terça-feira, 22 de setembro de 2020

Basta olhar bem

 “É fácil prever depois que aconteceu, mas a moral da escrita, para mim, é que quando você está se sentindo amedrontado e nervoso sobre algo e você está bastante convencido de que pode ser um grande desastre, é exatamente a ideia que você deve seguir.” – Damon Lindelof, em entrevista para Emily Zemler, da Esquire, em 7/05/2014

De volta à ilha em arte de @isabellaproencart

 

Basta Olhar Bem (2020)
Letra e Música: Thales Salgado

Boa noite meu amigo
Como vão seus sonhos?
Ainda que te veja em vídeos
Parte, só suponho
Que, por vezes, é corrida a vida
Divididas vias, sei

Gosto de ver-te assim, feliz
E sem amarras
Mesmo sem objetivos
Ou imensos planos
Que possamos estar sempre além
De um sinal fechado

Eu sei
Que a saudade é só uma palavra
Talvez
Ainda nos vejamos numa estrada
De som...

Mesmo a gênese oculta
Já que todos vem de algum lugar
Saiba: mesmo sem perguntas
Que seja natural falar

Copiamos os sentidos
Para falar de amor

   O embrião de Basta Olhar Bem surgiu ao fim de 2016. Á época, estava retomando as composições após um hiato criativo de quase três anos. Não deve ser coincidência que, após ouvir a composição de Bob: Como pode ser verdade? Alguns pensares começaram a ebulir. Ainda assim, há sempre mais ideias que canções.

   Aconteceu quase da mesma forma que Canto de duas cidades levou tempo para tomar forma. A diferença? Por qualquer razão, o registro foi feito fora do moleskine habitual. Encaminhei via WhatsApp e a canção, aí com cerca de 1 minuto, cumpriu sua primeira função. Mas ela acabou não fazendo parte do que veio a se tornar o “Nada há de novo sob o sol”.

    Com o passar dos anos, veio a intenção de retomar e reouvir a canção, eu me lembrava apenas que ela começava com “Boa noite meu amigo, como vão seus sonhos” e que terminava dizendo “talvez ainda nos vejamos nessa estrada de som”.

 

Resquício dos versos originais

Decidi então anotar os versos de que me lembrava e escrever outros versos que completassem a letra e ainda fizessem sentido. Ali ela ficou por alguns dias, até que, na noite em que ouvi sobre a triste partida de Chadwick Boseman e, motivado pelo fantasma de nossa finitude, decidi me debruçar com o violão, escrevê-la e enviá-la.

   Enquanto escrevia, a minha ideia é que seria uma composição contrária à narrativa de Sinal Fechado de Paulinho da Viola. Aqui, existe a possibilidade de contato e ela é aproveitada das maneiras que são possíveis. Sejam vídeos, textos, lives, vlogs. É muito fácil deixar o sinal abrir e partir. Às vezes, não há outra opção, mas, se for possível manter a ligação, e não for um problema para ninguém, o que impede? O final da letra referencia à canção Tributo aos sentimentos

   Quando entrei em contato com a artista Isabella Proença para falar sobre o conceito da arte que ilustra este post, falei sobre Paulinho da Viola, falei um pouco sobre a história da letra, mas, mais do que isso? Falei um pouco sobre Lost e como “nem tudo era o que parecia ser” na série - mesmo na ilustração este conceito se aplica, basta olhar bem. Além disso, não é surpresa para ninguém que a pessoa que escreveu 108 Minutos e Constante pensa na série sempre que acorda às 8h15. O voo 815 da Oceanic Airlines está na ilustração para Identidade mesmo que o “evento” tenha acontecido no dia 22/09. Há citações à quinta temporada na letra de Fim e quase surgiram em outras letras, troque algumas palavras comigo e a probabilidade de me ouvir falar em Lost alguma vez, é grande, portanto, ouvir sobre ela é um risco que minhas amizades correm. Hoje, faz 16 anos que a série estreou. Em maio fez dez que ela acabou. Seja como for, imagino que citações a ela podem escassear, mas não acabarão. Se não pudermos viver juntos, nós vamos morrer sozinhos. 

sexta-feira, 18 de setembro de 2020

Outra versão de nós

"Em certas ocasiões, o destino se assemelha a uma pequena tempestade de areia, cujo curso sempre se altera. Você procura fugir dela e orienta seus passos noutra direção. Mas então, a tempestade também muda de direção e o segue. Você muda mais uma vez o seu rumo. A tempestade faz o mesmo e o acompanha. As mudanças se repetem muitas e muitas vezes, como num balé macabro que se dança com a deusa da morte antes do alvorecer. Isso acontece porque a tempestade não é algo independente, vindo de um local distante. A tempestade é você mesmo. Algo que existe em seu íntimo. Portanto, o único recurso que lhe resta é se conformar e corajosamente pôr um pé dentro dela, tapar olhos e ouvidos com firmeza a fim de evitar que se encham de areia e atravessá-la passo a passo até emergir do outro lado. É muito provável que lá dentro não haja sol, nem lua, nem norte e, em determinados momentos, nem hora certa. O que há são apenas grãos de areia finos e brancos como osso moído dançando vertiginosamente no espaço. Imagine uma tempestade de areia desse jeito". Kafka à beira-mar, Haruki Murakami. (Tradução de Leiko Gotoda)

Arte de @isabellaproencart 


Outra Versão de Nós 
Letra: Thales Salgado (escrita em: 25/01/2019)

Cai outra madrugada
E pela estrada até
Pensei em te contar
Tenho visto ponteiros
Tão certeiros nas veias
Na pele e mais
“Também vês?”.

Tantas pontes queimadas
Inocência vitimada
E quero mais
Do que for bom.

E todo o mal que eu causei
Direcionado a mim, eu sei
Ninguém mais pode expiar.

Agora alvoreço
Pesa o preço
De nunca cair em si
Bem e mal são acasos
Espelhados aos caminhos
Do sentir.

Ninguém será sempre feliz
Vivendo a vida sem matiz
Quando o contraste nasce de sofrer.

Cada tempestade
Quando invade
Vem para nos fazer
Viver outra versão de nós



No moleskine usado entre 2011 e 2012
Entre John Frusciante e Vitor Ramil

     A foto acima é importante pois pontua o Tempo que levou para finalizar esta composição. Ela começou em algum momento de 2011 e estagnou em 2012. Imagino a faísca inicial tenha queimado na segunda quinzena de julho, após o lançamento do single The Adventures of Rain Dance Maggie do Red Hot Chili Peppers.

    Sendo o primeiro lançamento após a segunda saída de John Frusciante, havia, então, um estranhamento em como a banda prosseguiria – após ter tido a possibilidade de ver três shows da banda no Brasil com Josh Klinghoffer é impossível dizer que não foi para melhor, uma vez que, sendo fã da banda até então, não havia visto nenhum – o que me levou a me debruçar na carreira solo do músico. Shadows Collide With People, To Record Only Water in Ten Days, The Empyrean… apenas para citar alguns. Me chamava a atenção como suas composições fluíam e eram capazes de mostrar diversas facetas, muitas vezes no mesmo momento. Haveria possibilidade de tentar replicar um pouco disso? Alguns bends, um pré-refrão, um refrão! Nasceu uma melodia que foi chamada por nove anos apenas de RHCP, pela relação que ela guardava com a banda.

     O que impedia a letra de nascer, então? Podia ser a influência de Vitor Ramil. Em sua obra Satolep, um personagem comenta “nascer leva tempo” (em 2013 eu viria a referenciar este verso em Notas fora do Lugar mas não sabia disso naquele momento).

      Algumas de suas letras conservavam a característica de repetir trechos melódicos, mas não repetir a letra, elas não necessariamente “espelham” a estrofe anterior até o refrão, muitas vezes apresentando uma narrativa ou mais. Minha intenção era fazer algo dessa forma. Algumas ideias para a letra estavam ali desde o início: “ninguém nasceu para ser feliz/sentir a vida sem matiz/cria o contraste é o sofrer...” mas criar uma narrativa que conduzisse a isso, estava em um beco sem saída; como John ou Vitor fariam?

        Lendo e ouvindo suas entrevistas, descobri que ambos possuíam, cada qual a seu modo, uma série de fundamentos que guiavam suas composições. Enquanto Frusciante comentava sobre “ideias, visões, formas, cores, arte, anjos da guarda, religião e espiritualidade”, Ramil delinerara sua Estética do Frio, ancorando ou encontrando em suas composições “rigor, profundidade, clareza, concisão, pureza, leveza e melancolia”. Se pensarmos o conjunto “religião e espiritualidade” como uma coisa só, podemos pensar que ambos estavam próximos ao número sete.

      Sete artes, sete maravilhas do mundo antigo, sete maravilhas do mundo moderno, sete sábios gregos, sete virtudes, sete propriedades da matéria, sete pecados capitais, sete dias da semana, descansar ao sétimo dia, sete anões, sete léguas, sete vidas de um gato. Sete mares, Sete Cidades. Sete notas musicais. Sete mentiras, multiplicadas por sete, multiplicadas por sete outra vez. Sete anjos com sete trompetes... sete e sete são quatorze com mais sete vinte e um, Zazá sumiu ficou um zum zum zum. Tantos setes por aí, mas nenhum para chamar de meu.

OITO ANOS DEPOIS

        No décimo sexto dia participando do desafio de escrever 100 palavras por dia professor proposto pelo professor de Escrita Criativa Tiago Novaes me peguei em um longo congestionamento na marginal Tietê enquanto me dirigia ao trabalho.

        Ali, ilhado sem enchente, decidi revirar os arquivos antigos e me deparei com o arquivo intitulado RHCP. Poucas pessoas a tinham ouvido o instrumental até então, entre estas pessoas o artista, baixista, designer, e amigo Bruno “Bob” Barduchi Oliveira –  basta olhar bem, normalmente ele está envolvido nestas empreitadas – mas não havia muito a dizer: nada mais eram que alguns murmúrios e vocalizações aleatórias. Até que a letra surgiu.

       É difícil falar sobre ela, pois, ela foi construída apenas pela vivência de anos e a necessidade de reunir cem palavras. Nada além. Não contando o título, a letra é composta por esta centena.

       Posso dizer com alguma certeza que as pontes queimadas podem ter sido inspiradas em Burning in the Skies da Linkin Park (estou nadando na fumaça das pontes que queimei, então, não se desculpe, estou perdendo o que não mereço). “Expiar” tenho certeza que tirei da cena em que Kanon de Gêmeos recebia a Agulha Escarlate de Miro para provar sua fidelidade à deusa Atena. Assim como o conceito da tempestade pode ter sido influência inconsciente de Murakami, por isso ela inicia este post.

PINTURA PARA UMA CANÇÃO SEM NOME

      Quando encaminhei para Isabella a proposta de parceria para fazer esta ilustração, ela ainda não tinha nome. Imaginei que tendo uma data prevista para escrever, ele viria. A pintura que ela realizou trouxe uma série de outros significados para a canção. Eu sabia que precisava ter roxo, mas, por ter escrito enquanto estava em um ônibus, tinha dificuldade em imaginar a história fora do transporte. As soluções e traços que ela apresentou me levaram a diversos lugares: Meia Noite em Paris, Estúdio Ghibli, se fizer à praça do coreto de Arujá, pensei até mesmo em Vanguart, pelo Semáforo. Artes assim amplificam os sentidos.

sábado, 12 de setembro de 2020

Muitas em mim

“A afirmação de Aaron Copland de que “cada nova obra traz consigo um elemento de autodescoberta. Devo criar a fim de me conhecer, e, já que o autoconhecimento é uma busca sem fim, cada nova obra é apenas uma resposta parcial à questão ‘quem sou eu’, e traz consigo a necessidade de continuar a busca de outras e diferentes respostas parciais” é uma maneira diferente de expressar a mesma necessidade. Pessoas conscientes de uma divisão aguda dentro de si são impulsionadas a criar de forma recorrente, em parte pela necessidade de curar a divisão e em parte a fim de formular ou descobrir sua própria identidade.” – Anthony Storr – A Dinâmica da Criação, Benvirá, 2013, p.409 (Tradução de Ana Cláudia Fonseca e Claudia Gerpe Duarte)

Representação de diversas faces de Katy Perry em uma.



Muitas em mim (2019)
Letra: Fabíola Passos Almeida
Música: Thales Salgado

Povoada pelas contradições
Persigo a luz
Sem notar que caminho
No escuro

Escolhi o que é verdade
Reduzi o resto a uma farsa
Neguei minha multiplicidade

Neguei minha humanidade
Nem por isso sentei à mesa
Com os deuses

Afinal, quem sou eu?
Eu sou muitas em mim




A PIRAMIDE

    Identidade e Beleza Parasita formam uma pirâmide quadrangular em Ikiryou EP.  
Considero que, conceitualmente, Muitas em Mim, junto a
     As três canções foram compostas sobre versos da psicóloga Fabíola Passos Almeida, de modo que ela representaria “a base”.  A face lateral direita, o Leste, seria a composição deste post, “o início”. Identidade, seria a face oposta, frente ao poente. A face frontal, é Beleza Parasita, melodicamente, a composição mais diferente desta safra. Eu, enquanto compositor, represento a face contralateral, oculto como o ‘homem atrás da cortina, o mágico de Oz’.

O artista Bob Barduchi representou visualmente
o conceito que permeia a "trilogia"
    Ajo como receptor das palavras e as transmuto em melodia, mas evito fugir dos temas ou alterar versos, mesmo que todas estas canções tenham sido compostas sem avisar a autora previamente. Há, de todo modo, uma troca.

O PAPEL DA FACE OCULTA

    Recebida em seis de dezembro de 2019, a composição estava pronta já no dia 7. Se me permito uma influência para esta melodia foi a canção Furo 2 (Sangue do Paraguai) da banda carioca Baleia.
Minha sensação foi a de tentar, em seus versos iniciais, passar a lentidão. Assim, optei por alongar determinadas sílabas. Tal como ela inicia “poooooovoada peelas contradiçõõões...”.
O manuscrito que precedeu a canção
Em algum momento surgiu um “é” ao cantar a estrofe, em que posso ter pensado? ‘O papa levou um tiro a queima-roupa é, é’ ainda assim, foi um incidente. Mas... foi mesmo?
    Afinal, se há em mim o interesse pelo trabalho de outras bandas, como evitar que isso “vaze” para minha própria criação? Talvez, essa influência não seja Thanos, mas seja “inevitável”.
    Carece de fontes, mas já ouvi – e posso até ter utilizado em um texto anterior – que desenvolvemos nosso estilo emulando nossos ídolos. Na didática da invenção o poeta Manoel de Barros afirma “repetir, repetir – até ficar diferente” em Mar Deserto, Moska canta “repetir, repetir, repetir... até ficar diferente”. Você, leitor ou leitora ainda está aí? Os parágrafos passados parecem caóticos demais? Para mim, parecem, mas são importantes no sentido de informar que, se há uma essência em mim, ela não é poesia, mas prevalece.


FRAGMENTOS

    Por algum tempo, pensei encontraria uma chave referente aos conflitos entre identidades mencionado nas letras nos estudos do psicanalista Erik Erikson, e, após consulta inicial por alguns comentadores, é provável que resida algo que apenas um mergulho propriamente dito possa trazer à tona.
   Contrariando minha expectativa, uma das frases que fez sentido para mim foi proferida pelo profº Neil Mackinnon em uma matéria para a Universidade de Guelph há cerca de dez anos, quando ele publicara com David Heise o livro Self, Identity and Social Institutions.:

"A influência pós-modernista nas ciências sociais têm questionado se as pessoas possuem um "eu" coerente e estável. Alguns argumentaram que um mundo fragmentado leva a uma fragmentação do eu. Mas demonstramos que, de fato, as pessoas podem ter um eu nuclear que é coerente e estável mesmo em nossa sociedade pós-moderna".


FRAGMENTOS EM IMAGENS

    Foi, também, devido a esta frase, que entendi que a imagem a ilustrar o post deveria ser essa. Elaborada por uma sugestão de Mariana Licori, que, em fins de julho comentou que o Portal Katy Perry abriria inscrições para o The Smile Museum. Assim que ela comentou, uma arte surgiu “um retrato frontal, dividido em seis faixas verticais com detalhes de cada uma de suas fases, por meio do cabelo e maquiagem” As matrizes escolhidas foram:
   Hello Katy – 2009, California Dreams – 2011-2012, Prismatic World Tour -2014-2015, Witness World Tour – 2018 e Smile – 2020. Representando a Katy Perry “ortônima” me inspirei em seu visual clicado no tapete vermelho do iHeartRadio Music Awards em 2019.
    As transformações visuais da artista valem publicações inteiras, por isso, decidi por, na maior parte, ater-me apenas no aspecto de divulgação das turnês. A silhueta que serviu de base é inspirada na foto que consta em uma matéria de Petra Gulielmetti em julho de 2013 para o site glamour.com.
   Para que a ilustração não se resumisse à cronologia, os estilos foram colocados aleatoriamente. Muitas faces, em uma pessoa só.

domingo, 6 de setembro de 2020

Identidade

“Escritores estão entre os mais sensitivos, mais intelectualmente anárquicos, mais representativos, mais exploradores artistas. A habilidade do escritor para imaginar o que não é o eu, familiarizar o estranho e mistificar o familiar – tudo isso é um teste para o poder dela ou dele. As linguagens que ela ou ele usam (imagética, estrutural, narrativa) e o contexto social e histórico em que essas linguagens são indiretas e diretas revelações desse poder e suas limitações.” Toni Morrison – Conferências Massey em Harvard, 1990


A LETRA


Identidade (2020) 
Letra: Fabíola Passos Almeida
Música: Thales Salgado

Passei um tempo acreditando ser você
Me acostumei com seus desejos
Cumpri suas metas e te levei alto

Passei um tempo fugindo de mim
Escondi minha história e cicatrizes
Dessensibilizei meus sentidos e adormeci

Até que despertei

Mas já faz tanto tempo
Que o meu corpo não parece mais meu
Que a minha voz mudou o tom
Que não reconheço esse lugar

Despertei no escuro

Passei um tempo sem identidade
Procuro maneiras de juntar os pedaços
Será possível criar uma nova forma?

Que pareça tanto com você quanto comigo?


PENSANDO IDENTIDADES

     No livro A Dinâmica da Criação, o psiquiatra Anthony Storr buscou analisar mecanismos da criatividade. Nele, são discutidos motivos e condições que levam a atividade criativa a se manifestar. Seus últimos capítulos são dedicados à “busca por identidade” e “integração” e auxiliaram em minha elaboração sobre a composição.
A autora dos versos
     Em determinado ponto Anthony afirma que “É fácil uma pessoa criativa, produzindo uma obra depois da outra – obras talvez tão distintas umas das outras como a Sétima e a Oitava sinfonias de Beethoven –, possa ter dúvidas sobre a continuidade de seu ser, mesmo que um observador isento possa perceber tal continuidade com absoluta clareza.” 
     O trecho acima é importante para esta composição, pois, foi apenas ao ler uma narrativa em prosa escrita pela psicóloga Fabíola Passos Almeida 5 meses e 28 dias após a letra, que a faísca de interesse para musicá-la surgiu para mim, diferente de versos como os de Beleza Parasita e Muitas em Mim que respondi com uma melodia horas depois de visualizar os versos. Na primeira leitura que fiz, ainda em fevereiro, pontuei que me parecia uma “despersonalização do eu-lírico” como se o mesmo estivesse “despersonalizado, se enxergando em terceira pessoa” e ela replicou que mais seria mais um “eu fragmentado” uma vez que, na psicologia, a “despersonalização” pode ser diferente.

A MÚSICA

     Para esta composição meu interesse foi traçar uma linha coerente na narrativa de meu cancioneiro. Assim como a primeira composição que fiz em vida (Um Caminho para o Céu, com letra de Bruno Barduchi Oliveira) contava apenas com os acordes “Gm F Cm Eb D” utilizei em Identidade “Eb7 Dm Gm (Gm7) F Cm A7” não é meu interesse aqui debater questões teóricas. Apenas pontuar que, mesmo em tons diferentes, houve uma procura consciente mais de intermediar minhas próprias composições que transmitir uma emoção específica.
     Na experiência do músico e terapeuta transpessoal Arthur Belino “os principais lugares que a música ocupa (para ele) são de cura e de integração com o mundo e com o outro”. Ele explica que no processo de composição ele vai se compreendendo e que “as melodias que surgem neste processo de composição expressam bastante do que há naquele momento.”Sobre esta continuidade na identidade criativa, Storr pontua:

“Repassando anos de trabalho, um homem pode se surpreender ao descobrir o fio escarlate de sua identidade ao longo de uma série de obras que lhe pareciam muito diferentes na época em que foram concebidas. Ele também descobre com frequência que ideias que a ele pareciam ter ocorrido apenas ontem já estavam implícitas em trabalhos anteriores, e tiveram precursores óbvios que ele deixou de notar. Na verdade, pessoas criativas geralmente são seres mais contínuos do que pensam.” p.383

     Quando comentei com a autora acerca das conexões ela mencionou que realmente há uma conexão entre os textos, mas que ela mesma já não tinha o primeiro em mente. Dessa forma, pode se dizer que há continuidade tanto para a obra dela, quanto para a minha. Ainda que, no meu caso, tenha sido uma escolha consciente.
      Fiz o possível para manter o texto na íntegra, salvo inserções ou omissões pontuais a fim de manter o verso na melodia. Um dos pontos mais difíceis foi encaixar “dessensibilizei”, além de ser um ponto importante na letra, queria ter uma composição com a palavra, pensando em “Desensitized by TV” presente em Boom! da banda System of a Down. 

IDENTIDADE EM PROSA
(Fabíola Passos Almeida - 2/08/2020)

Acordei e me dei conta: algo transtornou meu quarto.
Olho ao redor na tentativa de me situar, todas as coisas estão fora do lugar, só as paredes permanecem.
(Paredes cinza, ciano e pêssego).

Logo percebo: eu também permaneci aqui. Não com as roupas que eu lembro, não com os cabelos penteados, mas estou aqui ilesa. 

Ilesa? Ilusão. O quanto de mim se quebrou nesse quarto? Sinto o corpo exausto, a cabeça pesada, dores. 

Sobramos eu, as paredes, as dores, a bagunça e a dúvida: o que aconteceu?

Manuscrito da letra, 03/02/2020
Procuro um espelho, encontro. Inteiro, mas no chão. Coloco-o no lugar (ou melhor em algum lugar em um ângulo mais adequado). Encontro uma figura pouco nítida, preciso apertar e esfregar os olhos até chegar ao foco possível. 

O tremor das minhas mãos anuncia o assombro que me causa olhar para a figura que avistei. Em "um milímetro de um segundo" uma incômoda constatação aterriza em minha lembrança... pelo estômago começo a congelar até os ossos, tremor, calafrios, confusão mental. 

Olho para o espelho, mas não me vejo. Na verdade, revelada no reflexo está ela com seus olhos cintilantes de energia, o sorriso aberto exagerado, e sua obsessão de ser vista. Fecho os olhos, abro, observo minhas mãos com a sensação que elas não me pertencem. Mais calafrio, náusea, angústia.

Angústia que vira água, grito e que tenta sair de mim. Mas quanto mais tenta sair maior fica. 

De volta ao espelho eu respiro. "Calma, calma, calma, volte". Olho e encaro. Aos poucos a nitidez revela minha boca, meu queixo, nariz, meus olhos. Ela se foi. Culpa e alívio me ajudam a fazer a lista mental de como vou arrumar essa bagunça. Mais um recomeço.~

FRAGMENTOS DA IMAGEM

     A leitura do segundo texto também me informou uma possível chave de interpretação para preparar a ilustração que acompanha este post. Após a visualização de animações que fãs de Hamilton criaram nos últimos anos – quando, apesar do sucesso, o acesso a gravações do espetáculo era mais restrito – pensei em, também, fazer uma animação. 
    Assisti alguns tutoriais, verifiquei até o número de frames necessários para um vídeo de três minutos com uma movimentação, que eu julgasse, minimamente agradável. 195 quadros. Foi apenas quando comecei a recortar o canson da primeira gravura que me dei conta das horas que isso exigiria. Decidi realizar, então, uma colagem em papel fotográfico.

A ilustração original teria mais referências à Björk
Curiosidades: 

Os cabelos foram inspirados na obra Uzumaki, de Junji Ito, e as cores em Sunny, um dos quatro reis celestiais em Toriko, de Mitsutoshi Shimabukuro. A máscara da personagem foi inspirada levemente nas maquiagens da drag queen alemã Hungry, responsável por diversos dos make-ups de Björk.


Outros elementos, como o voo 815 da Oceanic Airlines ao fundo, vieram por, quando finalmente consegui tocar e cantar a canção, um avião ter passado e estar registrado na canção.