segunda-feira, 31 de agosto de 2020

Tempo, da letra

"Cansado de deitar-se à luz do sol fica em casa para ver a chuva
Você é jovem e a vida é longa e há tempo para matar hoje
E, então, um dia você descobre que dez anos ficaram para trás
Ninguém lhe disse quando correr, você perdeu o tiro de largada"
Pink Floyd, Time 
No caos da ilustração:
De Mondrian à Basquiat, d'O Pensador à Clepsidra

     “Veja se interessa escrever uma letra para esse som”. Ali, a queima-roupa Bruno me colocou a proposta, ele havia trabalhado na inserção do baixo.
      Para me preparar, decidi que ouviria uma outra composição do mesmo autor, Fabrício, para tentar me situar à forma como as palavras dele se encaixavam na melodia. A canção se chamava “The Girl Who Talks With Cats” e o vídeo da apresentação datava 21 de setembro de 2011. Me lembrei de 2012 quando me deparei com Kafka à beira-mar pela primeira vez, no meio da trama do livro: um personagem conversando com gatos de forma corriqueira. Palavras. A letra que escrevi é de livre interpretação - e, assim que for acompanhada da melodia, voltarei para falar mais sobre ela - mas ela é, certamente fruto de seu tempo, a primeira letra que escrevi após conhecer as canções do musical Hamilton e suas 20.520 palavras
Acima do rascunho da letra, outra canção
Que estará no blog dia 22 de setembro!
  Há alguma ligação temporal entre esses eventos?      Vou além:
     Uma cena como essa, um jovem adulto navegando à esmo pelos corredores de uma livraria poderia acontecer em um futuro pós-pandemia quando pensamos que, no presente, o atual ministro da economia defende à plenos pulmões o fim da isenção para as editoras? Como futuros leitores chegarão aos livros? E, se, hipoteticamente, uma doação direta de livros for estimulada, quem fara a curadoria?
     É um ciclo falacioso: “se durante a pandemia as pessoas estão mais interessadas no auxílio emergencial do que no consumo de livros, logo, as pessoas preferem dinheiro à livros, portanto, daremos dinheiro agora – o mínimo possível, por favor, temos que cuidar do nosso pessoal – e, no futuro, quando der – pensamos em oferecer livros”. Agem como se as questões fossem mutuamente excludentes.
Nada disso é gratuito, claro. O estado de calamidade pode dar a impressão de que não, mas 2020 iniciou com Jair Bolsonaro afirmando em frente ao Palácio da Alvorada que “os livros hoje em dia, como regra, é um montão, um amontoado... Muita coisa escrita, tem que suavizar aquilo”. Ele falava sobre os livros didáticos distribuídos às escolas e já soava absurdo. Agora, imagine um cenário em que os livros didáticos são “suaves”, a população não tem acesso aos livros para descobrir por conta suas leituras e as fake news seguem internet a fora, vida a dentro?
    A pandemia de covid-19 ameaça destruir, junto com a vida de milhares de pessoas, culturas indígenas inteiras. E enquanto uma parcela da população vive os dilemas do isolamento, da hiperconvivência, da tentativa de sobrevivência... um recente levantamento do 
Greenpeace Brasil mostrou que, somente no mês de julho deste ano, 73% da destruição causada na Amazônia para a exploração de garimpo ocorreu em unidades de conservação e terras indígenas. Parte do país não parou, e o número de notícias é maior do que o tempo existente para checá-las e contra checá-las. Quem estiver em uma bolha que "carece de fontes" dificilmente irá se dar conta disso.
    Em nossa atual política pós-factual, ainda somos capazes de procurar e encontrar essas notícias recentes, Devemos exercitar o print-screen? como esses acontecimentos estarão descritos no futuro? O que os livros didáticos "suaves" dirão sobre o que levou Michelle a receber R$89 mil do Queiroz? 


Tempo (08.2020)
Letra: Thales Salgado

Refrão:
Taking the time
In a direction that makes it it feels mine
Mold and untwine
Every misalign until is outshined

Todos nas janelas, ouvi dizer
Todos para as janelas
Mas se o presente imitou
O passado recente
Ainda há olhos grudados nas telas

Os meus também, os meus, também
Que eu não quero perder nada

Eu vou tentar colher o tempo
Mas quanto sobrará de mim?
De um jeito que pareça meu
Moldá-lo e destorcê-lo a meu bel-prazer
Até que cada desalinho
Destes nossos caminhos
Estejam ofuscados

Refrão

Mundos proibidos vazam das penas
Apenas metafísica, um poema.
E se não temos tempo, sequer, para viver
Como esquecemos que estamos à sua mercê?
Desritmados e, por vezes, deslegitimados
De olhar os sonhos que podemos ser

Algoritmos sem verão
Algoritmos passarão
Darei vazão:
A vida é um átimo!

Refrão

quarta-feira, 12 de agosto de 2020

Concreto-confronto

"Tem que acreditar. Desde cedo a mãe da gente fala assim: 'filho, por você ser preto, você tem que ser duas vezes melhor.' Aí passado alguns anos eu pensei: Como fazer duas vezes melhor, se você tá pelo menos cem vezes atrasado pela escravidão, pela história, pelo preconceito, pelos traumas, pelas psicoses... por tudo que aconteceu? duas vezes melhor como? Ou melhora ou ser o melhor ou o pior de uma vez. E sempre foi assim. Você vai escolher o que tiver mais perto de você, O que tiver dentro da sua realidade. Você vai ser duas vezes melhor como? Quem inventou isso aí? Quem foi o pilantra que inventou isso aí? Acorda pra vida rapaz" – A Vida é Desafio, Racionais MC’s
Arte de @isabellaproencart



Concreto-confronto (2019/2020)
Música: Thales Salgado
Letra: Livre adaptação do conto Muro Mundos de Daiany Pontes

Concreto-cinza-inerte
Na cidade cinza
Onde ela resistia
A caminhar
Forçando um sorriso
Duro pela vida
Dobrando a esquina
Para enfrentar
A vizinha que lhe nega o olhar
todo o dia apressada.

Entre o preto e o branco
Tantos muros para quebrar
Mar-navio-negreiro
Quanto mais vai atracar?

Beirando o cruzamento
Rosto, um vento cinza
Vizinha não hesita a se murar
Mesmo os muros altos
A deixam perdida
Ainda não tem forças
Para escalar
De passagem para nenhum lugar
Vê as vistas cansadas

Encostou-se a um canto
Para, as janelas, divisar
Mas só viu outros muros
E a inércia a alastrar

Entre o preto e o branco
Tantos muros para quebrar
Mar-navio-negreiro
Quanto mais vai atracar?


    No ano de 2019, o foco de minha produção se concentrou no Instagram. Esse distanciamento do blog descentralizou possíveis composições e ideias, mas forçou outros desdobramentos: devido ao limite de um minuto para os vídeos do feed, decidi seguir compondo canções que se resolvessem nestes sessenta segundos.
A autora do conto que originou a letra
        Uma das canções surgiu inspirada na leitura de um conto que Daiany Pontes havia me enviado alguns dias antes. Nascida em Porangatu-Goiás, ela é atriz e poeta. Integrou a cia Âmago de teatro em Campinas-SP e hoje integra o coletivo Teatro de Pólvora. Formada na área da saúde, trabalha com cuidados de enfermagem. Cursa a Formação de atores e atrizes na escola livre de teatro Santo André e paralelamente está pesquisando a escrita voltada para dramaturgia e contos.
     Essa canção ressurgiu para mim enquanto organizava esses fragmentos em uma coletânea que alcunhei, com o perdão do trocadilho, Solo un minuto. Pensei: “será possível organizar estes minutos todos em um medley como o no lado B de Abbey Road?” mas outra ideia me tomou: a letra que eu escrevera contemplava apenas parte da narrativa. Eis que no dia 28/07/2020 tornei a ler e reler o conto e compor uma estrofe que espelhasse a primeira, mas levasse a letra à diante. No conto, que se encontra na íntegra abaixo, estão destacados trechos que utilizei na adaptação.
        O olhar de Isabella Proença traz a protagonista do conto, Aina, ao centro da história que percorre e perpassa sua carne e pele que vai tornando concreto-pedra. Os quadros retangulares me parecem um ótimo toque, dando a impressão de ser a janela de um edifício. A ilustração mescla possibilidades interpretativas para os dois textos.

MURO MUNDOS
(Daiany Pontes)

Aina caminhava pelos bairros daquela cidade observando os muros, eles sempre a impressionaram.
Dona Edith tinha um muro tão alto, o mais alto do bairro. Aina visava o muro de Dona Edith, pareava com o dela e comparava-os. O que as separava era o tamanho, Aina não conseguia vê-la de seu muro, mas ela conseguia ver a menina. Imperceptivelmente via.
Aina, ainda menina entendeu que havia algo. Seu muro era uma espécie de tablete cinza, um concreto-cinza-inerte. As piores dores nascem de cores-dias- cinza. E hoje ela reside na cidade cinza. O fato é que o muro dela era tão baixo que bastava levantar seus pés um pouquinho que já conseguia avistar a rua. Não entedia o porquê de Dona Edith nunca a ter visto. Das vezes em que elas cruzavam a mesma esquina, Dona Edith olhava fixamente seus cabelos, suas vestes e rapidamente procurava saídas para o olhar não se repetir. Saia, como se Aina não estivesse ali na sua frente.  Saia em sua pressa, como a pressa daquelas palavras que saem de um computador de escritório.
Na manhã seguinte a menina de doze anos colocou sua roupa mais bonita, encheu os cabelos de creme que escorria feito as águas do mar-navio-negreiro em suas costas. Foi, dobrou a esquina e lá estava ela mais uma vez. Olhou-a, precisava enfrentá-la. No fundo do cinza é doloroso adentrar, é um espaço de cores que há entre a cor cinza, um adentrar entre o preto e o branco.

Impressão do post original no Instagram onde compus o espelho
Na visão de lá, passos à frente. Aina não conseguia ver a trajetória e isto lhe causava espanto. Do lado de cá, passos atrás, a visão é dolorosa, a luz é forte e ela consegue detalhadamente ver todos os passos e passados. Dói. Os passos atrás doem. Estava na frente do muro cinza, inerte ao cinza. Chegara, e nos próximos passos terá que enfrentar no rosto, o vento cinza, mesmo sem saber como conduzi-lo. É. Já faz parte dela, no fundo, não há outra direção-condução a não ser enfrentar. Seu rosto está se desfazendo agora, ele vem se transformando em cinza. Coisas transformam-se.  E agora veja o rosto de Aina transformando-se em um rosto-abstrato-cinza. Ela tenta sorrir caminhando e o traço que finaliza teu sorriso, está se desfigurando. De longe a abstratividade da figura se faz larga e sorrindo. De perto, no fundo do cinza a abstratividade se mostra em uma larga e longa força para não abandonar. Aina em um estado-limite, em uma contração com a vida, em uma contração com face, que naquele momento fazia um tremendo esforço para desenhar um sorriso-face. A força usada fora tão grande naquele dia, que chegou a machucar.  Forçar se a sorrir machuca. Os olhos esbugalhados tentando manter-se enxutos. No peito-duro-pela-vida não passava nada naquele dia.
A imagem que vinha era a menina mais uma vez dobrando aquela esquina, que apontava para tantas outras esquinas. Desgovernada, estava à beira do cruzamento com os olhos dela. Queria ser vista pelos olhos de Dona Edith. Chegou de frente, na frente dela, e mais uma vez ela negou-a. Não a olhou. Passou reto, passou por ela, em cima dela.
Aina seguiu para as esquinas, que davam para outras esquinas, passava por placas que tinham letras que não conseguia ler. Estava perdida, sendo levada para um destino em que eu não sabia onde seria, mas que em algum momento teria um fim. Será? O muro é alto, teus braços não alcançam e das vezes em que tentou subi-lo. Caiu.
A queda do muro machuca. A força necessária para subi-lo, Aina não tem no momento. Muros altos ignoram-a.
Quando o ônibus virou à esquina Aina entrou, o ônibus tinha como destino, destino nenhum. Ela passou rapidamente pelo motorista que estava entediado com a manhã, acenou um bom dia e ele respondeu-a apertando os olhos, que já estavam tão cansados. Era manhã e o encontro dos olhos da menina com o dele, já mostrava cansaço. Pode? Olhos tão cansados nas primeiras horas do dia? Atravessou o corredor e encostou-se a um canto que dava para a janela. No canto, em direção, sem direção.
O ônibus seguia e chocalhava tanto a cada acelerada, que todo seu corpo estremecia em uma sonoridade-barulho-ruído, que arranhavam teus olhos.  Histórias soltas nos assentos-ônibus. No trajeto passou por tantos muros, iguaizinhos aos que dividiam sua casa. Aina seguia dentro do ônibus, com os pés fixados no chão para não cair, a paisagem-muro movimentando-se e ela procurando compreensão. Via nos passageiros-vida, olhos acostumados, inertes diante da paisagem-visão-muro

domingo, 9 de agosto de 2020

Ofício das Horas

"Acho que nós precisamos ser instigados a valorizar as nossas vidas e eu procuro fazer isso com meus textos. Costumo usar uma boa metáfora que é a seguinte: sempre que compro uma peça de roupa, todas as outras passam a ser novas também. Pois, por causa dela eu arrumo todo o guarda-roupa para potencializar as combinações e assim todas passam a ser novas. Eu penso que a crônica ou o poema são como uma nova roupa que acabam remoçando todos os nossos pensamentos." - Fabrício Carpinejar em entrevista para a Contato VIP em fevereiro de 2016

Acervo de Renato Bicudo

Ofício das Horas (2019)
Letra: Renato Bicudo
Música: Thales Salgado

No lânguido dourado
Da tarde
Nas vésperas de minha reclusa
Solidão
Estão a mirar-me anjos e demônios
Uns querem-me em vida
Outros vaticinam Caronte
Levando em minhas mãos

Eu voo lépido para as estrelas
Talvez em Vênus esteja
Minha tão aspirada
Salvação


      Conheci o poeta Renato Bicudo em uma oficina com Carpinejar. Em sua autobiografia ele menciona que "Lê compulsivamente, muito mais do que escreve" interessante saber já que, acompanhando seu trabalho, noto, por vezes, uma série de criações diárias - descontextualizando um verso de Lin-Manuel Miranda: "Como você escreve como se estivesse ficando sem tempo?". 
     Compus a melodia para o poema reagindo à sua leitura, no mesmo dia ou no seguinte a sua publicação original em 23/07/2019 e só fui mostrar ao autor uma versão rudimentar alguns meses depois. Quando ele me disse que o poema é "como se fosse uma oração, uma súplica de alguém que busca um Porto Seguro, um amor, algo assim…". Para conhecer mais sobre sua obra, é possível ler alguns poemas e comprar seu Chá de lírio (editora Patuá), aqui.
    Há sempre algum receio ao versionar - sem permissão, obviamente - as palavras de outrem. A exemplo das canções compiladas em Nada Há de Novo Sob o Sol a maioria das  composições no Ikiryou EP tem sido, de algum modo, coletivas. Por mais que, em canções como Canto de duas cidades eu escreva e componha tudo, outras como Beleza Parasita tem letra de Fabíola Passos, Tudo outro agora conta com a letra de Anderson Bezerra e Silêncio foi feita baseada em um poema de Kariny Camargo. Mais que isso, futuras postagens pautadas nesse conceito que conheci na obra Kafka à Beira-mar de Haruki Murakami seguirão essa linha, como Concreto-confronto que tem a letra inspirada em um conto da atriz e poeta Daiany Pontes.
      Um ano após a composição é difícil precisar se eu vinha ouvindo algo da banda ZERØ,  de todo o modo, sempre que canto o trecho "eu voo lépido…" me vem a voz de seu vocalista: Guilherme Isnard. Sei que, em 2020, ouvi uma série de vezes o segundo álbum da banda Quinto Elemento, lançado em 2007, antes de realizar a gravação do que veio a se tornar o primeiro vídeo do @fmodestia para o IGTV  na série "Canto no jardim" (trocadilho com uma de minhas primeiras composições Um conto no jardim) Com os créditos a meu irmão Ulysses Salgado que enquadrou e dirigiu a gravação e a minha mãe Lúcia Salgado, dona do jardim e quem confeccionou a calça que estava usando.


sábado, 1 de agosto de 2020

Canto de duas cidades

“Apesar de reflectir as preocupações do sonhador, o curso do sonho é quase sempre imprevisível. A lógica dos eventos é fluida e errática em comparação com a realidade. A sucessão de imagens caracteriza-se por descontinuidades e cortes abruptos que não experimentamos quando acordados. Nos sonhos, um personagem ou lugar pode transformar-se noutro com uma naturalidade incrível, revelando o poder de transmutação das representações mentais. O encadeamento entrecortado dos símbolos determina um tempo caracterizado por lapsos, fragmentações, condensações e deslocamentos, dando origem a camadas de significado múltiplas e até mesmo díspares. O leque de possibilidades do sonho é vastíssimo, roçando o insólito, o inverosímil e o caótico.” – O Oráculo da Noite, Sidarta Ribeiro
Arte de @isabellaproencart

Canto de duas cidades (2020)

Estava outra vez ao portão
Só para saber, se estavas bem
Tinha uma caixa nas mãos
Esperanças, quem não as têm?
Lá se vai a paz dos vizinhos
A gritar teu nome estou

Caem folhas com minhas palmas
Uma voz qualquer diz: silêncio!
Natural que fosse assim… não? não
Hesitarei antes surja silhueta pela cortina
A ocultar o teu semblante

Saudades, dizem ser,
Intraduzíveis sons,
Lotus em vendavais,
Vertigem axial
Acabam se você sair.


   No dia seguinte a escrever estes versos, 16/07, entrei em um debate com uma poeta amiga minha. Sem sequer mostrá-los, comentei como me senti inspirado no dia anterior e decidi escrever sobre um sonho que se tornou canção. Disse ela: “que bom, não é? Não pensa muito o porquê isso aconteceu, senão pode não acontecer de novo “. Repliquei que não era apenas uma questão de levantar-se cedo e fazer, era uma questão de ter, também, algo a dizer e conseguir dar forma. “Então foi sorte (...) se não foi sorte foi inspiração. Não tem como ser nada, só ‘do nada acordei e veio essa música, ou sorte ou dom, porém, com o dom vem a inspiração para ajudar”.
  Discordei veementemente – nesse assunto isso ocorre constantemente. Apesar de concordar que, sim, a inspiração existe, penso que uma canção, tal qual uma refeição para o Duque Leopold Mountbatten, é resultado de reflexão e estudo.
   Afinal, não é estranho reduzir a algo externo todo o repertório, as horas pensando os versos, em silêncio, tentando criar uma melodia que não existia antes, as consultas aos dicionários. A Revisão de textos e matérias que tenham o contexto para descrever a cena da forma como a imaginei? Todos sonham, como comentou o psicanalista Christian Dunker em matéria para o Viva Bem do UOL: "No sonho, parte do presente vai ao passado e depois se projeta o futuro. Voltamos ao nosso baú de lembranças, repleto de desejos pendentes do passado, imagens, cheiros, momentos bons, ruins, desejos de infância. E assim resolvemos pendências em forma de um cinema privado. É o trabalho do sono: acertar contas com nossos desejos e também com nossas angústias". 
   A questão maior, nesse caso, é como a pessoa traduzirá estes sonhos? Uma prosa em um “sonhário”, comentando em meio a uma refeição familiar ou o esquecimento? Traduzir um sonho pode não ser questão de vida e morte, mas requer trabalho. Não há nada de novo nesse pensamento, é a velha história da razão entre inspiração x transpiração.No caso desta letra, o sonho poderia ser uma representação do passado ou do futuro, ao despertar na quarta-feira, recordei versos que escrevi na noite de 3 de outubro de 2016:

Foto de registro do moleskine em dezembro de 2016
    Apesar de tê-los pensado com melodia, nunca consegui dar seguimento a ideia que eles carregavam. Decidi diluí-los nos versos novos. No dia 18 aproveitei um breve deslocamento de carro com o intuito de levar a letra ao ponto de sua gênese! Ao fazê-lo notei que não descrevia o futuro, afinal, ninguém saiu, não vi silhueta e os gritos também não fizeram com que os habitantes adjacentes se manifestassem. Diferente da canção, hesitei e parti. Afinal, as canções existem n’outro espaço-tempo.
   Para ilustrar o post pensei em fazer um desenho, afinal, não é minha intenção criar fractais para todos os posts (muito abstratos) tampouco revirar os arquivos do domínio público (o faço de quando em vez, mas é inespecífico demais) mas conhecendo os locais, como criar distanciamento suficiente para retratá-los de forma outra? Eis que, no mesmo dia seguinte a escrita dos versos, no grupo de Facebook do projeto VIVIEUVI, liderado por Vivian Villanova, conheci o trabalho de IsabellaProença. Mais que isso, naquela mesma noite ela comentara o lema “feito melhor que perfeito” frase esta que foi um dos motivadores para que eu iniciasse as postagens no blog de uma vez. Gostei muito de sua interpretação visual para os versos, uma vez que sequer havia a gravação da demo que acompanha esta postagem para que se ancorasse. Ressignificou-se a composição.
    Diferente de outras composições feitas em 2020 como Tudo Outro Agora e Silêncio, Canto de duas cidades foi composta no campo harmônico de Dó Maior. Enfim, outras diferenças ficam para o futuro. Por hoje é só.