quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

Guardiã

"Indivíduos abertos, honestos e que falam a verdade valorizam a privacidade. Todos nós precisamos de espaços onde possamos estar sozinhos com pensamentos e sentimentos - onde possamos experimentar uma autonomia psicológica saudável e podemos escolher compartilhar quando quisermos." - bell hooks, All About Love: New Visions (2000)

 

Manuscrito original de Fabíola
Com intervenções minhas em vermelho

Guardiã (2020)
Letra: Fabíola Passos Almeida
Música: Thales Salgado

A culpa no externo pressionado 
- Errei.
A vergonha no estômago frio
- Sou erro.
O cuidado na inundação ocular
- Acolho.

O espaço diafragmático
- Inspiro.
O ar sonoro que escapa
- Expiro.
A responsabilidade da transformação
- Arrimo.

Retorno ao meu lugar
De guardiã de mim.

     Conforme menciono no post anterior Andando com meus Pés pensei que não comporia mais nada após outubro. Guardiã foi a segunda surpresa que tive em novembro e, pela segunda vez, baseada em versos da psicóloga Fabíola. Quando ela me mostrou os versos na tarde do dia 19/09 comentei que achava:

"interessante que essa estrutura de diálogo interno, meio um canto responsorial, é algo natural na sua forma de escrever, não? Será que isso é uma influência do período igrejista? É muito comum isso no cancioneiro litúrgico. Nesse quesito que falamos de "múltiplas identidades" você abre o conceito e fecha, e ao final usa uma "chave de ouro", é uma estrutura que lembra a de "beleza parasita" e eu acho interessante isso, essas formas de manter a coerência interna. Esse conceito de guardiã de si é interessante em si mesmo, já que é o oposto da negligência. Outra coisa que eu gosto na forma como você escreve é como você consegue carregar uma questão 'clínica' dentro dos versos, de repente, surge um "diafragmático", "desensibilizei", "indiferenciar". Isso mostra também coerência vocabular (não que você tenha compartilhado para ter uma análise estilística rs).

     Após seguirmos a conversa, eu não tinha a intenção de musicar sua síntese. Afinal, o ato vinha ocorrendo desde dezembro de 2019 mas... e se, em algum momento, minha criatividade findasse? Assim como ocorre o receio frente a uma página em branco, tenho receio de potencializar uma parceria artística e não conseguir dar seguimento. Hoje, tenho 31 anos, dos quais, 13 foram compondo. Há, no entanto, um espaço de cerca de três anos contínuos em que estive (por falta de melhor termo) em um bloqueio criativo. Minha narrativa ao retornar aos trabalhos foi que "estive por alguns anos consolidando novas referências para as composições" mas, não era a impressão que eu tinha enquanto vivia o período.
      Talvez, eu estivesse influenciado pelas recém-lançadas 
'Protect the Land' 'Genocidal Humanoidz' da System of a Down mas minha consciente para o resultado final foi The Last Stop da Dave Matthews Band. Desconheço os acordes que utilizei enquanto tateava a craviola. Apesar de atrapalhar a organização de composições a longo prazo, facilita a ilusão de que o processo de composição é mágico. Ainda que tenha sido feito de forma expressa, na hora do almoço. Esta pressa em achar acordes, riffs e gravar ainda ocasionou um incidente em que troquei arrimo por arrumo durante a leitura. Altera um pouco o sentido, todavia, se um dia houver uma gravação oficial, isso poderá ser corrigido.

quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

Andando com meus pés

"Toda arte é autobiografica. A pérola é a autobiografia da ostra. Federico Fellini" - The Atlantic, December 1965.

                                 



Andando com meus pés (2020)
Letra: Fabíola Passos Almeida
Música: Thales Salgado

Andando com meus pés sigo
No único ritmo possível
O Meu

Andando com meus pés sigo
Na única estrada que há
A minha

Andando com meus pés sigo
No único sentido possível 
O meu desejo

Andando com meus pés sigo
Na única estética possível
Minha boa forma

Andando com meus pés sigo
E percebo quão estranha foi
A ideia (que por muito alimentei)
De que só seria possível caminhar
Com outros pés

     Recebi estes versos no dia 29/10. A autora comentou estar escrevendo bastante e que eles deviam estar prontos cerca de duas semanas antes (imagino que por volta do dia 15). Musiquei no dia de finados. Minha intenção era fazê-la no ukelele. Inspirado por uma versão de Um Conto no Jardim que havia realizado no instrumento.  Entretanto, não conseguia me adaptar ao pequeno braço e tornei a repetir os três acordes (Dm C9 G) na craviola mesmo. Trocando o tom, esta progressão me lembra Wicked Game, de Chris Isaak, uma composição que sempre esteve em meu repertório enquanto na banda Falsa Modéstia.
      Parte do que criou um conflito quanto a como inserir esta composição no blog, foi o fato de ela ter sido "inesperada". Meu pensamento era que, finalizada A Equação do Hiato, meu foco seria direcionado à gravação de vídeos para composições de anos anteriores. O áudio presente nesta postagem é do momento seguinte à composição. Como pode ser visto no manuscrito, minhas interferências estão em vermelho e não afetam por demais o conteúdo do texto, mesmo na ultima estrofe, um pronome e um substantivo.
  Me identifiquei muito com os versos, principalmente com a conclusão que comenta quão estranha é a ideia de que só seria possível caminhar com outros pés. Ela reflete muito a própria existência das postagens no blog. Em 2020, por exemplo, apenas duas postagens não foram acerca composições autorais. Isso, por um lado, é desafiador, afinal, é preciso criar imagens, procurar frases, realizar gravações e o que mais for preciso para complementar o texto. Por outro lado, a probabilidade de que menos de dez pessoas cheguem a ler estas palavras também é grande, afinal: em um mundo em que artistas podem ganhar o Grammy com álbuns compostos e produzidos em seus quartos, qual o sentido de postar uma devo apenas com violão e voz? E mais: detalhar sua criação? Pode alguém chegar a esta página por coincidência? Talvez.  Certo é que se eu falasse de quaisquer álbuns de artistas renomados por aqui, teria um número maior de visualizações mas... o que isso iria dizer?

terça-feira, 29 de dezembro de 2020

Falsa Modéstia - Tirinhas

Projeto idealizado por bob, que escreve a maior parte dos roteiros, alinha o enquadramento, trabalha com os balões e arte final. Cuido dos desenhos e cores. Outros roteiros foram feitos em 2020, mas, não foram publicadas até o momento. Ainda que ilustrações autorais surjam aqui e acolá neste blog, ter a dupla de criação vertida em história foi inesperado e permite aproveitar influências e referências que não funcionam em uma letra ou prosa.

Storyboard e roteiro 05/10/2020
Inspirado em A Equação do Hiato, post do dia 26/12/2020


Episódio 0 - 02/10/2020
Após receber a proposta, fiz uma tira metalinguística
Pode-se notar minha falta de concisão ao cuidar do roteiro.


Storyboard e Roteiro: 03/10/2020
Um post sobre Um Conto no Jardim foi feito em 14/08/2016
Um dos primeiros posts no blog

Storyboard e Roteiro: 03/10/2020
Sendo Um Conto no Jardim uma composição com quase 15 anos
Foi uma das primeiras a ser contemplada com uma segunda história

Storyboard e Roteiro: 05/10/2020
Inspirada na música que também nomeia ao blog e à banda
(Não necessariamente nesta ordem)
Também se relaciona à primeira postagem, em 25/06/2016

segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

Ikiryou EP

“Esse tipo de fantasma é chamado de ikiryou, ou seja, “espírito vivente”. Não sei quanto aos demais países, mas no Japão há muitos exemplos disso na literatura. A história de Genji está povoada de Ikiryou. Nesse período Heian (séculos IX a XII d.C), ou seja, no universo espiritual do povo desse período, as pessoas eram capazes de se transformar em espírito ainda em vida, viajar pelo espaço e realizar seus desejos.” Kafka A beira-mar de Haruki Murakami, capítulo 23, p. 276, tradução de Leiko Gotoda 
Ilustração: Thales Salgado

     Deparei-me com o conceito de “espírito vivente” pela primeira vez quando lia Kafka à beira-mar, de Haruki Murakami e neste ano em que o distanciamento social é essencial ele me veio a mente. A metamorfose em espírito para pairar, intangível, sobre os pensamentos de outrem e retornar a mim pintado por outras vozes. Estas composições em voz e violão sempre estiveram sob o título Ikiryou EP. 
     O E.P. - Extended Play - no título surgiu em vontade de imitar os ídolos (como o Abbey Road EP dos Red Hot Chili Peppers) e sentindo, à época, que não passaria de cinco ou seis faixas. No decorrer de sete meses, o conceito foi fechado com as onze faixas a seguir, com links para cada uma delas: 

1. Beleza Parasita (letra de Fabíola Passos Almeida) 
2. Tudo Outro Agora (letra de Anderson Bezerra) 
3. Silêncio (sobre poema de Kariny Camargo) 
5. Ofício das Horas (sobre poema de Renato Bicudo) 
6. Concreto-Confronto (montada com um conto de Daiany Pontes)*
7. Identidade (letra de Fabíola Passos Almeida) 
8. Muitas em Mim (letra de Fabíola Passos Almeida) 

     No início, trabalharia apenas com textos com que tive contato de 2019 para cá, entretanto, quando me deparei com o poema de Kariny de 2011, não resisti musicá-lo. É sempre um exercício musicar versos de pessoas que conheço, independente do nível de intimidade. Mesmo se conheço os gostos musicais das pessoas com quem estou fazendo a parceria, não tenho como emulá-lo. A canção sempre se imporá como bem entende e caberá a mim, tentar traduzir uma parte na outra parte, como diria o poeta. 
  O pensamento para a capa era de mostrar uma alma pousando no corpo de um personagem deitado, como acabasse de retornar. No fim das contas, ainda que haja, no primeiro plano, uma figura deitada, a figura ao fundo, mesmo antropomórfica, ficou feia e em nada refletia o que eu tinha em mente (já subconscientemente, eu já não sei).

*As faixas marcadas contém ilustrações da artista Isabella Proença que emprestou sua sensibilidade para transpor ideias das canções em imagens. Por vezes, extrapolando o conceito inicial, todas elas são obras que merecem ser vistas mesmo sem a letra ou música.

sábado, 26 de dezembro de 2020

A Equação do Hiato

“Você não pode medir a afeição recíproca de dois seres humanos pela quantidade de palavras que trocam.” – Milan Kundera, A identidade

A Equação do Hiato (2020)
Letra e Música: Thales Salgado
Baixo: bob

Esta conversa começou
Somente há treze anos
Tenho para mim, não acabou
E, para isso, não há planos
Longe de mim, tentar prever
A sucessão dos fatos
Com o tempo, estamos à mercê
Urgir? É descompasso
Notícias quase disponíveis
Hiatos mezzo calculados
As redes, nem sempre, são críveis
Só iluminam um dos lados
Ilham segundos aprazíveis
Legam os gritos, enjaulados
Vem e vai: procrastinação
À morte digo: Hoje não"


     Uma mensagem em 26/08/2020 me fez começar a pensar em uma letra que comentasse “impossibilidades quânticas” dentro de minha visão no presente. 
     Já ouvi falar que qualquer previsão é falha (seria Kundera novamente?) e, seja quem for o autor, deve ter acertado. Como o verso “hoje eu sei só a mudança é permanente” que conheci com a Engenheiros do Hawaii. 
    Podemos acreditar que há certas verdades pétreas e, de repente, perceber que alguma chuva paulatinamente a esculpiu em formatos contrários à nossas intenções. Ainda assim, como criado pela ficção e me preparando para uma (possível, provável?) decepção com o próximo Matrix, me pego me ancorando também em alguns de seus temas como a “escolha” e a “crença”. Escolho acreditar que algumas coisas podem não ser eternas, mas nem por isso precisam acabar durante uma vida. 
     No dia 02/09 compus em minha craviola a melodia. Isso facilitou para que pudesse tentar encaixar os versos posteriormente. Como em 26/09 ainda me faltavam doze versos me coloquei a pescar referências na linha do tempo de uma rede social azul. 
    Terminei de escrevê-los na noite do dia 1/10 e, quando mostrei os versos a bob, ainda não tinha nome. Estruturalmente, os enxergo como um espelho/continuação temática de Canto de Duas Cidades De uma conversa com Kariny, veio a sugestão de chamá-la Hiato. Já havia musicado um de seus poemas de sugestivo nome Referência mas uma palavra apenas não bastaria para esta canção que viria a fechar o Ikiryou EP. Até haveria sentido, o álbum já continha uma Silêncio e uma chamada Identidade. 
Ilustração de Isabella Proença 
Sobre uma foto de 2011
(tempos pré-isolamento)

     No dia 03/10 me decidi por A Equação do Hiato, forma de homenagear conceitualmente ao compositor, produtor e multi-instrumentista Arjen Anthony Lucassen, criador de The Human Equation. A referência a frase de Syrio Forel surgiu na letra como uma negativa ao fim de uma conversa. Se pode se dizer “Hoje não” ao deus Morte, também se pode escolher que uma conversa vai continuar, enquanto seja de comum acordo de ambas as partes. 
    Sem acesso à melodia, a psicóloga Fabíola Passos comentou que a letra “sintetiza muito bem essa experiência que a gente vem vivendo de contato fragmentado, mediado pelas redes”. Foi curioso pois, só assisti ao Dilema das Redes finda a composição, no dia 04 de outubro. De todo modo, vinha conversando sobre as reações das pessoas a ele já há algum tempo. Sendo este um ano que praticamente obrigou os contatos a serem realizados na esfera virtual, todo este conceito do digital já vinha escoando em algumas letras como a de Tempo (que tem entre seus versos: Algoritmos sem verão/Algoritmos passarão/Darei vazão: A vida é um átimo!). 
     Ainda que eu tivesse intenção de manter a melodia em segredo por alguns meses (ela só seria postada em dezembro) a cantora e compositora Paula Lima pode ouvir uma versão voz e violão e, obviamente, bob teve acesso para que pudesse desenvolver a linha de baixo. 
     A ideia era, como vem sendo com as tirinhas, fazer um trabalho ‘just for fun’, a música fica no mesmo ciclo por praticamente sua duração total, saindo apenas no acorde final. Poucas horas depois ele veio com uma linha fluída, que não se fincava nas cabeças das notas que eu estava tocando. Sem essa experiência coletiva a música não existiria como se apresenta, afinal, coube a bob o trabalho não só de criar a linha de baixo como editar e sincronizar as duas faixas no vídeo de apresentação. Essa foi, provavelmente, a primeira união formal deste duo desde em onze anos, quando cometeram um cover de 3x4 que está perdido na rede.

domingo, 8 de novembro de 2020

Celebração

 “Pode não parecer. Há dez anos. Raramente tirava fotos. Os retratos, fazia com letra e música. Como este: celebração. A ideia do arranjo minimalista, quatro acordes, veio de Elephant Gun da Beirut. A época, ainda sob influência da microssérie Capitu. Então, em se tratando de dez anos de diferença. Antes, a letra. Hoje, um desenho. Fotos, para quê?” – 7 de fevereiro de 2019 em @fmodestia
Desenho feito em 2019
inspirado no mito grego subvertido na canção
    
    É difícil falar de “Celebração”. No fim das contas, ela parece resumir-se a um exercício breve na gravação da banda norte-americana Beirut, utilizam um ukelele. Pensei em como seria ter uma composição com acordes em uma outra ordem, mas despida da orquestração, por dois motivos: primeiro, me faltava a destreza técnica para tal e, em segundo, a ideia não era fazer uma versão nacional.


Celebração (2009)

Vamos celebrar o impulso cerebral
O pulso que não para
Para nos satisfazer
O culto ao oculto quando
Chove a chuva cheia de chagas

Esta noite serei teu Ícaro
E tu serás meu sol
Aposto que, isto posto,
Contrair-se-á teu rosto sem dó
Em contraste com meu rosto em dor

Não estou mais perdido agora não
Pois eu sei que o livre-arbítrio é ilusão
São aquele que não pensa como eu
E enxerga um mundo inteiro seu

   A gravação original tinha uma vocalização de diversas vozes sobrepostas durante a duração total (no vídeo atual, ela surge apenas no final) o que poderia alienar os possíveis dez ouvintes. Se você não sabe fazer uma segunda voz, mal conseguirá fazer uma terceira, então, já imaginou quão excruciante pode ter sido ouvir a tentativa.
    Sem ter habilidade técnica para criar harmonias vocais ou programar bateria, a ideia de tocar um projeto como o Elect the Dead de Serj Tankian, em que o artista toca guitarras, baixo, piano, vocais, sintetizadores, programação de bateria, escaleta e até sinos. Desse modo, a ação gregária, o apoio de outras pessoas com outros conhecimentos sobre música é essencial para fugir do formato “voz e violão” (ou voz e uke, como nesse vídeo).
     O primeiro verso parece retirado da canção Perfeição, lançada pela Legião Urbana quanto Renato Russo tinha 33. Assim como o segundo parece prestar tributo à “O Pulso”, lançada pelos Titãs quando Arnaldo Antunes tinha 30. Digo “parece” pois não sei se estava com estes artistas na cabeça quanto a letra foi escrita. Contava eu 19. Proporções à parte, todas estas comparações não levam a lugar algum. Ninguém precisa compor o que já foi composto, por mais que tenhamos grandes artistas que nos precederam como norte.
    Esse argumento surgiu recentemente enquanto conversava com a cantora Paula Lima. Ela me mostrou uma interpretação de uma composição minha e comentei que, dentro desta situação, eu era o Belchior e ela era a Elis Regina. Belchior lançou seu primeiro álbum aos 28 anos. Aos 30, nunca lancei nada. Medo, falta de interesse ou falsa modéstia? Em um desdobramento desta conversa, surgiu a questão de que as canções poderiam ser mais que um hobby se eu quisesse. Será? Fica a carta para o futuro, quem sabe eu chegue aos 70, me depare com este texto – considerando que eu alcance esta idade e não sofra de nenhuma forma de degeneração progressiva das células cerebrais – e pense: parece que ela estava certa e eu me enganei pelos últimos 50 anos. Quem sabe?
    É valido ressaltar, que os versos são repetidos duas vezes mostrando uma certa preguiça por parte de seu autor. Não foi intencional, mas... quando a compunha não senti que poderia ser de outra forma. Onze anos depois de sua composição, pude tocá-la no ukelele, de modo que o instrumento que inspirou a composição, encontrou a canção. Ciclos dentro dos ciclos ou o eterno retorno?

terça-feira, 27 de outubro de 2020

Lhe Escreveria

“Nem tudo que é ouro brilha,
Nem todas as pessoas que vagam estão perdidas;
O velho que é forte não murcha,
As raízes profundas pela geada não são atingidas.”
(TOLKIEN, The Fellowship of the Ring. London: Harper Collins Publisher, 2011., p. 170)

 

Arte por @isabellaproencart 

     A arte de Isabella Proença reflete os versos da canção do mesmo modo que o eu lírico diz que escreveria, mas, no fim não o faz. Mesmo assim, ela traz uma sensação tátil, ampliando mais uma vez o conceito para além de meu pensamento inicial.

Lhe escreveria (2011)

Lhe escreveria o poema extremo
Notei, porém, que da vida muito faltava ver
Não vira vulcões, não vira a neve
Desconhecia florestas e monumentos
Não vira exóticos animais
A deslumbrar com precisos movimentos

Não vi nada além de um fragmento
Em que eu lhe abraçava
E de tão perto minh’alma dançava

Lhe escreveria o poema eterno
Notei, porém, que da vida tanto faltava ver
Não vira monções
Uma nuvem breve passava e eu
Observava atento
Não vira caóticos temporais
Você surgiu como uma aresta no tempo

Não quis nada além
De que em seu dia um sorriso nasça
A poesia que há em você me basta

            Trecho de entrevista concedida a Jorge Luís Barros em 2011:

Jorge: Lhe Escreveria é metalinguagem (risos) você diz que escreveria algo, mas muito faltava a ver, você dizia que era uma mensagem de sms, como virou música?
 
Thales: Pensei em fazer uma melopeia, a melodia para a leitura de um poema. Parecia ‘inmusicavel’ era um texto, mais para prosa. Eu compusera uma melodia tentando emular Vitor Ramil ou Lenine, mas com poucos acordes. Nada complexo como eu costumava tentar fazer. Lia o poema enquanto praticava e passei a entoar alguns versos. Depois escrevi quatro versos novos dentro da mesma ideia, em virtude das rimas que eram na maioria internas no texto original.

    Há 26 anos ouvir sobre a traição de Saga ter ocorrido há 13 anos parecia um tempo muito longo. Aos 4, tudo parece levar muito tempo. Uma viagem de quarenta e poucos quilômetros, entre Arujá e São Paulo, por exemplo, parece interminável.
   Aos 30, ciclos de treze anos podem chegar em piscares de olhos. Se for parar para pensar, não falta muito para esta composição ter treze anos (!) por enquanto, ela tem apenas nove.
   Hoje, é bem difícil precisar exatamente quanto tempo eu estava sem compor antes de pensar no Mosaico de Estrelas. Há, sim, alguns rastros em meus e-mails. Em uma mensagem datada de agosto de 2011 eu dizia:

     Então, trazer mais uma canção separada traz uma sensação distinta daquela que existiu durante a criação e entrega originais. Não poderia ser de outra forma.

sábado, 17 de outubro de 2020

O tudo que digo

“Deuses Americanos tem cerca de 200.000 palavras, e eu tenho certeza que há palavras que simplesmente estão lá pois eu gosto delas. Eu sei que não poderia justificar cada uma delas.” – Neil Gaiman 
   A frase que inicia este texto é atribuída a Neil Gaiman. De acordo com a página da wikiquote em inglês ela foi dita em resposta a uma entrevista para a HarperCollins.com. Apócrifa? Talvez. Em minha breve pesquisa pela rede, encontrei diversas menções à frase, mas não a entrevista. Ela faz sentido com a letra presente neste post, assim como a frase de Gaiman que encontrei no site brainpickings.org e não consegui verificar a fonte: 
“Se você vai escrever apenas quando está inspirado, você pode ser um poeta bastante decente, mas você nunca será um romancista – pois você precisará atingir sua contagem de palavras hoje, e essas palavras não vão esperá-lo, esteja inspirado ou não. Então, você precisa escrever quando não está “inspirado.” (...) E o estranho é que seis meses depois, ou um ano depois, você irá olhar para trás e não vai conseguir lembrar quais cenas você escreveu quando você estava inspirado e quais cenas você escreveu porque elas precisavam ser escritas”. 
   Este é um texto que “precisava ser escrito”: há seis meses, emprestei o título do 73º episódio de Lost para falar que o blog estava n'O Início do fim por esforço ou serendipidade, pelo menos dez posts seguintes
foram sobre músicas que não estavam “na programação”, afinal, não foram escritas entre 2007 e 2013. 
    No entanto, falar sobre estas composições deste período ainda é parte da razão de ser deste blog e O tudo que digo, foi escrita em 2009.



O tudo que digo (2009)
  
Elite de toda inspiração 
Constante em minha canção 
Menina, napolitano talismã 
Bela tela em meu ateliê 

Tudo o que sinto por ti é lei 
E o que digo por ti é lei 
Tudo o que sinto por ti é lei 
Tudo o que digo por ti 

Altiva moça a me observar 
Etílico elixir, vou tomar essa 
Lícita emoção, tulipa 
Em porta de meu coração 

Tudo o que sinto por ti é lei 
E o que digo por ti é lei 
Solitude de mim afastou-se 
Quando encontrei você 

Que não gele, não vele, me zele 
Embeleze, me leve, tua imagem me anuvia 
Sina, amor, minha menina, sorriso 
Anjo a cuidar de mim

  Esta é uma letra das letras que “sei que não poderia justificar cada palavra”. Conceitualmente, ela é parte da safra inspirada pelo monólogo aliterativo da personagem título de V de Vingança, como é um trecho de Para Contato (Marte), de 2007 e AcaryeCarina também de 2009. 
   Outra influência parte das letras de Zeca Baleiro que tinha lançado os dois volumes d’O Coração do Homem Bomba em 2008. Há exemplos como Pastiche com rimas tais “Tive uma oficina de desmanche/No carnaval saio na tribo apache/Fiz uma ponta no filme ‘A Revanche’/Contracenei com a Irene Ravache”. 
    Essa composição não carrega o mesmo bom humor. A diversão, no geral, é um aspecto pouco abordado em minhas composições, talvez, por eu ser o tipo de pessoa que “se leva a sério” demais. Ainda assim, há palavras que eu simplesmente quis usar: elixir, anuvia, sina, talismã, napolitano. 
     Esta última palavra, inclusive, se deve a um termo mal-entendido da canção Shooting Star, primeiro encerramento da série Cybercops, cantada por Mika Chiba e com letra de Shun Taguchi, e composição e arranjos de Yuji Toriyama. No pré-refrão, é cantado ‘Mamoritai’ (守りたい), quero proteger, em livre tradução. Ouvindo com meus irmãos na transmissão da Rede Manchete nos anos 90, entendíamos “napolitaki” ou algo similar, o que criou um vínculo com essa palavra devido a repetição, e a posterior vontade de usar o termo. 
    A tulipa surgiu da ideia de ampliar o conceito floral nas letras. Se em 2007 havia girassóis, em 2008 a tulipa entrou no panteão, posteriormente surgiriam orquídeas e azaléas. Cada qual surgindo ou representando algo distinto. 
   Isto posto, é uma das canções com a qual tenho algum atrito hoje. Não que todas as composições precisem contar uma história, ter uma narrativa, mas uma canção construída ao redor de ‘palavras soltas’, me parece vazia. 
     Uma canção, não é apenas a letra é a melodia e há um motivo cíclico repetido de formas diferentes durante a melodia. A mão direita dita muito o tom. Talvez, este seja um dos motivos que levaram bob a descrevê-la em setembro de 2020 como tendo “uma pegada animal” com uma “parte rap/mpb”, mesmo que eu, o próprio compositor, não seja capaz de enxergar isso. Talvez, as músicas se construam pelo olhar e perspectiva “do outro”, “do receptor” e não do emissor. Seja como for, agora esta canção está aqui, no registro de voz de meus dezenove anos. 

P.S. O registro foi mantido mais pela dificuldade que tive em ensaiar o canto que por motivos históricos, é sempre bom lembrar. Como componho algo que não consigo cantar? Há mistérios não tão doces.

quinta-feira, 15 de outubro de 2020

Águia

“Um professor afeta a eternidade; ele nunca pode dizer onde sua influencia encerra” - Henry Adams em The Education of Henry Adams (1907) 

Arte de @isabellaproencart

A arte de Isabella Proença conseguiu encapsular a ligação entre a letra da canção que compus com Renato e a composição do compositor Bill Callahan. A águia vê a carejeira? Ou apenas a imagina? Ou ainda: a cerejeira é o estado de espírito da águia? Fica a critério de quem vê.



Águia (2011)
Letra e música: Renato e Thales Salgado

A querer mais espaço,
o cinza e o azul
Algo do branco.
Nos caminhos que passo,
vejo águias ao sul
E uma longe do bando.

Nas pedras remotas lembranças ebulem
Das terras,
outros animais e daquela paz
Que sentira...

E hoje ela busca nos ares um ninho
Em que possa repousar
Talvez haja outras como ela
Que avista uma velha cerejeira
E suas flores a dançar
O vento a envolve no celeste

Tantas montanhas em seu horizonte
Em rios se espelha o sol
Sua alma desperta
Põe-se a cantar:

Que seu passado a brisa levou
Que seu passado a brisa levou
Que seu passado a brisa levou


     Há alguns dias, Anderson comentou sobre uma publicação que escrevera há 11 anos:

    Quase sem querer, meu pensamento voou para as palavras de Fernando Anitelli. A ludicidade da língua portuguesa em ação. Ele comentou que, à época, estava realmente ouvindo muito a trupe, tornando a ligação, de algum modo, evidente. Essa forma de repaginarmos as referências é bastante discutida, do movimento antropofágico ao último longa de Charlie Kaufman: Estou Pensando em Acabar com Tudo. Trago o texto de meu amigo por alguns motivos, de eu ter gostado do texto a ele poder exemplificar a ideia. Passando pelo fato de que a própria letra desta composição trabalha este expediente de uma forma ou de outra.
    Em 2010, enquanto me familiarizava com meu primeiro Moleskine eu pensava em questões bucólicas influenciado pelo álbum de Bill Callahan "Sometimes I Wish We Were An Eagle". Principalmente pela composição All Thoughts are Prey to Some Beast que inicia com os versos "a arvore desfolhada parecia um cérebro. Nos galhos, os pássaros eram todos os pensamentos e desejos em mim". Esses pensares avulsos ganharam uma página e ficaram ali, competindo com outros pensares, por algum tempo. Não sei dizer quantas vezes reli ou tentei salvar algo dali, pode ser que nenhuma, mas... fica como ilustração.


     Não fica claro, para mim, o momento em que, de uma conversa com meu ex-professor de violão, Renato Souza, surgiu a ideia de que eu fosse visitá-lo para tocarmos um pouco. Tenho registro de ter enviado a gravação que ele fez da música na noite de um sábado: 05 de fevereiro de 2011. Então, imagino o encontro tenha tomado parte em algum ponto de janeiro daquele ano. Ainda eu houvesse presenciado sua habilidade para personificar a "bala de banana Joice" em uma canção em uma de suas aulas, e que ele tivesse musicado poemas meus como a primeira versão de Solipátria e também a versão que levou a minha a ser chamada de O Sol Só II, ele já não ministrava aulas no programa Escola da Família há alguns anos e acabaria por ser um "reencontro". 
     Abaixo, pode ser visto parte do processo de composição da composição, salvo melhor juízo, Renato folheou o caderno de 2010 em busca de ideias úteis e as que fomos escolhendo iam para o caderno de 2011, recém estreado. Há algumas questões pontuais que tem bem a minha cara, como "ebulem" ou o mais-que-perfeito "sentira", mas a lembrança era de sugestões e ideias partirem dos dois lados, com Renato propondo as alterações e mudanças de atmosfera na melodia.
      Penso nesta composição sempre que chega o dia dos professores e é por isso que o texto abriu com uma frase da obra de Henry Adams. Para além desta composição, há uma série de ramificações ecoam de diversos modos: seja recebendo a discografia de Raul Seixas, me apresentando ao Acid Pro da Sony (várias canções daqui foram gravadas com este programa), ou demonstrando como grandes grupos poderiam agregar a apresentação de uma mesma canção, cada qual atuando de forma distinta com o instrumento. Estes conhecimentos, sempre estarão presentes, independente do espaço e do tempo.
       Semanas atrás, escrevi uma nota em que dizia: 'Fico contente de ter atendido com meu irmão o anúncio que falava em aulas de violão gratuitas aos sábados, no Programa Escola da Família. Esse foi um dos momentos que conduziu a este dia, em que dois alunos da E.E. Esli Garcia Diniz e dois alunos da E.E. Dr. René de Oliveira Barbosa se apresentavam juntos.' Mas não era só o programa o responsável, era, de uma forma ou de outra, o professor que fazia a diferença em criar o ambiente estimulante em que grupos diversos transitaram. Já diria Gessinger que "a vida não é um jogo de palavras cruzadas onde tudo se encaixa" mas... nenhum outro professor houve. que nos incentivasse a tocar Homens-Caixa. Coisas assim fizeram toda a diferença.

Sublinhado em rosa
Pensamentos que
Viriam a se tornar
a canção Dádiva

sábado, 10 de outubro de 2020

AcaryeCarina

“A ocarina é um instrumento de sopro em formato oval ou oviforme (expressão web-dicio,) feito, geralmente de porcelana, terracota, madeira ou pedra. A ocarina pertence ao segmento instrumental das flautas e é um dos instrumentos musicais mais antigos do mundo. Possui geralmente a forma oval tendo de quatro a doze furos para os dedos Um tubo chamado de passagem de ar (airway ou windway, em inglês) projeta-se de seu corpo servindo de bocal. Normalmente é feito do mesmo material da ocarina, mas pode ser feito de um material equivalente.” – Definição presente na Wikipedia



 

AcaryeCarina (2009)

Acary de Iracá arcanjo tocava ocarina
Carina ouvia a ocarina e amava Acary
Acary tocava a ocarina não via Carina
Carina sonhava todo o santo dia com Acary

Toque, toque Acary
Não deixe de tocar
Pois amor de ocarina
Faz Carina sonhar

Carmesim era o vestido que para a festa ia Carina
Acary em seu caritózinho não sabia o que vestir
Carina tinha carisma de menina bailarina
Acary não era caribenho muito menos carijó

Toque, toque Acary
Não deixe de tocar
Pois amor de ocarina
Faz Carina sonhar

Acary, meu caro, carece do amor de Carina
Carina carece das caricias que daria Acary
Em Iracá Arcanjo disso tudo o povo já sabia
Carina e Acary em cárcere platônico estão

Toque, toque Acary
Não deixe de tocar
Pois amor de ocarina
Faz Carina sonhar

Acary Carina carmesim a ocarina
A ocarina cárcere arcanjo Acary Carina

    Em um faixa a faixa escrito em 30/01/2010 eu dizia que “a faculdade me fez escrever coisas diferentes, e o que faltou de jogo de palavras na música anterior (O tudo que digo) entrou nessa. Um reggae sobre Acary de Iracá Arcanjo sua ocarina e o amor de Carina. Algo que eu pretendo transformar em conto futuramente. O refrão veio de um conto que minha mãe contava pra mim quando criança “La flor de Lirolay” e que dizia em algumas partes ‘Toque toque pastorzinho nunca deixe de tocar, os meus irmãos me mataram pela flor de Lirolay’.”
    É curioso ter este breve registro escrito há dez anos, por alguns motivos. Por exemplo, nunca escrevi o referido conto. Olhando hoje, inclusive, vejo encontro grande dificuldade em entender qual seria o seu conteúdo. Quem é Carina? O que ela faz? Além de sonhar com Acary todos os dias? Não sei hoje, tampouco sabia na época. Meu interesse era puramente estético, brincar com palavras. O que se destaca nos últimos versos em que se repetem “Acary, Carina, Carmesim, Ocarina, Cárcere, Arcanjo”, mas se encontra em maior ou menor grau por toda a letra. 
   A própria cidade “Iracá” nasceu de “Acari” lido ao contrário. A ocarina surgiu como referência ao jovem Tapion, personagem surgida no décimo terceiro filme de Dragon Ball Z: O Ataque do Dragão, lançado em julho de 1995. Me admira que haja tão poucas menções à animes ou mangás nas letras que escrevi, sendo mídias com as quais tenho muito contato há, pelo menos, vinte e seis anos.
     Quando adquiri o livro de Celina Bodenmüller e Fabiana Prando “A flor de Lirolay e outros contos da América Latina” lançado em 2015 pela Panda Books, qual não foi minha surpresa ao perceber que minha citação ao conto estava errada? A tal flauta cantava “Não me toque pastorzinho, apenas me deixe contar” e não “Toque, toque pastorzinho, nunca deixe de tocar”. Como a memória confundiu-se assim?

terça-feira, 22 de setembro de 2020

Basta olhar bem

 “É fácil prever depois que aconteceu, mas a moral da escrita, para mim, é que quando você está se sentindo amedrontado e nervoso sobre algo e você está bastante convencido de que pode ser um grande desastre, é exatamente a ideia que você deve seguir.” – Damon Lindelof, em entrevista para Emily Zemler, da Esquire, em 7/05/2014

De volta à ilha em arte de @isabellaproencart

 

Basta Olhar Bem (2020)
Letra e Música: Thales Salgado

Boa noite meu amigo
Como vão seus sonhos?
Ainda que te veja em vídeos
Parte, só suponho
Que, por vezes, é corrida a vida
Divididas vias, sei

Gosto de ver-te assim, feliz
E sem amarras
Mesmo sem objetivos
Ou imensos planos
Que possamos estar sempre além
De um sinal fechado

Eu sei
Que a saudade é só uma palavra
Talvez
Ainda nos vejamos numa estrada
De som...

Mesmo a gênese oculta
Já que todos vem de algum lugar
Saiba: mesmo sem perguntas
Que seja natural falar

Copiamos os sentidos
Para falar de amor

   O embrião de Basta Olhar Bem surgiu ao fim de 2016. Á época, estava retomando as composições após um hiato criativo de quase três anos. Não deve ser coincidência que, após ouvir a composição de Bob: Como pode ser verdade? Alguns pensares começaram a ebulir. Ainda assim, há sempre mais ideias que canções.

   Aconteceu quase da mesma forma que Canto de duas cidades levou tempo para tomar forma. A diferença? Por qualquer razão, o registro foi feito fora do moleskine habitual. Encaminhei via WhatsApp e a canção, aí com cerca de 1 minuto, cumpriu sua primeira função. Mas ela acabou não fazendo parte do que veio a se tornar o “Nada há de novo sob o sol”.

    Com o passar dos anos, veio a intenção de retomar e reouvir a canção, eu me lembrava apenas que ela começava com “Boa noite meu amigo, como vão seus sonhos” e que terminava dizendo “talvez ainda nos vejamos nessa estrada de som”.

 

Resquício dos versos originais

Decidi então anotar os versos de que me lembrava e escrever outros versos que completassem a letra e ainda fizessem sentido. Ali ela ficou por alguns dias, até que, na noite em que ouvi sobre a triste partida de Chadwick Boseman e, motivado pelo fantasma de nossa finitude, decidi me debruçar com o violão, escrevê-la e enviá-la.

   Enquanto escrevia, a minha ideia é que seria uma composição contrária à narrativa de Sinal Fechado de Paulinho da Viola. Aqui, existe a possibilidade de contato e ela é aproveitada das maneiras que são possíveis. Sejam vídeos, textos, lives, vlogs. É muito fácil deixar o sinal abrir e partir. Às vezes, não há outra opção, mas, se for possível manter a ligação, e não for um problema para ninguém, o que impede? O final da letra referencia à canção Tributo aos sentimentos

   Quando entrei em contato com a artista Isabella Proença para falar sobre o conceito da arte que ilustra este post, falei sobre Paulinho da Viola, falei um pouco sobre a história da letra, mas, mais do que isso? Falei um pouco sobre Lost e como “nem tudo era o que parecia ser” na série - mesmo na ilustração este conceito se aplica, basta olhar bem. Além disso, não é surpresa para ninguém que a pessoa que escreveu 108 Minutos e Constante pensa na série sempre que acorda às 8h15. O voo 815 da Oceanic Airlines está na ilustração para Identidade mesmo que o “evento” tenha acontecido no dia 22/09. Há citações à quinta temporada na letra de Fim e quase surgiram em outras letras, troque algumas palavras comigo e a probabilidade de me ouvir falar em Lost alguma vez, é grande, portanto, ouvir sobre ela é um risco que minhas amizades correm. Hoje, faz 16 anos que a série estreou. Em maio fez dez que ela acabou. Seja como for, imagino que citações a ela podem escassear, mas não acabarão. Se não pudermos viver juntos, nós vamos morrer sozinhos. 

sexta-feira, 18 de setembro de 2020

Outra versão de nós

"Em certas ocasiões, o destino se assemelha a uma pequena tempestade de areia, cujo curso sempre se altera. Você procura fugir dela e orienta seus passos noutra direção. Mas então, a tempestade também muda de direção e o segue. Você muda mais uma vez o seu rumo. A tempestade faz o mesmo e o acompanha. As mudanças se repetem muitas e muitas vezes, como num balé macabro que se dança com a deusa da morte antes do alvorecer. Isso acontece porque a tempestade não é algo independente, vindo de um local distante. A tempestade é você mesmo. Algo que existe em seu íntimo. Portanto, o único recurso que lhe resta é se conformar e corajosamente pôr um pé dentro dela, tapar olhos e ouvidos com firmeza a fim de evitar que se encham de areia e atravessá-la passo a passo até emergir do outro lado. É muito provável que lá dentro não haja sol, nem lua, nem norte e, em determinados momentos, nem hora certa. O que há são apenas grãos de areia finos e brancos como osso moído dançando vertiginosamente no espaço. Imagine uma tempestade de areia desse jeito". Kafka à beira-mar, Haruki Murakami. (Tradução de Leiko Gotoda)

Arte de @isabellaproencart 


Outra Versão de Nós 
Letra: Thales Salgado (escrita em: 25/01/2019)

Cai outra madrugada
E pela estrada até
Pensei em te contar
Tenho visto ponteiros
Tão certeiros nas veias
Na pele e mais
“Também vês?”.

Tantas pontes queimadas
Inocência vitimada
E quero mais
Do que for bom.

E todo o mal que eu causei
Direcionado a mim, eu sei
Ninguém mais pode expiar.

Agora alvoreço
Pesa o preço
De nunca cair em si
Bem e mal são acasos
Espelhados aos caminhos
Do sentir.

Ninguém será sempre feliz
Vivendo a vida sem matiz
Quando o contraste nasce de sofrer.

Cada tempestade
Quando invade
Vem para nos fazer
Viver outra versão de nós



No moleskine usado entre 2011 e 2012
Entre John Frusciante e Vitor Ramil

     A foto acima é importante pois pontua o Tempo que levou para finalizar esta composição. Ela começou em algum momento de 2011 e estagnou em 2012. Imagino a faísca inicial tenha queimado na segunda quinzena de julho, após o lançamento do single The Adventures of Rain Dance Maggie do Red Hot Chili Peppers.

    Sendo o primeiro lançamento após a segunda saída de John Frusciante, havia, então, um estranhamento em como a banda prosseguiria – após ter tido a possibilidade de ver três shows da banda no Brasil com Josh Klinghoffer é impossível dizer que não foi para melhor, uma vez que, sendo fã da banda até então, não havia visto nenhum – o que me levou a me debruçar na carreira solo do músico. Shadows Collide With People, To Record Only Water in Ten Days, The Empyrean… apenas para citar alguns. Me chamava a atenção como suas composições fluíam e eram capazes de mostrar diversas facetas, muitas vezes no mesmo momento. Haveria possibilidade de tentar replicar um pouco disso? Alguns bends, um pré-refrão, um refrão! Nasceu uma melodia que foi chamada por nove anos apenas de RHCP, pela relação que ela guardava com a banda.

     O que impedia a letra de nascer, então? Podia ser a influência de Vitor Ramil. Em sua obra Satolep, um personagem comenta “nascer leva tempo” (em 2013 eu viria a referenciar este verso em Notas fora do Lugar mas não sabia disso naquele momento).

      Algumas de suas letras conservavam a característica de repetir trechos melódicos, mas não repetir a letra, elas não necessariamente “espelham” a estrofe anterior até o refrão, muitas vezes apresentando uma narrativa ou mais. Minha intenção era fazer algo dessa forma. Algumas ideias para a letra estavam ali desde o início: “ninguém nasceu para ser feliz/sentir a vida sem matiz/cria o contraste é o sofrer...” mas criar uma narrativa que conduzisse a isso, estava em um beco sem saída; como John ou Vitor fariam?

        Lendo e ouvindo suas entrevistas, descobri que ambos possuíam, cada qual a seu modo, uma série de fundamentos que guiavam suas composições. Enquanto Frusciante comentava sobre “ideias, visões, formas, cores, arte, anjos da guarda, religião e espiritualidade”, Ramil delinerara sua Estética do Frio, ancorando ou encontrando em suas composições “rigor, profundidade, clareza, concisão, pureza, leveza e melancolia”. Se pensarmos o conjunto “religião e espiritualidade” como uma coisa só, podemos pensar que ambos estavam próximos ao número sete.

      Sete artes, sete maravilhas do mundo antigo, sete maravilhas do mundo moderno, sete sábios gregos, sete virtudes, sete propriedades da matéria, sete pecados capitais, sete dias da semana, descansar ao sétimo dia, sete anões, sete léguas, sete vidas de um gato. Sete mares, Sete Cidades. Sete notas musicais. Sete mentiras, multiplicadas por sete, multiplicadas por sete outra vez. Sete anjos com sete trompetes... sete e sete são quatorze com mais sete vinte e um, Zazá sumiu ficou um zum zum zum. Tantos setes por aí, mas nenhum para chamar de meu.

OITO ANOS DEPOIS

        No décimo sexto dia participando do desafio de escrever 100 palavras por dia professor proposto pelo professor de Escrita Criativa Tiago Novaes me peguei em um longo congestionamento na marginal Tietê enquanto me dirigia ao trabalho.

        Ali, ilhado sem enchente, decidi revirar os arquivos antigos e me deparei com o arquivo intitulado RHCP. Poucas pessoas a tinham ouvido o instrumental até então, entre estas pessoas o artista, baixista, designer, e amigo Bruno “Bob” Barduchi Oliveira –  basta olhar bem, normalmente ele está envolvido nestas empreitadas – mas não havia muito a dizer: nada mais eram que alguns murmúrios e vocalizações aleatórias. Até que a letra surgiu.

       É difícil falar sobre ela, pois, ela foi construída apenas pela vivência de anos e a necessidade de reunir cem palavras. Nada além. Não contando o título, a letra é composta por esta centena.

       Posso dizer com alguma certeza que as pontes queimadas podem ter sido inspiradas em Burning in the Skies da Linkin Park (estou nadando na fumaça das pontes que queimei, então, não se desculpe, estou perdendo o que não mereço). “Expiar” tenho certeza que tirei da cena em que Kanon de Gêmeos recebia a Agulha Escarlate de Miro para provar sua fidelidade à deusa Atena. Assim como o conceito da tempestade pode ter sido influência inconsciente de Murakami, por isso ela inicia este post.

PINTURA PARA UMA CANÇÃO SEM NOME

      Quando encaminhei para Isabella a proposta de parceria para fazer esta ilustração, ela ainda não tinha nome. Imaginei que tendo uma data prevista para escrever, ele viria. A pintura que ela realizou trouxe uma série de outros significados para a canção. Eu sabia que precisava ter roxo, mas, por ter escrito enquanto estava em um ônibus, tinha dificuldade em imaginar a história fora do transporte. As soluções e traços que ela apresentou me levaram a diversos lugares: Meia Noite em Paris, Estúdio Ghibli, se fizer à praça do coreto de Arujá, pensei até mesmo em Vanguart, pelo Semáforo. Artes assim amplificam os sentidos.

sábado, 12 de setembro de 2020

Muitas em mim

“A afirmação de Aaron Copland de que “cada nova obra traz consigo um elemento de autodescoberta. Devo criar a fim de me conhecer, e, já que o autoconhecimento é uma busca sem fim, cada nova obra é apenas uma resposta parcial à questão ‘quem sou eu’, e traz consigo a necessidade de continuar a busca de outras e diferentes respostas parciais” é uma maneira diferente de expressar a mesma necessidade. Pessoas conscientes de uma divisão aguda dentro de si são impulsionadas a criar de forma recorrente, em parte pela necessidade de curar a divisão e em parte a fim de formular ou descobrir sua própria identidade.” – Anthony Storr – A Dinâmica da Criação, Benvirá, 2013, p.409 (Tradução de Ana Cláudia Fonseca e Claudia Gerpe Duarte)

Representação de diversas faces de Katy Perry em uma.



Muitas em mim (2019)
Letra: Fabíola Passos Almeida
Música: Thales Salgado

Povoada pelas contradições
Persigo a luz
Sem notar que caminho
No escuro

Escolhi o que é verdade
Reduzi o resto a uma farsa
Neguei minha multiplicidade

Neguei minha humanidade
Nem por isso sentei à mesa
Com os deuses

Afinal, quem sou eu?
Eu sou muitas em mim




A PIRAMIDE

    Identidade e Beleza Parasita formam uma pirâmide quadrangular em Ikiryou EP.  
Considero que, conceitualmente, Muitas em Mim, junto a
     As três canções foram compostas sobre versos da psicóloga Fabíola Passos Almeida, de modo que ela representaria “a base”.  A face lateral direita, o Leste, seria a composição deste post, “o início”. Identidade, seria a face oposta, frente ao poente. A face frontal, é Beleza Parasita, melodicamente, a composição mais diferente desta safra. Eu, enquanto compositor, represento a face contralateral, oculto como o ‘homem atrás da cortina, o mágico de Oz’.

O artista Bob Barduchi representou visualmente
o conceito que permeia a "trilogia"
    Ajo como receptor das palavras e as transmuto em melodia, mas evito fugir dos temas ou alterar versos, mesmo que todas estas canções tenham sido compostas sem avisar a autora previamente. Há, de todo modo, uma troca.

O PAPEL DA FACE OCULTA

    Recebida em seis de dezembro de 2019, a composição estava pronta já no dia 7. Se me permito uma influência para esta melodia foi a canção Furo 2 (Sangue do Paraguai) da banda carioca Baleia.
Minha sensação foi a de tentar, em seus versos iniciais, passar a lentidão. Assim, optei por alongar determinadas sílabas. Tal como ela inicia “poooooovoada peelas contradiçõõões...”.
O manuscrito que precedeu a canção
Em algum momento surgiu um “é” ao cantar a estrofe, em que posso ter pensado? ‘O papa levou um tiro a queima-roupa é, é’ ainda assim, foi um incidente. Mas... foi mesmo?
    Afinal, se há em mim o interesse pelo trabalho de outras bandas, como evitar que isso “vaze” para minha própria criação? Talvez, essa influência não seja Thanos, mas seja “inevitável”.
    Carece de fontes, mas já ouvi – e posso até ter utilizado em um texto anterior – que desenvolvemos nosso estilo emulando nossos ídolos. Na didática da invenção o poeta Manoel de Barros afirma “repetir, repetir – até ficar diferente” em Mar Deserto, Moska canta “repetir, repetir, repetir... até ficar diferente”. Você, leitor ou leitora ainda está aí? Os parágrafos passados parecem caóticos demais? Para mim, parecem, mas são importantes no sentido de informar que, se há uma essência em mim, ela não é poesia, mas prevalece.


FRAGMENTOS

    Por algum tempo, pensei encontraria uma chave referente aos conflitos entre identidades mencionado nas letras nos estudos do psicanalista Erik Erikson, e, após consulta inicial por alguns comentadores, é provável que resida algo que apenas um mergulho propriamente dito possa trazer à tona.
   Contrariando minha expectativa, uma das frases que fez sentido para mim foi proferida pelo profº Neil Mackinnon em uma matéria para a Universidade de Guelph há cerca de dez anos, quando ele publicara com David Heise o livro Self, Identity and Social Institutions.:

"A influência pós-modernista nas ciências sociais têm questionado se as pessoas possuem um "eu" coerente e estável. Alguns argumentaram que um mundo fragmentado leva a uma fragmentação do eu. Mas demonstramos que, de fato, as pessoas podem ter um eu nuclear que é coerente e estável mesmo em nossa sociedade pós-moderna".


FRAGMENTOS EM IMAGENS

    Foi, também, devido a esta frase, que entendi que a imagem a ilustrar o post deveria ser essa. Elaborada por uma sugestão de Mariana Licori, que, em fins de julho comentou que o Portal Katy Perry abriria inscrições para o The Smile Museum. Assim que ela comentou, uma arte surgiu “um retrato frontal, dividido em seis faixas verticais com detalhes de cada uma de suas fases, por meio do cabelo e maquiagem” As matrizes escolhidas foram:
   Hello Katy – 2009, California Dreams – 2011-2012, Prismatic World Tour -2014-2015, Witness World Tour – 2018 e Smile – 2020. Representando a Katy Perry “ortônima” me inspirei em seu visual clicado no tapete vermelho do iHeartRadio Music Awards em 2019.
    As transformações visuais da artista valem publicações inteiras, por isso, decidi por, na maior parte, ater-me apenas no aspecto de divulgação das turnês. A silhueta que serviu de base é inspirada na foto que consta em uma matéria de Petra Gulielmetti em julho de 2013 para o site glamour.com.
   Para que a ilustração não se resumisse à cronologia, os estilos foram colocados aleatoriamente. Muitas faces, em uma pessoa só.

domingo, 6 de setembro de 2020

Identidade

“Escritores estão entre os mais sensitivos, mais intelectualmente anárquicos, mais representativos, mais exploradores artistas. A habilidade do escritor para imaginar o que não é o eu, familiarizar o estranho e mistificar o familiar – tudo isso é um teste para o poder dela ou dele. As linguagens que ela ou ele usam (imagética, estrutural, narrativa) e o contexto social e histórico em que essas linguagens são indiretas e diretas revelações desse poder e suas limitações.” Toni Morrison – Conferências Massey em Harvard, 1990


A LETRA


Identidade (2020) 
Letra: Fabíola Passos Almeida
Música: Thales Salgado

Passei um tempo acreditando ser você
Me acostumei com seus desejos
Cumpri suas metas e te levei alto

Passei um tempo fugindo de mim
Escondi minha história e cicatrizes
Dessensibilizei meus sentidos e adormeci

Até que despertei

Mas já faz tanto tempo
Que o meu corpo não parece mais meu
Que a minha voz mudou o tom
Que não reconheço esse lugar

Despertei no escuro

Passei um tempo sem identidade
Procuro maneiras de juntar os pedaços
Será possível criar uma nova forma?

Que pareça tanto com você quanto comigo?


PENSANDO IDENTIDADES

     No livro A Dinâmica da Criação, o psiquiatra Anthony Storr buscou analisar mecanismos da criatividade. Nele, são discutidos motivos e condições que levam a atividade criativa a se manifestar. Seus últimos capítulos são dedicados à “busca por identidade” e “integração” e auxiliaram em minha elaboração sobre a composição.
A autora dos versos
     Em determinado ponto Anthony afirma que “É fácil uma pessoa criativa, produzindo uma obra depois da outra – obras talvez tão distintas umas das outras como a Sétima e a Oitava sinfonias de Beethoven –, possa ter dúvidas sobre a continuidade de seu ser, mesmo que um observador isento possa perceber tal continuidade com absoluta clareza.” 
     O trecho acima é importante para esta composição, pois, foi apenas ao ler uma narrativa em prosa escrita pela psicóloga Fabíola Passos Almeida 5 meses e 28 dias após a letra, que a faísca de interesse para musicá-la surgiu para mim, diferente de versos como os de Beleza Parasita e Muitas em Mim que respondi com uma melodia horas depois de visualizar os versos. Na primeira leitura que fiz, ainda em fevereiro, pontuei que me parecia uma “despersonalização do eu-lírico” como se o mesmo estivesse “despersonalizado, se enxergando em terceira pessoa” e ela replicou que mais seria mais um “eu fragmentado” uma vez que, na psicologia, a “despersonalização” pode ser diferente.

A MÚSICA

     Para esta composição meu interesse foi traçar uma linha coerente na narrativa de meu cancioneiro. Assim como a primeira composição que fiz em vida (Um Caminho para o Céu, com letra de Bruno Barduchi Oliveira) contava apenas com os acordes “Gm F Cm Eb D” utilizei em Identidade “Eb7 Dm Gm (Gm7) F Cm A7” não é meu interesse aqui debater questões teóricas. Apenas pontuar que, mesmo em tons diferentes, houve uma procura consciente mais de intermediar minhas próprias composições que transmitir uma emoção específica.
     Na experiência do músico e terapeuta transpessoal Arthur Belino “os principais lugares que a música ocupa (para ele) são de cura e de integração com o mundo e com o outro”. Ele explica que no processo de composição ele vai se compreendendo e que “as melodias que surgem neste processo de composição expressam bastante do que há naquele momento.”Sobre esta continuidade na identidade criativa, Storr pontua:

“Repassando anos de trabalho, um homem pode se surpreender ao descobrir o fio escarlate de sua identidade ao longo de uma série de obras que lhe pareciam muito diferentes na época em que foram concebidas. Ele também descobre com frequência que ideias que a ele pareciam ter ocorrido apenas ontem já estavam implícitas em trabalhos anteriores, e tiveram precursores óbvios que ele deixou de notar. Na verdade, pessoas criativas geralmente são seres mais contínuos do que pensam.” p.383

     Quando comentei com a autora acerca das conexões ela mencionou que realmente há uma conexão entre os textos, mas que ela mesma já não tinha o primeiro em mente. Dessa forma, pode se dizer que há continuidade tanto para a obra dela, quanto para a minha. Ainda que, no meu caso, tenha sido uma escolha consciente.
      Fiz o possível para manter o texto na íntegra, salvo inserções ou omissões pontuais a fim de manter o verso na melodia. Um dos pontos mais difíceis foi encaixar “dessensibilizei”, além de ser um ponto importante na letra, queria ter uma composição com a palavra, pensando em “Desensitized by TV” presente em Boom! da banda System of a Down. 

IDENTIDADE EM PROSA
(Fabíola Passos Almeida - 2/08/2020)

Acordei e me dei conta: algo transtornou meu quarto.
Olho ao redor na tentativa de me situar, todas as coisas estão fora do lugar, só as paredes permanecem.
(Paredes cinza, ciano e pêssego).

Logo percebo: eu também permaneci aqui. Não com as roupas que eu lembro, não com os cabelos penteados, mas estou aqui ilesa. 

Ilesa? Ilusão. O quanto de mim se quebrou nesse quarto? Sinto o corpo exausto, a cabeça pesada, dores. 

Sobramos eu, as paredes, as dores, a bagunça e a dúvida: o que aconteceu?

Manuscrito da letra, 03/02/2020
Procuro um espelho, encontro. Inteiro, mas no chão. Coloco-o no lugar (ou melhor em algum lugar em um ângulo mais adequado). Encontro uma figura pouco nítida, preciso apertar e esfregar os olhos até chegar ao foco possível. 

O tremor das minhas mãos anuncia o assombro que me causa olhar para a figura que avistei. Em "um milímetro de um segundo" uma incômoda constatação aterriza em minha lembrança... pelo estômago começo a congelar até os ossos, tremor, calafrios, confusão mental. 

Olho para o espelho, mas não me vejo. Na verdade, revelada no reflexo está ela com seus olhos cintilantes de energia, o sorriso aberto exagerado, e sua obsessão de ser vista. Fecho os olhos, abro, observo minhas mãos com a sensação que elas não me pertencem. Mais calafrio, náusea, angústia.

Angústia que vira água, grito e que tenta sair de mim. Mas quanto mais tenta sair maior fica. 

De volta ao espelho eu respiro. "Calma, calma, calma, volte". Olho e encaro. Aos poucos a nitidez revela minha boca, meu queixo, nariz, meus olhos. Ela se foi. Culpa e alívio me ajudam a fazer a lista mental de como vou arrumar essa bagunça. Mais um recomeço.~

FRAGMENTOS DA IMAGEM

     A leitura do segundo texto também me informou uma possível chave de interpretação para preparar a ilustração que acompanha este post. Após a visualização de animações que fãs de Hamilton criaram nos últimos anos – quando, apesar do sucesso, o acesso a gravações do espetáculo era mais restrito – pensei em, também, fazer uma animação. 
    Assisti alguns tutoriais, verifiquei até o número de frames necessários para um vídeo de três minutos com uma movimentação, que eu julgasse, minimamente agradável. 195 quadros. Foi apenas quando comecei a recortar o canson da primeira gravura que me dei conta das horas que isso exigiria. Decidi realizar, então, uma colagem em papel fotográfico.

A ilustração original teria mais referências à Björk
Curiosidades: 

Os cabelos foram inspirados na obra Uzumaki, de Junji Ito, e as cores em Sunny, um dos quatro reis celestiais em Toriko, de Mitsutoshi Shimabukuro. A máscara da personagem foi inspirada levemente nas maquiagens da drag queen alemã Hungry, responsável por diversos dos make-ups de Björk.


Outros elementos, como o voo 815 da Oceanic Airlines ao fundo, vieram por, quando finalmente consegui tocar e cantar a canção, um avião ter passado e estar registrado na canção.