sexta-feira, 18 de setembro de 2020

Outra versão de nós

"Em certas ocasiões, o destino se assemelha a uma pequena tempestade de areia, cujo curso sempre se altera. Você procura fugir dela e orienta seus passos noutra direção. Mas então, a tempestade também muda de direção e o segue. Você muda mais uma vez o seu rumo. A tempestade faz o mesmo e o acompanha. As mudanças se repetem muitas e muitas vezes, como num balé macabro que se dança com a deusa da morte antes do alvorecer. Isso acontece porque a tempestade não é algo independente, vindo de um local distante. A tempestade é você mesmo. Algo que existe em seu íntimo. Portanto, o único recurso que lhe resta é se conformar e corajosamente pôr um pé dentro dela, tapar olhos e ouvidos com firmeza a fim de evitar que se encham de areia e atravessá-la passo a passo até emergir do outro lado. É muito provável que lá dentro não haja sol, nem lua, nem norte e, em determinados momentos, nem hora certa. O que há são apenas grãos de areia finos e brancos como osso moído dançando vertiginosamente no espaço. Imagine uma tempestade de areia desse jeito". Kafka à beira-mar, Haruki Murakami. (Tradução de Leiko Gotoda)

Arte de @isabellaproencart 


Outra Versão de Nós 
Letra: Thales Salgado (escrita em: 25/01/2019)

Cai outra madrugada
E pela estrada até
Pensei em te contar
Tenho visto ponteiros
Tão certeiros nas veias
Na pele e mais
“Também vês?”.

Tantas pontes queimadas
Inocência vitimada
E quero mais
Do que for bom.

E todo o mal que eu causei
Direcionado a mim, eu sei
Ninguém mais pode expiar.

Agora alvoreço
Pesa o preço
De nunca cair em si
Bem e mal são acasos
Espelhados aos caminhos
Do sentir.

Ninguém será sempre feliz
Vivendo a vida sem matiz
Quando o contraste nasce de sofrer.

Cada tempestade
Quando invade
Vem para nos fazer
Viver outra versão de nós



No moleskine usado entre 2011 e 2012
Entre John Frusciante e Vitor Ramil

     A foto acima é importante pois pontua o Tempo que levou para finalizar esta composição. Ela começou em algum momento de 2011 e estagnou em 2012. Imagino a faísca inicial tenha queimado na segunda quinzena de julho, após o lançamento do single The Adventures of Rain Dance Maggie do Red Hot Chili Peppers.

    Sendo o primeiro lançamento após a segunda saída de John Frusciante, havia, então, um estranhamento em como a banda prosseguiria – após ter tido a possibilidade de ver três shows da banda no Brasil com Josh Klinghoffer é impossível dizer que não foi para melhor, uma vez que, sendo fã da banda até então, não havia visto nenhum – o que me levou a me debruçar na carreira solo do músico. Shadows Collide With People, To Record Only Water in Ten Days, The Empyrean… apenas para citar alguns. Me chamava a atenção como suas composições fluíam e eram capazes de mostrar diversas facetas, muitas vezes no mesmo momento. Haveria possibilidade de tentar replicar um pouco disso? Alguns bends, um pré-refrão, um refrão! Nasceu uma melodia que foi chamada por nove anos apenas de RHCP, pela relação que ela guardava com a banda.

     O que impedia a letra de nascer, então? Podia ser a influência de Vitor Ramil. Em sua obra Satolep, um personagem comenta “nascer leva tempo” (em 2013 eu viria a referenciar este verso em Notas fora do Lugar mas não sabia disso naquele momento).

      Algumas de suas letras conservavam a característica de repetir trechos melódicos, mas não repetir a letra, elas não necessariamente “espelham” a estrofe anterior até o refrão, muitas vezes apresentando uma narrativa ou mais. Minha intenção era fazer algo dessa forma. Algumas ideias para a letra estavam ali desde o início: “ninguém nasceu para ser feliz/sentir a vida sem matiz/cria o contraste é o sofrer...” mas criar uma narrativa que conduzisse a isso, estava em um beco sem saída; como John ou Vitor fariam?

        Lendo e ouvindo suas entrevistas, descobri que ambos possuíam, cada qual a seu modo, uma série de fundamentos que guiavam suas composições. Enquanto Frusciante comentava sobre “ideias, visões, formas, cores, arte, anjos da guarda, religião e espiritualidade”, Ramil delinerara sua Estética do Frio, ancorando ou encontrando em suas composições “rigor, profundidade, clareza, concisão, pureza, leveza e melancolia”. Se pensarmos o conjunto “religião e espiritualidade” como uma coisa só, podemos pensar que ambos estavam próximos ao número sete.

      Sete artes, sete maravilhas do mundo antigo, sete maravilhas do mundo moderno, sete sábios gregos, sete virtudes, sete propriedades da matéria, sete pecados capitais, sete dias da semana, descansar ao sétimo dia, sete anões, sete léguas, sete vidas de um gato. Sete mares, Sete Cidades. Sete notas musicais. Sete mentiras, multiplicadas por sete, multiplicadas por sete outra vez. Sete anjos com sete trompetes... sete e sete são quatorze com mais sete vinte e um, Zazá sumiu ficou um zum zum zum. Tantos setes por aí, mas nenhum para chamar de meu.

OITO ANOS DEPOIS

        No décimo sexto dia participando do desafio de escrever 100 palavras por dia professor proposto pelo professor de Escrita Criativa Tiago Novaes me peguei em um longo congestionamento na marginal Tietê enquanto me dirigia ao trabalho.

        Ali, ilhado sem enchente, decidi revirar os arquivos antigos e me deparei com o arquivo intitulado RHCP. Poucas pessoas a tinham ouvido o instrumental até então, entre estas pessoas o artista, baixista, designer, e amigo Bruno “Bob” Barduchi Oliveira –  basta olhar bem, normalmente ele está envolvido nestas empreitadas – mas não havia muito a dizer: nada mais eram que alguns murmúrios e vocalizações aleatórias. Até que a letra surgiu.

       É difícil falar sobre ela, pois, ela foi construída apenas pela vivência de anos e a necessidade de reunir cem palavras. Nada além. Não contando o título, a letra é composta por esta centena.

       Posso dizer com alguma certeza que as pontes queimadas podem ter sido inspiradas em Burning in the Skies da Linkin Park (estou nadando na fumaça das pontes que queimei, então, não se desculpe, estou perdendo o que não mereço). “Expiar” tenho certeza que tirei da cena em que Kanon de Gêmeos recebia a Agulha Escarlate de Miro para provar sua fidelidade à deusa Atena. Assim como o conceito da tempestade pode ter sido influência inconsciente de Murakami, por isso ela inicia este post.

PINTURA PARA UMA CANÇÃO SEM NOME

      Quando encaminhei para Isabella a proposta de parceria para fazer esta ilustração, ela ainda não tinha nome. Imaginei que tendo uma data prevista para escrever, ele viria. A pintura que ela realizou trouxe uma série de outros significados para a canção. Eu sabia que precisava ter roxo, mas, por ter escrito enquanto estava em um ônibus, tinha dificuldade em imaginar a história fora do transporte. As soluções e traços que ela apresentou me levaram a diversos lugares: Meia Noite em Paris, Estúdio Ghibli, se fizer à praça do coreto de Arujá, pensei até mesmo em Vanguart, pelo Semáforo. Artes assim amplificam os sentidos.

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