quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

Guardiã

"Indivíduos abertos, honestos e que falam a verdade valorizam a privacidade. Todos nós precisamos de espaços onde possamos estar sozinhos com pensamentos e sentimentos - onde possamos experimentar uma autonomia psicológica saudável e podemos escolher compartilhar quando quisermos." - bell hooks, All About Love: New Visions (2000)

 

Manuscrito original de Fabíola
Com intervenções minhas em vermelho

Guardiã (2020)
Letra: Fabíola Passos Almeida
Música: Thales Salgado

A culpa no externo pressionado 
- Errei.
A vergonha no estômago frio
- Sou erro.
O cuidado na inundação ocular
- Acolho.

O espaço diafragmático
- Inspiro.
O ar sonoro que escapa
- Expiro.
A responsabilidade da transformação
- Arrimo.

Retorno ao meu lugar
De guardiã de mim.

     Conforme menciono no post anterior Andando com meus Pés pensei que não comporia mais nada após outubro. Guardiã foi a segunda surpresa que tive em novembro e, pela segunda vez, baseada em versos da psicóloga Fabíola. Quando ela me mostrou os versos na tarde do dia 19/09 comentei que achava:

"interessante que essa estrutura de diálogo interno, meio um canto responsorial, é algo natural na sua forma de escrever, não? Será que isso é uma influência do período igrejista? É muito comum isso no cancioneiro litúrgico. Nesse quesito que falamos de "múltiplas identidades" você abre o conceito e fecha, e ao final usa uma "chave de ouro", é uma estrutura que lembra a de "beleza parasita" e eu acho interessante isso, essas formas de manter a coerência interna. Esse conceito de guardiã de si é interessante em si mesmo, já que é o oposto da negligência. Outra coisa que eu gosto na forma como você escreve é como você consegue carregar uma questão 'clínica' dentro dos versos, de repente, surge um "diafragmático", "desensibilizei", "indiferenciar". Isso mostra também coerência vocabular (não que você tenha compartilhado para ter uma análise estilística rs).

     Após seguirmos a conversa, eu não tinha a intenção de musicar sua síntese. Afinal, o ato vinha ocorrendo desde dezembro de 2019 mas... e se, em algum momento, minha criatividade findasse? Assim como ocorre o receio frente a uma página em branco, tenho receio de potencializar uma parceria artística e não conseguir dar seguimento. Hoje, tenho 31 anos, dos quais, 13 foram compondo. Há, no entanto, um espaço de cerca de três anos contínuos em que estive (por falta de melhor termo) em um bloqueio criativo. Minha narrativa ao retornar aos trabalhos foi que "estive por alguns anos consolidando novas referências para as composições" mas, não era a impressão que eu tinha enquanto vivia o período.
      Talvez, eu estivesse influenciado pelas recém-lançadas 
'Protect the Land' 'Genocidal Humanoidz' da System of a Down mas minha consciente para o resultado final foi The Last Stop da Dave Matthews Band. Desconheço os acordes que utilizei enquanto tateava a craviola. Apesar de atrapalhar a organização de composições a longo prazo, facilita a ilusão de que o processo de composição é mágico. Ainda que tenha sido feito de forma expressa, na hora do almoço. Esta pressa em achar acordes, riffs e gravar ainda ocasionou um incidente em que troquei arrimo por arrumo durante a leitura. Altera um pouco o sentido, todavia, se um dia houver uma gravação oficial, isso poderá ser corrigido.

quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

Andando com meus pés

"Toda arte é autobiografica. A pérola é a autobiografia da ostra. Federico Fellini" - The Atlantic, December 1965.

                                 



Andando com meus pés (2020)
Letra: Fabíola Passos Almeida
Música: Thales Salgado

Andando com meus pés sigo
No único ritmo possível
O Meu

Andando com meus pés sigo
Na única estrada que há
A minha

Andando com meus pés sigo
No único sentido possível 
O meu desejo

Andando com meus pés sigo
Na única estética possível
Minha boa forma

Andando com meus pés sigo
E percebo quão estranha foi
A ideia (que por muito alimentei)
De que só seria possível caminhar
Com outros pés

     Recebi estes versos no dia 29/10. A autora comentou estar escrevendo bastante e que eles deviam estar prontos cerca de duas semanas antes (imagino que por volta do dia 15). Musiquei no dia de finados. Minha intenção era fazê-la no ukelele. Inspirado por uma versão de Um Conto no Jardim que havia realizado no instrumento.  Entretanto, não conseguia me adaptar ao pequeno braço e tornei a repetir os três acordes (Dm C9 G) na craviola mesmo. Trocando o tom, esta progressão me lembra Wicked Game, de Chris Isaak, uma composição que sempre esteve em meu repertório enquanto na banda Falsa Modéstia.
      Parte do que criou um conflito quanto a como inserir esta composição no blog, foi o fato de ela ter sido "inesperada". Meu pensamento era que, finalizada A Equação do Hiato, meu foco seria direcionado à gravação de vídeos para composições de anos anteriores. O áudio presente nesta postagem é do momento seguinte à composição. Como pode ser visto no manuscrito, minhas interferências estão em vermelho e não afetam por demais o conteúdo do texto, mesmo na ultima estrofe, um pronome e um substantivo.
  Me identifiquei muito com os versos, principalmente com a conclusão que comenta quão estranha é a ideia de que só seria possível caminhar com outros pés. Ela reflete muito a própria existência das postagens no blog. Em 2020, por exemplo, apenas duas postagens não foram acerca composições autorais. Isso, por um lado, é desafiador, afinal, é preciso criar imagens, procurar frases, realizar gravações e o que mais for preciso para complementar o texto. Por outro lado, a probabilidade de que menos de dez pessoas cheguem a ler estas palavras também é grande, afinal: em um mundo em que artistas podem ganhar o Grammy com álbuns compostos e produzidos em seus quartos, qual o sentido de postar uma devo apenas com violão e voz? E mais: detalhar sua criação? Pode alguém chegar a esta página por coincidência? Talvez.  Certo é que se eu falasse de quaisquer álbuns de artistas renomados por aqui, teria um número maior de visualizações mas... o que isso iria dizer?

terça-feira, 29 de dezembro de 2020

Falsa Modéstia - Tirinhas

Projeto idealizado por bob, que escreve a maior parte dos roteiros, alinha o enquadramento, trabalha com os balões e arte final. Cuido dos desenhos e cores. Outros roteiros foram feitos em 2020, mas, não foram publicadas até o momento. Ainda que ilustrações autorais surjam aqui e acolá neste blog, ter a dupla de criação vertida em história foi inesperado e permite aproveitar influências e referências que não funcionam em uma letra ou prosa.

Storyboard e roteiro 05/10/2020
Inspirado em A Equação do Hiato, post do dia 26/12/2020


Episódio 0 - 02/10/2020
Após receber a proposta, fiz uma tira metalinguística
Pode-se notar minha falta de concisão ao cuidar do roteiro.


Storyboard e Roteiro: 03/10/2020
Um post sobre Um Conto no Jardim foi feito em 14/08/2016
Um dos primeiros posts no blog

Storyboard e Roteiro: 03/10/2020
Sendo Um Conto no Jardim uma composição com quase 15 anos
Foi uma das primeiras a ser contemplada com uma segunda história

Storyboard e Roteiro: 05/10/2020
Inspirada na música que também nomeia ao blog e à banda
(Não necessariamente nesta ordem)
Também se relaciona à primeira postagem, em 25/06/2016

segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

Ikiryou EP

“Esse tipo de fantasma é chamado de ikiryou, ou seja, “espírito vivente”. Não sei quanto aos demais países, mas no Japão há muitos exemplos disso na literatura. A história de Genji está povoada de Ikiryou. Nesse período Heian (séculos IX a XII d.C), ou seja, no universo espiritual do povo desse período, as pessoas eram capazes de se transformar em espírito ainda em vida, viajar pelo espaço e realizar seus desejos.” Kafka A beira-mar de Haruki Murakami, capítulo 23, p. 276, tradução de Leiko Gotoda 
Ilustração: Thales Salgado

     Deparei-me com o conceito de “espírito vivente” pela primeira vez quando lia Kafka à beira-mar, de Haruki Murakami e neste ano em que o distanciamento social é essencial ele me veio a mente. A metamorfose em espírito para pairar, intangível, sobre os pensamentos de outrem e retornar a mim pintado por outras vozes. Estas composições em voz e violão sempre estiveram sob o título Ikiryou EP. 
     O E.P. - Extended Play - no título surgiu em vontade de imitar os ídolos (como o Abbey Road EP dos Red Hot Chili Peppers) e sentindo, à época, que não passaria de cinco ou seis faixas. No decorrer de sete meses, o conceito foi fechado com as onze faixas a seguir, com links para cada uma delas: 

1. Beleza Parasita (letra de Fabíola Passos Almeida) 
2. Tudo Outro Agora (letra de Anderson Bezerra) 
3. Silêncio (sobre poema de Kariny Camargo) 
5. Ofício das Horas (sobre poema de Renato Bicudo) 
6. Concreto-Confronto (montada com um conto de Daiany Pontes)*
7. Identidade (letra de Fabíola Passos Almeida) 
8. Muitas em Mim (letra de Fabíola Passos Almeida) 

     No início, trabalharia apenas com textos com que tive contato de 2019 para cá, entretanto, quando me deparei com o poema de Kariny de 2011, não resisti musicá-lo. É sempre um exercício musicar versos de pessoas que conheço, independente do nível de intimidade. Mesmo se conheço os gostos musicais das pessoas com quem estou fazendo a parceria, não tenho como emulá-lo. A canção sempre se imporá como bem entende e caberá a mim, tentar traduzir uma parte na outra parte, como diria o poeta. 
  O pensamento para a capa era de mostrar uma alma pousando no corpo de um personagem deitado, como acabasse de retornar. No fim das contas, ainda que haja, no primeiro plano, uma figura deitada, a figura ao fundo, mesmo antropomórfica, ficou feia e em nada refletia o que eu tinha em mente (já subconscientemente, eu já não sei).

*As faixas marcadas contém ilustrações da artista Isabella Proença que emprestou sua sensibilidade para transpor ideias das canções em imagens. Por vezes, extrapolando o conceito inicial, todas elas são obras que merecem ser vistas mesmo sem a letra ou música.

sábado, 26 de dezembro de 2020

A Equação do Hiato

“Você não pode medir a afeição recíproca de dois seres humanos pela quantidade de palavras que trocam.” – Milan Kundera, A identidade

A Equação do Hiato (2020)
Letra e Música: Thales Salgado
Baixo: bob

Esta conversa começou
Somente há treze anos
Tenho para mim, não acabou
E, para isso, não há planos
Longe de mim, tentar prever
A sucessão dos fatos
Com o tempo, estamos à mercê
Urgir? É descompasso
Notícias quase disponíveis
Hiatos mezzo calculados
As redes, nem sempre, são críveis
Só iluminam um dos lados
Ilham segundos aprazíveis
Legam os gritos, enjaulados
Vem e vai: procrastinação
À morte digo: Hoje não"


     Uma mensagem em 26/08/2020 me fez começar a pensar em uma letra que comentasse “impossibilidades quânticas” dentro de minha visão no presente. 
     Já ouvi falar que qualquer previsão é falha (seria Kundera novamente?) e, seja quem for o autor, deve ter acertado. Como o verso “hoje eu sei só a mudança é permanente” que conheci com a Engenheiros do Hawaii. 
    Podemos acreditar que há certas verdades pétreas e, de repente, perceber que alguma chuva paulatinamente a esculpiu em formatos contrários à nossas intenções. Ainda assim, como criado pela ficção e me preparando para uma (possível, provável?) decepção com o próximo Matrix, me pego me ancorando também em alguns de seus temas como a “escolha” e a “crença”. Escolho acreditar que algumas coisas podem não ser eternas, mas nem por isso precisam acabar durante uma vida. 
     No dia 02/09 compus em minha craviola a melodia. Isso facilitou para que pudesse tentar encaixar os versos posteriormente. Como em 26/09 ainda me faltavam doze versos me coloquei a pescar referências na linha do tempo de uma rede social azul. 
    Terminei de escrevê-los na noite do dia 1/10 e, quando mostrei os versos a bob, ainda não tinha nome. Estruturalmente, os enxergo como um espelho/continuação temática de Canto de Duas Cidades De uma conversa com Kariny, veio a sugestão de chamá-la Hiato. Já havia musicado um de seus poemas de sugestivo nome Referência mas uma palavra apenas não bastaria para esta canção que viria a fechar o Ikiryou EP. Até haveria sentido, o álbum já continha uma Silêncio e uma chamada Identidade. 
Ilustração de Isabella Proença 
Sobre uma foto de 2011
(tempos pré-isolamento)

     No dia 03/10 me decidi por A Equação do Hiato, forma de homenagear conceitualmente ao compositor, produtor e multi-instrumentista Arjen Anthony Lucassen, criador de The Human Equation. A referência a frase de Syrio Forel surgiu na letra como uma negativa ao fim de uma conversa. Se pode se dizer “Hoje não” ao deus Morte, também se pode escolher que uma conversa vai continuar, enquanto seja de comum acordo de ambas as partes. 
    Sem acesso à melodia, a psicóloga Fabíola Passos comentou que a letra “sintetiza muito bem essa experiência que a gente vem vivendo de contato fragmentado, mediado pelas redes”. Foi curioso pois, só assisti ao Dilema das Redes finda a composição, no dia 04 de outubro. De todo modo, vinha conversando sobre as reações das pessoas a ele já há algum tempo. Sendo este um ano que praticamente obrigou os contatos a serem realizados na esfera virtual, todo este conceito do digital já vinha escoando em algumas letras como a de Tempo (que tem entre seus versos: Algoritmos sem verão/Algoritmos passarão/Darei vazão: A vida é um átimo!). 
     Ainda que eu tivesse intenção de manter a melodia em segredo por alguns meses (ela só seria postada em dezembro) a cantora e compositora Paula Lima pode ouvir uma versão voz e violão e, obviamente, bob teve acesso para que pudesse desenvolver a linha de baixo. 
     A ideia era, como vem sendo com as tirinhas, fazer um trabalho ‘just for fun’, a música fica no mesmo ciclo por praticamente sua duração total, saindo apenas no acorde final. Poucas horas depois ele veio com uma linha fluída, que não se fincava nas cabeças das notas que eu estava tocando. Sem essa experiência coletiva a música não existiria como se apresenta, afinal, coube a bob o trabalho não só de criar a linha de baixo como editar e sincronizar as duas faixas no vídeo de apresentação. Essa foi, provavelmente, a primeira união formal deste duo desde em onze anos, quando cometeram um cover de 3x4 que está perdido na rede.