quarta-feira, 8 de fevereiro de 2017

Tudo Depende de Conforme For (ou A Balada de Raul e Júlia)

“A gente escreve porque todo o resto morre, é para preservar aquilo que morre. A gente escreve porque o mundo é uma confusão desconexa, que não se consegue entender, a menos que se faça um mapa com as palavras...” - Edward Sheffield em  Tony & Susan
        
Ilustração de Jéssica Feliciano inspirada no amor de Deus, na relação de luz e trevas.

         Então, às vésperas da postagem, um abatido Raul pergunta se eu poderia postar sobre qualquer outra coisa. Digo a ele que estamos trabalhando juntos naquele projeto há praticamente um mês, e não havia como ganhar as horas investidas falando de nada além. Ele passara tanto tempo resoluto da vontade de ter sua história contada. Agora, sem mais nem menos, estava demovido da ideia. Você pode falar de um dos shows que tem visto, por exemplo. De fato, expliquei, mesmo assim essas coisas levam tempo meu amigo. Que eu tenha visto cerca de seis apresentações no mês de janeiro, encontrei tempo hábil para escrever algo apenas de uma delas, quase cinco dias depois. Eu entendo mas... Sem mas, redargui. Tentei pressiona-ló a explicar.
         De súbito, Raul se deteve olhando para outro lugar. Levei alguns segundos para perceber que seguia o rastro de uma borboleta. Eu costumava dizer que quem está com a razão, ao se ausentar, deixou as borboletas com respostas. Foi como se ela o estivesse levando a algum outro lugar, então, pousando os olhos de um azul límpido em mim, Raul explicou: Júlia seguiu em frente. Seria ridículo dizer qualquer coisa a essa altura, e, de todo modo isso estava traçado há tempos, percebo agora. Não era questão de destino e sim de ações que tomamos em nosso dia-a-dia. Tal a música dizendo "Deixamos pra depois uma conversa amiga que fosse para o bem, que fosse uma saída (...) Deixamos escapar por entre nossos dedos a chance de manter unidas as nossas vidas". Tenho medo do que podem dizer ao ler essas palavras. Falei com minha amiga Meena e ela disse não entender muito bem meus sentimentos por Júlia, achara ser questão mais do que resolvida, e era, o que torna minha reação mais sem sentido, Thales. Eu conheci William brevemente, não o bastante para dizer que era uma boa pessoa, sabe? mas era a escolha de Júlia e o mínimo que espero é que sua rabeca embale os sonhos dela. Lembro de quando Odisseu, meu irmão mais novo, aparecera com uma nova namorada em pouco tempo. Júlia apontou indignada em como poderia alguém ser tão volátil ao escolher o esquecimento. E agora...
         Esbarramos sempre na escolha do outro, interrompi o fluxo de meu amigo, mudarmos de opinião faz parte desse processo;  Raul, você disse que era aniversário de Júlia e por isso me fez reunir todos os seus escritos desde o dia três de janeiro e recriá-los a meu modo, fui bem claro em dizer que não compunha sob demanda e você pediu que eu tentasse musicar seus pensamentos e eu consegui, independente do que digam acerca do resultado - pode ser ela nem goste - a canção será o mais próximo de um retrato de quem tu era naquele instante; Não vamos desacelerar, estamos apenas começando. Nada para esse trem.
         Pode ser sido meu momento Heisenberg ou uma epifania pessoal mantida em segredo. Raul concordou que eu publicasse aqui minha compilação de suas memórias depois da canção que compus baseada na história dele.



Tudo Depende de Conforme For (2017)

Desenhar um futuro é
Por vezes, críptico, tríptico
Baluarte erigido
Atrás da porta
Despertou da Anunciação
Pelo aquário, pórtico mítico
Coração em que
Minha vida aporta

Generosos são os ares
De tua nova terra
Todo caminho transporta
E me leva
Atravessava um mar vermelho
Para alcançar as veredas
Do teu riso

Tudo depende de conforme for
Se amor ainda há (...)

Pelos campos, vi José em romaria
Santa Cecília veio a mim
Antes que houvesse oração


A BALADA DE RAUL E JÚLIA
(Sobras Memoriais de Um Diário Inundado)


Prólogo
O Brasil discreto sobre o amarelo creme da camisa o levou a pensar se ela fazia parte do seleto grupo capaz de entoar o hino nacional depois da virada do ano. Raul estava distante de ser um patriota ou ufanista. Existia no país, apenas. Um tanto alheio a tudo, sem que isso fosse motivo de orgulho. Era, antes, parte de seu conflito diário. Suas não-escolhas constituindo o absoluto desejo de não ser todomundo. Lá estava ele, num galpão, em meio a produtos muitas vezes desprezados por vários dos consumidores finais. Trabalhando! A camisa de Júlia suspendeu a tarde de dezembro. Sua seriedade ao lhe delegar atividades o intrigou tanto quanto o cabelo preso tal a cauda de um pássaro. Raul decidiu que a chamaria de Chefe. Isso foi há tantos anos que o espantou ter recordado no momento em que viu seu ônibus se aproximando.

I
O bairro desperta a cada parada de sua condução. Raul fica indeciso entre a leitura de seu livro e a atenção com o caminho desconhecido. É ano novo, embora tenha dúvidas se depois do réveillon isso ainda importe. A segunda semana do ano já se mostra implacável. Embora ainda haverão os cumprimentos dos retardatários em folga até a segunda quinzena. O aglomerado de portas de portas de aço enroladas o encaram, o lembram do período em que travava guerra com uma delas para iniciar os trabalhos na agência de publicidade. Tentava agir rápido, apreensivo com a ideia de ser visto neste apuro. Ao menos não precisava apresentar isso num currículo. Uma moça recostada na parede de aço se maquia de maneira improvisada, no espelho parece um quadrado de sete por sete centímetros. Já passou. Reconhece a praça anunciada numa curva. Sente um nó. Tinha estado ali cerca de oitenta e seis dias antes para visitar uma das unidades do serviço social do comércio. Andou com Júlia por aquele caminho ermo, enquanto imaginavam como se sairiam em meio a um apocalipse zumbi. Ela pensava em comprar um Playstation para a mãe – que adorava os universos de Silent Hill a Resident Evil – quando a situação financeira estabilizasse. O mapa que tinham a dois contemplava uma série de rotas e caminhos. Enquanto se dirigia ao trabalho, não pensava se depararia com ele tão cedo em seu dia com uma de suas linhas invisíveis.

II
Naquela semana tinha passado em frente ao Santuário das Almas e à Paróquia São Luiz Gonzaga. Ao observar as estruturas – mesmo quando simples, igrejas podiam alterar os ares de áreas comerciais – pensou em Dom Helder Câmara e seu modo de escrever poemas, quase contra sua vocação eclesiástica e ao mesmo tempo tão propriamente sensível com os dons de Deus. Raul não escrevia poemas, pensou em Thales, amigo dos tempos de faculdade que passava horas nesse intento. Teria ele prosseguido com os versos ou estaria preso apenas a um cotidiano mercantilista como ele próprio? Quem sabe fosse como um Kafka, trabalhando numa companhia de seguros. Ou talvez ele apenas tivesse receio demais de errar e sabotasse as próprias possibilidades no mundo literário. Tentaria falar com o Barros e descobrir algo do paradeiro do velho amigo. Não levou muito tempo para encontrar seu blog, em seguida, enviou um e-mail mencionando a ideia que tinha para um post. Thales concordou em escrever mas tinha reticências quanto a compor. Verei o que faço, era a única linha de sua última mensagem.

III
Raul tornou a olhar o smartphone. Nenhum resquício virtual de Júlia. Antes havia ao menos o que se pautar. Fechar os olhos e sentir que eu vivo bem com a solidão ela disse ser apenas uma música que gosta sem relação com o contexto dos versos anteriores ou posteriores. Podia ser ele enxergasse as coisas de uma maneira complicada, por mais simples se apresentassem. Esse era um tema recorrente de suas conversas: a objetividade como possibilidade concreta. Sim ou Não lhe era um martírio. Costumava brincar ser um defeito adquirido na escola, pela quantidade de encontros com a frase justifique sua resposta. Numa das primeiras vezes trabalharam juntos, ele precisou deixar uma nota por uma alteração qualquer no estoque.
Você não precisa escrever um livro.

IV
Um pêssego.
O status era apenas o suculento fruto.
Entrecortava os dias e seu significado lhe escapava. No budismo era sagrado e representava longevidade. Para os antigos gregos era a sagrada fruta do deus do casamento. Georgia é o estado do pêssego. Ela não era budista, não estava casada e tampouco nos Estados Unidos da América, ao menos, até onde ele sabia.

V
Morria a primeira quinzena do ano quando enfim conseguiu uma ligação atendida.
Nunca seria o que era antes, era sempre a cumplicidade esquecida. Ela começaria academia, reflexo do que ele também estava dedicado a manter. Tentava descer todos os dias cerca de três ou quatro quilômetros antes de casa e andar o mais rápido que conseguia antes de ser tomado pela sensação de que o ar do mundo era insuficiente. Usava o último disco do Metallica como propulsor para estas ações tão estranhas a ele. Querendo o som mais alto que os problemas em sua cabeça. Mesmo quando garoava o ritmo era mantido. Precisava disso. A indiferença pode ser um poço de fundo incerto. De repente você é acordado por vinte quilos a mais e eles não se calam. Quem sabe, o andar com destino seria o suficiente para enfim poder olhar para si mesmo na certeza de apenas uma consciência.
Agora ela vinha para a cidade dele quinzenalmente, mas a intenção era aumentar o hiato. Ele tentou brincar com a metonímia nominal. Ela não pareceu achar graça. E sempre o corrigira! Quando ele contou que o encarregado não estava presente ela pareceu pensativa por isso ele não me ligou. Raul juntou dois e dois: havia ali um sinal, se havia ligações diárias sua falta de sorte poderia ser proposital. Ele faria o possível para evitar as tentativas de ligações. Seria isso o bastante?
Perguntaram-se acerca dos pais.
Mas você vem para cá? Não devia ter estranhado o tom na voz, obviamente não forçaria sua presença, no fundo, sabia o que ela não havia dito. A mudança, a nova cidade. A chance de começar tudo em estado novo. Fácil descontextualizar a frase de Neo: Vou desligar este telefone e vou mostrar a essas pessoas o que não quer que elas vejam. Vou mostrar a elas um mundo... Sem você. Lembrou-se do dia em que olhou o contrato da nova casa, copiar o endereço mentalmente. Já fizera isso antes. Outra das ações incompletas. Ela poderia ter certeza, ele não realizaria nada absurdo. Agora, ela não tinha intenção de correr após uma apresentação, todas elas acabavam muito tarde. Seria um problema voltar a casa de sua mãe. Em cada uma de suas sentenças entendia que a casa dele não mais era opção, as diversões em cada vitória de corrida contra o tempo eram lembranças perdidas.

VI
Ocupava-se como podia, em vinte dias lera quatro livros. Podia ou não ser questão de orgulho, havia quem ria de suas preferências. Era visto em todas as frestas temporais com um livro na mão. Visitava livrarias compulsivamente. Isto o livraria? Na prateleira com os títulos em destaque avistou a edição de luxo de Drácula em suntuosas quatrocentas e setenta e quatro páginas (...) Dedicava algum tempo refletindo questões humanas; custava tentar imaginar quais eram as histórias e preferências de cada pessoa. O que levava alguém a descer de um carro colocando uma arma no rosto de dois jovens pelo motivo que fosse? Pudera conhecer estas histórias. Usar a fé como um ato de risco contra iniquidades. Mas isso não era ele. Haveria um universo paralelo em que a vida de Raul e Júlia tinha acabado naquela noite? Se as coisas funcionassem assim, deveria agradecer pela intervenção divina, ou, a bondade doentia do assaltante ao render duas pessoas com uma arma de um plástico tão infantil que o medo absoluto transformara em aço. “Vivo sem saber até quando ainda estou vivo, sem saber o calibre do perigo eu não sei da onde vem o tiro.” O tiro que não veio os atingiu com vida e futuro.

VII
Agora era o futuro.6h58.
Piscou algumas vezes tentando reconhecer alguém na praça, enquanto dezenas de trabalhadores entravam no ônibus. Uma blusinha decorada com a Torre Eiffel, a calça social encerrando numa leve boca de sino cobrindo parcialmente seu alvo all-star. Alguém mais inteligente dissera outrora: não sendo impossível pode ser provável. O ônibus prossegue antes que o reconhecimento termine e em sua extensão ele ainda consegue ver uma revoada displicente de pombos feliz com a ignorância benevolente dos velhinhos dispostos a doar mais que suas três refeições diárias. Um dos pombos parece pensar, ah se soubessem o que é toxoplasmose, ao que o outro retruca num gorjeio ser melhor aproveitar o banquete. Esse primeiro pombo poderia ser ele mesmo, por vezes um pária. Você está entre eles mas não é um deles. Era provavelmente hora de escolher um novo mote pessoal. As palavras de Mao Tsé o acompanharam por demasiado. Acha as ruas estreitas demais. Avista um homem com um cão branco. Certamente pertencente a outra pessoa, pela violência empregada com a coleira. Ainda não são sete horas e há tanta vida nas paredes. Lembra de um artista da cidade vizinha que assinava todas as suas obras como Xicano. Seu spray moldou uma série de mulheres realistas nas muradas. 

VIII
Como estão os ônibus?
Perguntou um colega que partilhara o mesmo trajeto até adquirir uma motocicleta.
Tenho ido e vindo com eles, em quinze minutos estou aqui.
Já sei que São Paulo acabou para você!
Ele diz isso sorrindo, faltou que piscasse para parecer mais absurdo. Parecia dizer, sei seu segredo, você já arquitetou mudanças em sua vida sem avisar a ninguém.
Raul sorriu por reflexo, contradizendo o parágrafo anterior, ainda era uma dessas criaturas sem jeito para convenções. Mal sabia seu colega como tudo estava diferente. Essas brincadeiras seguiram por alguns dias, até que cessaram de súbito: intuiu que Júlia explicara o acontecimento a ele. Era um dos sinais, além do silêncio e da surpresa ante a possibilidade de uma visita. Ainda tivesse dificuldades em escrever, Raul tinha mania de achar tudo óbvio. O silêncio, o nervosismo no tom de voz quando propôs uma cordial visita, a mudança no comportamento de colegas que sempre tiveram sua relação como tópico pessoal, as chamadas não atendidas. Mesmo o pêssego. Sinais.

IX

Como os que o ônibus atravessava sentido metrô Santana. Não levou trinta minutos para chegar à Armênia. Ela adoraria esse trajeto. Palavras encurtam distâncias enquanto adiantados. Por anos cruzaram avenidas, vielas e veredas, velozes. Se perdessem o último trem passariam a rua em liberdade. Ressabiados com cada figura a surgir quebrando a luz, livres, entretanto. Andariam de um lado a outro como que buscando a corda de um relógio imemorial. Dar-se-iam as mãos. Certos de quererem mais da companhia campo de força contra as lufadas laminosas da madrugada. Até que a deixasse na casa dos pais e rumasse para a sua.

X
Da passarela Raul avista ao ônibus de sua intenção. Amplo em seu esplendor branco. Perfeito para tentar escrever o que seriam as últimas linhas de sua abreviada narrativa. Tinha menos de uma semana para concluir tudo. As águas do fim de janeiro tinham o cheiro das chuvas de Poseidon, e, em meio a uma dessas torrentes percebeu parte de suas anotações dissolvidas dentro da mochila. Seria perfeito se o seu objetivo fosse uma reciclagem rudimentar de papéis. Pensou, teria sido melhor se tudo tivesse sido destruído? Restavam sete dias. Júlia em seu reservado silêncio o levara a crer em suas suposições. Os horários pareciam randômicos. Escorava-se como podia na caixa coletora do coletivo para escrever. Seria além do aceitável querer a colaboração dos passageiros? Que ficaram sem pagar a condução pelos próximos vinte minutos, bastaria. Raul podia ouvir a Júlia de sua mente na tentativa de convencê-lo a parar de escrever:
- Anos atrás você me levava mimos e bilhetes e eu sabia você queria mais que amizade, mas qual o sentido disso agora? Para quê fazer isso?
Ao ceder passagem para uma atarracada senhora. Se deteve na tentativa de enxergar os próprios olhos refletidos na janela. O azul deles se confundia com o amanhecer. Era assim o fim? Fora o primeiro a entregar bilhetes e agora escrevia uma carta derradeira? Justiça poética carrega beleza apenas em histórias alheias. Tudo o mesmo, nada sendo igual. Ouviu Vitor Ramil entoar por seus fones. As melhores frases para descrever sua vida viriam sempre de outros autores? A cada momento em que se perdia para alguma resposta gaguejava “não, sim, não”. Júlia sempre brincara com essa aparente dificuldade em entregar uma réplica objetiva. Raul queria poder sorrir pela lembrança. Não percebeu a passagem do dia quando viu as janelas embaçadas de noite. Era impossível distinguir as luzes dos letreiros em neon. Se o ônibus fosse para além do destino esperado ele aceitaria. Nada era verdadeiramente circular. Seria expulso no terminal, a menos inventasse alguma desculpa de ter dormido, apelando para a misericórdia dos funcionários da companhia de transportes. Tentava revelar fotos e vinha se mostrando uma tarefa complexa. Até mesmo a rede FOtOtica tinha saído do ramo. Quais eram as chances? Um colega se prontificou a imprimi-las. Sempre que se propunha a uma missão a desenvolvia sozinho. Uma vez ele pedira a ela para anotar algo nestes termos:
no dia x Raul começou uma surpresa. Diversas vezes ele não aguentava e esclarecia cada uma delas antes da hora. Haveria uma designação específica para as pessoas com essa linha de ação? Como quem esconde o papel de presente dentro da caixa? No interior de sua caixa craniana surgiram sonhos. Ela enviara duas frases mais longas, seu conteúdo fora capaz de acorda-lo. Olhou para o smartphone e as notificações eram inexistentes.

Epílogo:
Era dia de Iemanjá, e Raul seguia com suas ações corriqueiras. Até que, quando chegou o horário de almoço, ligou os dados móveis para se distrair enquanto aquecia sua refeição no micro-ondas coletivo, Era Júlia:
- Oi
- Bom dia
- ...
Teve a sensação estranha de déjà vu a lhe raptar o apetite. Mas era aquele tipo de coisa que eventualmente ia acontecer. Melhor seria se tivesse ouvido a si mesmo. O que o levou a querer dividir novecentos por trinta?
 

Nenhum comentário:

Postar um comentário