"Uma coisa eu já adivinhava: era preciso tentar escrever sempre, não esperar um momento melhor porque este simplesmente não vinha. Escrever sempre me foi difícil, embora tivesse partido do que se chama vocação. Vocação é diferente de talento, Pode-se ter vocação e não ter talento, isto é, pode-se ser chamado e não saber como ir." Clarice Lispector, Escrever - A Descoberta do Mundo, p.304Por Jorge Luís Barros
Escolhi falar de A Hora da Estrela por ser uma composição negligenciada no cancioneiro de Thales Salgado. Com uma letra, assim como Dom Casmurro! e To Fanny, tendo inspiração em livros que ele leu. Lembro que ele a enviou por e-mail em junho de 2009. Já estávamos em férias da faculdade? É bem provável que sim. Esse fato é relevante no sentido de que um período de descompressão favorece o exercício criativo, tomo como exemplo o fato de ele ter sido capaz de consolidar pensamentos de cerca de cinco meses no fim do ano passado na canção Vita Brevis. No meu caso aprecio José Ramos Tinhorão, Ruy Castro, et cetera. Ele havia me presenteado com sua cópia do livro de Clarice Lispector dizendo ter lido por conta de uma cisma de sua mãe com Macabéa e a desesperança da narrativa.
Todos os que o conhecem sabem quão dramático ele tende a ser a tentar realizar leituras aprofundadas da ficção com a realidade na sua própria forma de procurar as epifanias Clariceanas no todo cotidiano. Li o livro numa tarde, encantado pela vivacidade metalinguística investigativa e filosófica. Ao ler a letra, não precisei ir muito longe para intuir de maneira certeira qual era o arcabouço poético. Clarice registrou treze títulos, que disponho a seguir:
A HORA DA ESTRELA OU A CULPA É MINHA
OU
A HORA DA ESTRELA
OU
ELA QUE SE ARRANJE
OU
O DIREITO AO GRITO QUANTO AO FUTURO
OU
LAMENTO DE UM BLUE
OU
ELA NÃO SABE GRITAR
OU
ASSOVIO AO VENTO ESCURO
OU
EU NÃO POSSO FAZER NADA
OU
REGISTRO DOS FATOS ANTECEDENTES
OU
HISTÓRIA LACRIMOGÊNICA DE CORDEL
OU
SAÍDA DISCRETA PELA PORTA DOS FUNDOS
Alguns dos títulos estão sortidos no meio de uma narrativa em que um eu-lírico desamparado narra um episódio fantástico culminando na fuga em negação. Me lembra parte de Uma didática da invenção do poeta Manoel de Barros "repetir repetir até ficar diferente". Fica claro que a repetição não seria rima tampouco solução, mesmo assim é a única opção vista por quem vive qualquer tipo de situação-limite, independente das variáveis de intensidade. Ainda que Thales não se diga afeito a refrões, aí está mais uma música em que se vale dessa estrutura.
A Hora da Estrela (2009)
O dia amanheceu tão calmo
Ninguém notou
Que chegava uma tormenta
Majestosa em forma de pessoa
E que ela apenas dirigia-se a mim
Me convidou para dançar
Eu aceitei sem compreender a proposta
Nadávamos alados sem cessar
Eu me via disforme
E ela sempre perfeita
Assovios ao vento escuro
Que agora me fechou a porta
E não há palavra que retire
Da boca o gosto amargo da derrota
Vou além da atmosfera
Vou tentar cantar
Vou voltar então no tempo
E em reprise a vida deixar
Quanto ao futuro...
Vou além da atmosfera
Vou tentar cantar
Vou voltar então no tempo
E em reprise a vida deixar
E eu não posso fazer nada
Eu nem sei gritar
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