“Não é para iniciantes. Na audição, as músicas parecem simples. Mas, na hora de botar a mão, a pessoa nem sempre consegue encontrar a harmonia completa.” Djavan ao comentar o lançamento de sua, então, obra completa em songbook, maio de 2008
Djavan, giz de cera sobre canson, 07/03/2019 |
Como você mensura
a importância de um álbum? A métrica é o
número de vezes em que você recorreu àquelas canções? Pode ser você se pegar
analisando como ele funcionou como porta de entrada para outras nuances de algo
que você julgasse conhecer? Procurei ouvir Matizes após ler uma crítica
comentando sobre “compassos quebrados”. É certo, a audição deles era familiar
pela incursão na obra de Lenine. A descoberta do termo, por si, talvez não
justificasse o apreço, mas o todo encontrado ali, sim. Djavan chegava ao 18º
álbum da carreira “ao mesmo tempo” em que eu chegava a meus 18 anos, àquela
altura, eu não tinha me dado conta disso.
Djavan Caetano
Viana é desses artistas: fatalmente você já o ouviu. O ato de conhecer sua existência
foi com Nem um Dia, em 1996? Passando a associar a leitura de um livro com os
dias frios? Talvez tenha sido em 1998, já brincando com o fato da estranheza inspiração
causada por sua musa afinal, dinossauros não podem ser bonitos. Ali, naquele
tempo pós-Titanic e seu glorioso VHS com duas fitas, era curioso ouvir sobre
Leonardo DiCaprio numa canção (fato que a jornalista Adriana Küchler apresentou
ao ator em 2016). Pode ser também que eu tivesse consciência de cantarolar a
abertura da novela Meu Bem Querer.
Já em posse de
um violão e tateando os primeiros acordes, uma revista de cifra me apresentou a
Se Acontecer (sob os holofotes como parte da trilha de Senhora do Destino), iria
seu Sol menor incidir em minha Um Conto no Jardim, dali a três anos? Talvez versos
como “é segredo é sagrado está sacramentado em meu coração” seja a causa de meu
“segredos, secretos, sagrados” em Para Ela. Indo além no tempo a melodia de “De
amor pequeno” (2013) feita para um poema de Kariny Cristina teve como
inspiração Milagreiro. Mesmo um verso da faixa de abertura de Matizes me fez
escrever um em minha Efeito Borboleta. Obviamente, sem a grandeza do mestre.
A capa! |
Falando um
pouco do álbum em si é importante tomar as palavras de Hugo Sukman no livro A Música
de Djavan , vol.03:
“Em Djavan, a música é autoral, a letra é autoral, o canto é autoral, isso é evidente. Mas autorais também são os arranjos. Autoral também é a banda, a mesma em todas as faixas, íntima do autor e não apenas por contar conter dois de seus filhos, o guitarrista Max e o baterista João Viana, mas por acompanhá-lo há quase uma década. A banda, quase que como uma extensão do violão e das ideias musicais de Djavan, é básica no baixo de Sérgio Carvalho, no piano de Renato Fonseca e colorida pelo naipe de sopros formado por alguns dos melhores solistas do país, Marcelo Martins [saxofone tenor e flauta], Walmir Gil [trompetes] e François Lima [trombone]. O violão e a guitarra de Djavan são onipresentes, mas não são mais djavânicos que o resto da banda.”
Digo isso porque
o som da banda é envolvente do primeiro Em(omit3) ao último Bbm6 e todas há
variações, nuances e sutilezas que, ainda hoje, pareço estar ouvindo pela
primeira vez. O som é uma das chaves para a produção total do álbum e em
conjunto com suas letras, por vezes crípticas, tornam um bom exemplo do que o
compositor é capaz de alcançar.
O
álbum capturou minha atenção já com as guitarras em Joaninha.sua letra é
repleta de versos tais “A vereda é azulada/E sofrida a solidão/Que sem chão/Faz
morada no descaminho”. Azedo e Amargo traz outras imagens curiosas como “Verga
esse traço/Que a induz à solidão/Deixa que um abraço/Em sua onda de calor/A
revele, leve,/Apta até pra ilusão.” (Com os olhos de hoje, é interessante
pensar como essa comparação entre o amargo e o azedo também surge na abertura
do álbum de 2018.) Mea-Culpa, tem melodia que demonstra bem a resolução de uma
tensão melódica. Ali, provavelmente por ser minha primeira incursão em um álbum
do cantautor alagoano, me chamava a atenção o volume de acordes, para quem
estava habituado a simplicidade do pop rock.
Imposto,
talvez a canção com recepção mais negativa dentre os críticos, salta aos olhos
pela elegância com a qual Djavan versa sobre as altas taxas exercidas no país “IPVA,
IPTU/ CPMF forever/É tanto imposto/Que eu já nem sei!...” culminando em “Pois o
homem que recolhe/O imposto/É o impostor.” A recepção seria outra caso tivesse
sido lançada em Vesúvio (lançado em 2018)? A letra permanece atual uma vez que
termina manifestando interesse em que o voto no Congresso seja aberto, tema
ainda controverso, de cientistas políticos a parlamentares até a própria população.
Delírio
dos Mortais é um samba que fala sobre os encantos exercidos pelo Rio de
Janeiro, com direito a à menção à Garota de Ipanema. Ainda hoje, não estive nos
locais mencionados mas a letra se encarrega de apresentar uma atmosfera de
alegria e boemia. Quase como uma nova forma de constatar que o Rio de Janeiro
continua lindo. Louça Fina, é uma canção da qual já discorri em 2010 (leia aqui por sua conta e risco). Matizes não apenas colocou a palavra em meu
vocabulário como sua letra carrega uma imagem que nunca entendi “De puro
amor/Você tentou amenizar/Aquela emoção/Apanhando uma pedra no chão.” Como a pedra surgiu ali? Movimentos como esse
surpreendem ao colocar algo trivial em meio à dois amantes que, a certa altura
da canção, estão à sós. A levada de João Viana é fundamental nesta faixa que é
uma de minhas favoritas do álbum. Por uma vida em paz é um exemplo de, tomando
as palavras de Herbert Vianna, palavras duras em voz de veludo, Djavan fala
sobre ganância, desmatamento, o papel do homem no aquecimento global, tudo à
sua maneira. “Não sei bem o que dizer/Sobre o mal na Terra:/Acho que o amor
hesitou!”
As
três faixas seguintes são a trilogia de amorosa desilusão (ou alegres cantares
sobre o fim). Tanto Desandou, Adorava me ver como seu e Pedra falam sobre um
amor torto ou que não existe. “Me diga já/O que foi que aconteceu/Você e eu/Era
tão bom” ou “Não sei se alguém/Pode mensurar/O que perdi/De tanto sonho que
cultivei/E Não vivi”. Passando também por “Não mais a vi, desde abril,/Fui pro mar/E
você lá deitada na pedra/Que inveja dessa pedra.” Longe do que possa parecer as
três faixas não são tristes, carregam aqui e ali melancolia, e, na penúltima
faixa do álbum, o eu poético até arrisca falar de um recomeço “um lance novo me
despertou” enquanto as outras duas se detém em narrar certo inconformismo com a
situação. As canções são vigorosas, Desandou tem um riff de uma guitarra clean
que permeia a faixa. Pedra é uma síntese de diversos momentos do álbum e da
sinergia com sua banda. Mas é em Adorava..., a faixa entre as duas, que é
possível sentir o grupo brincando no melhor momento do contrabaixo no álbum e
ainda um destaque para o scat de Djavan junto à guitarra. A mixagem também é um
show a parte, ao ouvir de fone é possível distinguir uma série de fraseados das
guitarras de Max Viana. Essa é, junto a Joaninha e a faixa título, a minha
favorita do álbum.
Fera
fecha o álbum em um momento confortável e mesmo assim, com algo de misterioso.
A letra parece falar de um “quase-amor”, sem dúvida o eu-poético relata
sentimentos para uma musa que pode fazer seu coração sofrer ao tempo em que
afirma “E eu nem sei se você vai me amar”. Cantar o amor sempre vale a pena,
mesmo quando há algo de unilateral ou projetivo no sentimento e Djavan reafirma
isso mais que ninguém. A faixa é a mais longa do álbum e mal se percebe. Quase
como frente ao pensamento do ouvinte que o disco não acabasse o fade nunca
viesse. Podemos até colocar a hipótese de que o eu-poético da canção já começa
explicando a razão pela qual os relacionamentos mencionados nas canções anteriores
não vingaram: “Você é coisa demais/Que mau eu não saber lidar/Com tudo isso de
uma vez”. Coisa demais? Quem sabe alguém que conserve a infinitude da via láctea
e a ferocidade dos dinossauros? Uma fera que fere com amor, mesmo sem saber. Fosse
tudo uma narrativa conceitual djavânica, não seria de espantar que o álbum
seguinte de inéditas, Rua dos Amores (2012), começasse narrando que meio do
nada, sua doce amada expôs, que ela e ele, já não eram dois. O fim também faz parte.
Página da Folha Ilustrada em 24/08/1998, para cantar junto na estreia da novela. |
Trecho de Efeito Borboleta, inspirado por Joaninha, de Djavan. |