quarta-feira, 12 de agosto de 2020

Concreto-confronto

"Tem que acreditar. Desde cedo a mãe da gente fala assim: 'filho, por você ser preto, você tem que ser duas vezes melhor.' Aí passado alguns anos eu pensei: Como fazer duas vezes melhor, se você tá pelo menos cem vezes atrasado pela escravidão, pela história, pelo preconceito, pelos traumas, pelas psicoses... por tudo que aconteceu? duas vezes melhor como? Ou melhora ou ser o melhor ou o pior de uma vez. E sempre foi assim. Você vai escolher o que tiver mais perto de você, O que tiver dentro da sua realidade. Você vai ser duas vezes melhor como? Quem inventou isso aí? Quem foi o pilantra que inventou isso aí? Acorda pra vida rapaz" – A Vida é Desafio, Racionais MC’s
Arte de @isabellaproencart



Concreto-confronto (2019/2020)
Música: Thales Salgado
Letra: Livre adaptação do conto Muro Mundos de Daiany Pontes

Concreto-cinza-inerte
Na cidade cinza
Onde ela resistia
A caminhar
Forçando um sorriso
Duro pela vida
Dobrando a esquina
Para enfrentar
A vizinha que lhe nega o olhar
todo o dia apressada.

Entre o preto e o branco
Tantos muros para quebrar
Mar-navio-negreiro
Quanto mais vai atracar?

Beirando o cruzamento
Rosto, um vento cinza
Vizinha não hesita a se murar
Mesmo os muros altos
A deixam perdida
Ainda não tem forças
Para escalar
De passagem para nenhum lugar
Vê as vistas cansadas

Encostou-se a um canto
Para, as janelas, divisar
Mas só viu outros muros
E a inércia a alastrar

Entre o preto e o branco
Tantos muros para quebrar
Mar-navio-negreiro
Quanto mais vai atracar?


    No ano de 2019, o foco de minha produção se concentrou no Instagram. Esse distanciamento do blog descentralizou possíveis composições e ideias, mas forçou outros desdobramentos: devido ao limite de um minuto para os vídeos do feed, decidi seguir compondo canções que se resolvessem nestes sessenta segundos.
A autora do conto que originou a letra
        Uma das canções surgiu inspirada na leitura de um conto que Daiany Pontes havia me enviado alguns dias antes. Nascida em Porangatu-Goiás, ela é atriz e poeta. Integrou a cia Âmago de teatro em Campinas-SP e hoje integra o coletivo Teatro de Pólvora. Formada na área da saúde, trabalha com cuidados de enfermagem. Cursa a Formação de atores e atrizes na escola livre de teatro Santo André e paralelamente está pesquisando a escrita voltada para dramaturgia e contos.
     Essa canção ressurgiu para mim enquanto organizava esses fragmentos em uma coletânea que alcunhei, com o perdão do trocadilho, Solo un minuto. Pensei: “será possível organizar estes minutos todos em um medley como o no lado B de Abbey Road?” mas outra ideia me tomou: a letra que eu escrevera contemplava apenas parte da narrativa. Eis que no dia 28/07/2020 tornei a ler e reler o conto e compor uma estrofe que espelhasse a primeira, mas levasse a letra à diante. No conto, que se encontra na íntegra abaixo, estão destacados trechos que utilizei na adaptação.
        O olhar de Isabella Proença traz a protagonista do conto, Aina, ao centro da história que percorre e perpassa sua carne e pele que vai tornando concreto-pedra. Os quadros retangulares me parecem um ótimo toque, dando a impressão de ser a janela de um edifício. A ilustração mescla possibilidades interpretativas para os dois textos.

MURO MUNDOS
(Daiany Pontes)

Aina caminhava pelos bairros daquela cidade observando os muros, eles sempre a impressionaram.
Dona Edith tinha um muro tão alto, o mais alto do bairro. Aina visava o muro de Dona Edith, pareava com o dela e comparava-os. O que as separava era o tamanho, Aina não conseguia vê-la de seu muro, mas ela conseguia ver a menina. Imperceptivelmente via.
Aina, ainda menina entendeu que havia algo. Seu muro era uma espécie de tablete cinza, um concreto-cinza-inerte. As piores dores nascem de cores-dias- cinza. E hoje ela reside na cidade cinza. O fato é que o muro dela era tão baixo que bastava levantar seus pés um pouquinho que já conseguia avistar a rua. Não entedia o porquê de Dona Edith nunca a ter visto. Das vezes em que elas cruzavam a mesma esquina, Dona Edith olhava fixamente seus cabelos, suas vestes e rapidamente procurava saídas para o olhar não se repetir. Saia, como se Aina não estivesse ali na sua frente.  Saia em sua pressa, como a pressa daquelas palavras que saem de um computador de escritório.
Na manhã seguinte a menina de doze anos colocou sua roupa mais bonita, encheu os cabelos de creme que escorria feito as águas do mar-navio-negreiro em suas costas. Foi, dobrou a esquina e lá estava ela mais uma vez. Olhou-a, precisava enfrentá-la. No fundo do cinza é doloroso adentrar, é um espaço de cores que há entre a cor cinza, um adentrar entre o preto e o branco.

Impressão do post original no Instagram onde compus o espelho
Na visão de lá, passos à frente. Aina não conseguia ver a trajetória e isto lhe causava espanto. Do lado de cá, passos atrás, a visão é dolorosa, a luz é forte e ela consegue detalhadamente ver todos os passos e passados. Dói. Os passos atrás doem. Estava na frente do muro cinza, inerte ao cinza. Chegara, e nos próximos passos terá que enfrentar no rosto, o vento cinza, mesmo sem saber como conduzi-lo. É. Já faz parte dela, no fundo, não há outra direção-condução a não ser enfrentar. Seu rosto está se desfazendo agora, ele vem se transformando em cinza. Coisas transformam-se.  E agora veja o rosto de Aina transformando-se em um rosto-abstrato-cinza. Ela tenta sorrir caminhando e o traço que finaliza teu sorriso, está se desfigurando. De longe a abstratividade da figura se faz larga e sorrindo. De perto, no fundo do cinza a abstratividade se mostra em uma larga e longa força para não abandonar. Aina em um estado-limite, em uma contração com a vida, em uma contração com face, que naquele momento fazia um tremendo esforço para desenhar um sorriso-face. A força usada fora tão grande naquele dia, que chegou a machucar.  Forçar se a sorrir machuca. Os olhos esbugalhados tentando manter-se enxutos. No peito-duro-pela-vida não passava nada naquele dia.
A imagem que vinha era a menina mais uma vez dobrando aquela esquina, que apontava para tantas outras esquinas. Desgovernada, estava à beira do cruzamento com os olhos dela. Queria ser vista pelos olhos de Dona Edith. Chegou de frente, na frente dela, e mais uma vez ela negou-a. Não a olhou. Passou reto, passou por ela, em cima dela.
Aina seguiu para as esquinas, que davam para outras esquinas, passava por placas que tinham letras que não conseguia ler. Estava perdida, sendo levada para um destino em que eu não sabia onde seria, mas que em algum momento teria um fim. Será? O muro é alto, teus braços não alcançam e das vezes em que tentou subi-lo. Caiu.
A queda do muro machuca. A força necessária para subi-lo, Aina não tem no momento. Muros altos ignoram-a.
Quando o ônibus virou à esquina Aina entrou, o ônibus tinha como destino, destino nenhum. Ela passou rapidamente pelo motorista que estava entediado com a manhã, acenou um bom dia e ele respondeu-a apertando os olhos, que já estavam tão cansados. Era manhã e o encontro dos olhos da menina com o dele, já mostrava cansaço. Pode? Olhos tão cansados nas primeiras horas do dia? Atravessou o corredor e encostou-se a um canto que dava para a janela. No canto, em direção, sem direção.
O ônibus seguia e chocalhava tanto a cada acelerada, que todo seu corpo estremecia em uma sonoridade-barulho-ruído, que arranhavam teus olhos.  Histórias soltas nos assentos-ônibus. No trajeto passou por tantos muros, iguaizinhos aos que dividiam sua casa. Aina seguia dentro do ônibus, com os pés fixados no chão para não cair, a paisagem-muro movimentando-se e ela procurando compreensão. Via nos passageiros-vida, olhos acostumados, inertes diante da paisagem-visão-muro

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