“Apesar de reflectir as preocupações do sonhador, o curso do sonho é quase sempre imprevisível. A lógica dos eventos é fluida e errática em comparação com a realidade. A sucessão de imagens caracteriza-se por descontinuidades e cortes abruptos que não experimentamos quando acordados. Nos sonhos, um personagem ou lugar pode transformar-se noutro com uma naturalidade incrível, revelando o poder de transmutação das representações mentais. O encadeamento entrecortado dos símbolos determina um tempo caracterizado por lapsos, fragmentações, condensações e deslocamentos, dando origem a camadas de significado múltiplas e até mesmo díspares. O leque de possibilidades do sonho é vastíssimo, roçando o insólito, o inverosímil e o caótico.” – O Oráculo da Noite, Sidarta Ribeiro
Arte de @isabellaproencart |
Canto de duas cidades (2020)
Estava outra vez ao portão
Só para saber, se estavas bem
Tinha uma caixa nas mãos
Esperanças, quem não as têm?
Lá se vai a paz dos vizinhos
A gritar teu nome estou
Caem folhas com minhas palmas
Uma voz qualquer diz: silêncio!
Natural que fosse assim… não? não
Hesitarei antes surja silhueta pela cortina
A ocultar o teu semblante
Saudades, dizem ser,
Intraduzíveis sons,
Lotus em vendavais,
Vertigem axial
Acabam se você sair.
No dia seguinte a escrever estes versos, 16/07, entrei em um debate com uma poeta amiga minha. Sem sequer mostrá-los, comentei como me senti inspirado no dia anterior e decidi escrever sobre um sonho que se tornou canção. Disse ela: “que bom, não é? Não pensa muito o porquê isso aconteceu, senão pode não acontecer de novo “. Repliquei que não era apenas uma questão de levantar-se cedo e fazer, era uma questão de ter, também, algo a dizer e conseguir dar forma. “Então foi sorte (...) se não foi sorte foi inspiração. Não tem como ser nada, só ‘do nada acordei e veio essa música, ou sorte ou dom, porém, com o dom vem a inspiração para ajudar”.
Discordei veementemente – nesse assunto isso ocorre constantemente. Apesar de concordar que, sim, a inspiração existe, penso que uma canção, tal qual uma refeição para o Duque Leopold Mountbatten, é resultado de reflexão e estudo.
Afinal, não é estranho reduzir a algo externo todo o repertório, as horas pensando os versos, em silêncio, tentando criar uma melodia que não existia antes, as consultas aos dicionários. A Revisão de textos e matérias que tenham o contexto para descrever a cena da forma como a imaginei? Todos sonham, como comentou o psicanalista Christian Dunker em matéria para o Viva Bem do UOL: "No sonho, parte do presente vai ao passado e depois se projeta o futuro. Voltamos ao nosso baú de lembranças, repleto de desejos pendentes do passado, imagens, cheiros, momentos bons, ruins, desejos de infância. E assim resolvemos pendências em forma de um cinema privado. É o trabalho do sono: acertar contas com nossos desejos e também com nossas angústias".
A questão maior, nesse caso, é como a pessoa traduzirá estes sonhos? Uma prosa em um “sonhário”, comentando em meio a uma refeição familiar ou o esquecimento? Traduzir um sonho pode não ser questão de vida e morte, mas requer trabalho. Não há nada de novo nesse pensamento, é a velha história da razão entre inspiração x transpiração.No caso desta letra, o sonho poderia ser uma representação do passado ou do futuro, ao despertar na quarta-feira, recordei versos que escrevi na noite de 3 de outubro de 2016:
Foto de registro do moleskine em dezembro de 2016 |
Apesar de tê-los pensado
com melodia, nunca consegui dar seguimento a ideia que eles carregavam. Decidi
diluí-los nos versos novos. No dia 18 aproveitei um breve deslocamento de carro
com o intuito de levar a letra ao ponto de sua gênese! Ao fazê-lo notei que não
descrevia o futuro, afinal, ninguém saiu, não vi silhueta e os gritos também
não fizeram com que os habitantes adjacentes se manifestassem. Diferente da
canção, hesitei e parti. Afinal, as canções existem n’outro espaço-tempo.
Para ilustrar o post
pensei em fazer um desenho, afinal, não é minha intenção criar fractais para
todos os posts (muito abstratos) tampouco revirar os arquivos do domínio
público (o faço de quando em vez, mas é inespecífico demais) mas conhecendo os
locais, como criar distanciamento suficiente para retratá-los de forma outra?
Eis que, no mesmo dia seguinte a escrita dos versos, no grupo de Facebook do
projeto VIVIEUVI, liderado por Vivian Villanova, conheci o trabalho de IsabellaProença. Mais que isso, naquela mesma noite ela comentara o lema “feito melhor
que perfeito” frase esta que foi um dos motivadores para que eu iniciasse as
postagens no blog de uma vez. Gostei muito de sua interpretação visual para os
versos, uma vez que sequer havia a gravação da demo que acompanha esta postagem
para que se ancorasse. Ressignificou-se a composição.
Diferente de outras
composições feitas em 2020 como Tudo Outro Agora e Silêncio, Canto de duas
cidades foi composta no campo harmônico de Dó Maior. Enfim, outras diferenças
ficam para o futuro. Por hoje é só.
Nenhum comentário:
Postar um comentário