talvez versos como “é segredo é sagrado está sacramentado em meu coração” seja a causa de meu “segredos, secretos, sagrados” em Para Ela. Indo além no tempo a melodia de “De amor pequeno” (2013) feita para um poema de Kariny Cristina teve como inspiração Milagreiro. Mesmo um verso da faixa de abertura de Matizes me fez escrever um em minha Efeito Borboleta. Obviamente, sem a grandeza do mestre.

A capa!

Falando um pouco do álbum em si é importante tomar as palavras de Hugo Sukman no livro A Música de Djavan , vol.03:

“Em Djavan, a música é autoral, a letra é autoral, o canto é autoral, isso é evidente. Mas autorais também são os arranjos. Autoral também é a banda, a mesma em todas as faixas, íntima do autor e não apenas por contar conter dois de seus filhos, o guitarrista Max e o baterista João Viana, mas por acompanhá-lo há quase uma década. A banda, quase que como uma extensão do violão e das ideias musicais de Djavan, é básica no baixo de Sérgio Carvalho, no piano de Renato Fonseca e colorida pelo naipe de sopros formado por alguns dos melhores solistas do país, Marcelo Martins [saxofone tenor e flauta], Walmir Gil [trompetes] e François Lima [trombone]. O violão e a guitarra de Djavan são onipresentes, mas não são mais djavânicos que o resto da banda.”

Digo isso porque o som da banda é envolvente do primeiro Em(omit3) ao último Bbm6 e todas há variações, nuances e sutilezas que, ainda hoje, pareço estar ouvindo pela primeira vez. O som é uma das chaves para a produção total do álbum e em conjunto com suas letras, por vezes crípticas, tornam um bom exemplo do que o compositor é capaz de alcançar.

            O álbum capturou minha atenção já com as guitarras em Joaninha.sua letra é repleta de versos tais “A vereda é azulada/E sofrida a solidão/Que sem chão/Faz morada no descaminho”. Azedo e Amargo traz outras imagens curiosas como “Verga esse traço/Que a induz à solidão/Deixa que um abraço/Em sua onda de calor/A revele, leve,/Apta até pra ilusão.” (Com os olhos de hoje, é interessante pensar como essa comparação entre o amargo e o azedo também surge na abertura do álbum de 2018.) Mea-Culpa, tem melodia que demonstra bem a resolução de uma tensão melódica. Ali, provavelmente por ser minha primeira incursão em um álbum do cantautor alagoano, me chamava a atenção o volume de acordes, para quem estava habituado a simplicidade do pop rock.
          
           Imposto, talvez a canção com recepção mais negativa dentre os críticos, salta aos olhos pela elegância com a qual Djavan versa sobre as altas taxas exercidas no país “IPVA, IPTU/ CPMF forever/É tanto imposto/Que eu já nem sei!...” culminando em “Pois o homem que recolhe/O imposto/É o impostor.” A recepção seria outra caso tivesse sido lançada em Vesúvio (lançado em 2018)? A letra permanece atual uma vez que termina manifestando interesse em que o voto no Congresso seja aberto, tema ainda controverso, de cientistas políticos a parlamentares até a própria população.

            Delírio dos Mortais é um samba que fala sobre os encantos exercidos pelo Rio de Janeiro, com direito a à menção à Garota de Ipanema. Ainda hoje, não estive nos locais mencionados mas a letra se encarrega de apresentar uma atmosfera de alegria e boemia. Quase como uma nova forma de constatar que o Rio de Janeiro continua lindo. Louça Fina, é uma canção da qual já discorri em 2010 (leia aqui por sua conta e risco). Matizes não apenas colocou a palavra em meu vocabulário como sua letra carrega uma imagem que nunca entendi “De puro amor/Você tentou amenizar/Aquela emoção/Apanhando uma pedra no chão.”  Como a pedra surgiu ali? Movimentos como esse surpreendem ao colocar algo trivial em meio à dois amantes que, a certa altura da canção, estão à sós. A levada de João Viana é fundamental nesta faixa que é uma de minhas favoritas do álbum. Por uma vida em paz é um exemplo de, tomando as palavras de Herbert Vianna, palavras duras em voz de veludo, Djavan fala sobre ganância, desmatamento, o papel do homem no aquecimento global, tudo à sua maneira. “Não sei bem o que dizer/Sobre o mal na Terra:/Acho que o amor hesitou!”

            As três faixas seguintes são a trilogia de amorosa desilusão (ou alegres cantares sobre o fim). Tanto Desandou, Adorava me ver como seu e Pedra falam sobre um amor torto ou que não existe. “Me diga já/O que foi que aconteceu/Você e eu/Era tão bom” ou “Não sei se alguém/Pode mensurar/O que perdi/De tanto sonho que cultivei/E Não vivi”. Passando também por “Não mais a vi, desde abril,/Fui pro mar/E você lá deitada na pedra/Que inveja dessa pedra.” Longe do que possa parecer as três faixas não são tristes, carregam aqui e ali melancolia, e, na penúltima faixa do álbum, o eu poético até arrisca falar de um recomeço “um lance novo me despertou” enquanto as outras duas se detém em narrar certo inconformismo com a situação. As canções são vigorosas, Desandou tem um riff de uma guitarra clean que permeia a faixa. Pedra é uma síntese de diversos momentos do álbum e da sinergia com sua banda. Mas é em Adorava..., a faixa entre as duas, que é possível sentir o grupo brincando no melhor momento do contrabaixo no álbum e ainda um destaque para o scat de Djavan junto à guitarra. A mixagem também é um show a parte, ao ouvir de fone é possível distinguir uma série de fraseados das guitarras de Max Viana. Essa é, junto a Joaninha e a faixa título, a minha favorita do álbum.

            Fera fecha o álbum em um momento confortável e mesmo assim, com algo de misterioso. A letra parece falar de um “quase-amor”, sem dúvida o eu-poético relata sentimentos para uma musa que pode fazer seu coração sofrer ao tempo em que afirma “E eu nem sei se você vai me amar”. Cantar o amor sempre vale a pena, mesmo quando há algo de unilateral ou projetivo no sentimento e Djavan reafirma isso mais que ninguém. A faixa é a mais longa do álbum e mal se percebe. Quase como frente ao pensamento do ouvinte que o disco não acabasse o fade nunca viesse. Podemos até colocar a hipótese de que o eu-poético da canção já começa explicando a razão pela qual os relacionamentos mencionados nas canções anteriores não vingaram: “Você é coisa demais/Que mau eu não saber lidar/Com tudo isso de uma vez”. Coisa demais? Quem sabe alguém que conserve a infinitude da via láctea e a ferocidade dos dinossauros? Uma fera que fere com amor, mesmo sem saber. Fosse tudo uma narrativa conceitual djavânica, não seria de espantar que o álbum seguinte de inéditas, Rua dos Amores (2012), começasse narrando que meio do nada, sua doce amada expôs, que ela e ele, já não eram dois. O fim também faz parte.

Página da Folha Ilustrada em 24/08/1998, para cantar junto na estreia da novela.

Trecho de Efeito Borboleta, inspirado por Joaninha, de Djavan.