quinta-feira, 6 de outubro de 2016

Um Caminho para o Céu

"(…) Não creio ser um homem que saiba. Tenho sido sempre um homem que busca, mas já agora não busco mais nas estrelas e nos livros: começo a ouvir os ensinamentos que meu sangue murmura em mim. Não é agradável a minha história, não é suave e harmoniosa como as histórias inventadas; sabe a insensatez e a confusão, a loucura e o sonho, como a vida de todos os homens que já não querem mais mentir a si mesmos.A vida de todo ser humano é um caminho em direção a si mesmo, a tentativa de um caminho, o seguir de um simples rastro. Homem algum chegou a ser completamente ele mesmo; mas todos aspiram a sê-lo, obscuramente alguns, outros mais claramente, cada qual como pode." - Demian, Hermann Hesse



Um Caminho para o Céu (2007)

Estou a cair no profundo abismo
Do desentendimento
Onde as perguntas voltam vazias
E as respostas voltam cheias de perguntas

Sou vigiado por ladrões de informações
E por fracos que servem aos reis do submundo
Enquanto isso continuo a viajar
No submundo estou prestes a chegar

Correntes me aprisionam na passagem final
Correntes vivas, impiedosas. imorais
No paraíso é onde me querem
E perco a chance de estar no inferno

Pecarei no trem da piedade
E pagarei meus pecados com dinheiro
Descansarei em paz sem o doce ar poluído
E o som dos motosserras



         Quase sucumbi à tentação de usar uma frase de Jean-Baptiste Clamence, do romance, A Queda, de Camus. O título seria sugestivo no momento em que os versos da canção iniciam com "estou a cair". A composição de Lobão, de mesmo nome, viria a calhar com frases tais nada como um sorriso burro e paranoico para não perceber a velocidade da queda. Seu acústico MTV lançado em 2007 foi um dos fatores para que eu optasse por obter uma craviola. Digressões. Se a frase que permaneceu foi a de Hesse foi puramente por conta de sua obra Demian tratar, entre outros temas, do embate e contrastes entre o bem e o mal. Embora, devo admitir, quando travei contato com o manuscrito de Bruno Oliveira, a primeira coisa a me ocorrer foi como era distinta dos versos perdidos que possuíamos até então.
          O personagem da narrativa parece estar a margem, não ansiando por algo luminoso. Trata-se de um flash de uma história maior? Um vislumbre? O eu-lírico se jogou ou foi defenestrado por uma segunda força não mencionada? Ou muito me engano, ou havia um pequeno verso antes, ele comunicava o tempo em que a ação discorreria no decorrer do farfalhar das folhas de uma árvore. Ideia que acabou cortada, provavelmente para esse efeito súbito. Naquele momento, estavam novamente os três na garagem, no entanto, diferente do que ocorrera em Segredos em sussurros (http://goo.gl/2Q2P7o) Fabio não encontrava acordes que acomodassem a letra caótica. Depois de lê-la uma série de vezes cheguei a uma solução melódica que me agradou, numa inversão de papéis, o sr. Kulakauskas desenvolveu o dedilhado de acompanhamento. Cronologicamente, foi a primeira melodia que fiz em minha vida. Já ali, circular, como que não houvesse forma de escapar. Com a permissão de citar O Fantasma da Ópera, concluo que estava cruzando, naquele momento, um ponto sem retorno. Não havia como prever que, eventualmente, eu escreveria uma canção chamada Falsa Modéstia (https://goo.gl/ivsgW6), por exemplo.
           Partindo do momento em que a primeira melodia foi composta, os anos seguintes seriam dedicados a essa busca. Nomeei como "Um Caminho para o Céu" mais pensando nas ironias subentendidas no texto. O som das motosserras retornaria numa outra música, em 2011: Árvore da solidão. Autorreferência e circularidades sempre me cativaram. Uma curiosidade é que, Lenine, em seu álbum Chão, utiliza, literalmente, o som de motosserras na canção Envergo, mas não quebro.
        Certa vez, quando mostrei a letra, a resposta me pegou de surpresa: "É sobre corrupção, certo?"; Para mim, sempre tinha sido algo mais existencial, não deixava de fazer sentido. Não precisa ser sempre sobre a "grande corrupção", pode ser aquela que invade o cotidiano e vai se instalando como fosse seu lugar de direito. Hoje, ao tentar resolver uma situação qualquer no banco deparei com "respostas cheias de perguntas" numa burocracia, por vezes, ininteligível. Buscando pelos arquivos do ano de 2007 da Folha de São Paulo descubro que, no fim de setembro, houve uma paralisação dos bancários, seguida de ameaça de greve. Olhando para situação atual, parecem ecos. Estou exagerando? Naquele tempo isso não tivesse relação nenhuma. Creio a canção estava pronta meses antes de setembro, quando os envolvidos não se recordam, quem há para dizer? 
           Essa ode em nome da "pequena corrupção cotidiana" me surgiu quando, no horário de almoço, os colegas conversavam acerca de uma vez em que um funcionário recebeu, anos atrás, uma quantia exorbitante de horas extras em seu pagamento e, curiosamente, a retornou a empresa. Esse ato foi discriminado e zombado em seguida. Os risos aumentaram quando veio a informação de que o mesmo bom samaritano foi dispensado da empresa um ano depois de sua boa ação. Guardar o dinheiro de antemão seria o ato justo? Quem estivesse de passagem ali, poderia supor foi a conclusão daquele grupo. Em seguida, em frente à sede do jornal Diário de São Paulo, recebi o leve aceno do motorista de um ônibus de viagens, simplesmente por não ter atravessado a rua enquanto o sinal estava vermelho. A preferência ao pedestre não é absoluta, a ideia da sinalização semafórica é justamente controlar os deslocamentos! Fui, em seguida, surpreendido por uma viatura da polícia militar passando fugaz pelo corredor de ônibus da Av. Marquês de São Vicente. Não havia perseguição, congestionamento. Nada, enfim, que justificasse. De qualquer modo, sartreanamente, o inferno são os outros.

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