quarta-feira, 2 de agosto de 2017

Impossível escrever sobre nada

"É verdade que, ao interpretar o mundo que nos cerca (e aqueles reais ou possíveis de que falam os livros que traduzimos), já nos movemos no interior de um sistema semiótico que a sociedade, a história a educação organizaram para nós. Contudo, se fosse apenas assim, então a tradução de um texto proveniente de uma outra cultura seria, em teoria, impossível. Mas se as diversas organizações linguísticas podem parecer mutuamente incomensuráveis, elas permanecem, a despeito disso, comparáveis. (...) vemos que podemos chegar a algumas soluções justamente comparando diversos espaços de conteúdo, comuns às duas línguas, com diversos termos linguísticos." Quase a mesma coisa, Umberto Eco.

          Há quem diga que nada é uma palavra esperando tradução. Ouvi recentemente: não existe isso de não fazer nada, tudo é alguma coisa. Penso mais na questão da efetividade. Dizer, fazer, alguma coisa útil para alguém. Enfim, pensando na questão recordei a canção : Impossível escrever sobre nada (Imposíble escribir sobre nada). E, para dizer o mínimo, a canção é auto-explicativa. A letra da canção me remete à questão do "copo cheio/copo vazio". Da mesma maneira que uma canção sempre refletirá o artista que a criou, sua visão de mundo, etc. As criações textuais carregam "algo". O autor pode até ansiar desaparecer convertido nas palavras, da maneira que diz o Doutor Pasavento de Vila-Matas, mas não passará disso.
        Na questão "autoria" a música tem dois, o argentino Fito Paez e o carioca Moska. Essa união vai além do óbvio tango/samba, até mesmo por serem duas pátrias absolutamente musicais. As letras segurem uma linha geral mas possuem suas particularidades, por exemplo, enquanto Fito coloca: 
contarte al oído mi falso pasado/estabas conmigo, mas nunca a mi lado,/sentir el dolor de la pierna amputada. Moska vai com os versos: Colar os pedaços de um passado falso/Fingir que o sapato tem seu pé descalço/Encontrar os passos da perna amputada. Cada escolha evoca uma sensação. O álbum conjunto, Loucura Total (Locura Total) de 2015 é rico também por isso. Se nessa faixa "o alvo" de Moska retorna, há, na versão em espanhol da canção Hermanos uma menção ao "tecknicolor" de Fito. Esse vocabulário particular do álbum merece ser desenvolvido posteriormente, melhor então ouvir as canções:
Versão em Português:


Impossível escrever sobre nada
Não ter conteúdo, ou alguma importância
Longe de tudo, a ignorância
O corpo liberto, a mente parada
Impossível escrever sobre nada
Espaço profundo, vazio sem luz
O fim desse mundo que não se reduz
Ao mesmo caminho, ou beira de estrada

Impossível escrever sobre nada
A pura ausência, essência da falta
Nenhuma presença, silencio que salta
Sem sonho, futuro e memória bastarda

Impossível escrever sobre nada
O eco do oco, espelho no escuro
Ser menos que pouco em cima do muro
Pra ter uma ideia que não foi usada, nada

Impossível escrever sobre nada
Ficar entre as coisas sem lhes pertencer
Com nenhuma delas se parecer
Botar no pescoço essa corda apertada

Impossível escrever sobre nada
Nascer sem origem, viver sem destino
Perder a viagem, morrer repentino
Sem nem conhecer a mulher amada

Impossível escrever sobre nada
Deixar ir embora, o que nem chegou
Botar para fora o que ainda não entrou
E andar deslizando na faca afiada

Impossível escrever sobre nada
Não permanecer, não ser, não sentir
Desaparecer sem nunca surgir
As mãos amarradas, a boca calada

É impossível escrever sobre nada
Colar os pedaços de um passado falso
Fingir que o sapato tem seu pé descalço
Encontrar os passos da perna amputada

Impossível escrever sobre nada
A peça de um jogo que ninguém encaixa
Sem errar o alvo, sem usar borracha
Sua força contraria é contrariada
É impossível escrever sobre nada

Versão em espanhol:


Imposible escribir sobre nada, 
ningún argumento, ninguna importancia, 
lejos de todo, en la ignorancia, 
el cuerpo abierto, la mente muteada. 
Imposible escribir sobre nada, 
espacio profundo, vacío, sin luz, 
el fin de este mundo que no se reduce 
a tu casa bonita o a guerras pasadas. 

Imposible escribir sobre nada, 
la pura ausencia, la esencia de falta, 
ninguna presencia, silencio que mata, 
sin sueños futuros, memoria estrada. 

Imposible escribir sobre nada, 
el eco del loco espejo oscuro, 
ser menos que poco cayendo desnudos, 
pensar una idea que no fue pensada, nada. 

Imposible escribir sobre nada, 
estar en el mundo sin pertenecer, 
distinto, extraño, jamás parecer, 
colgarse del cuello una soga apretada. 

Imposible escribir sobre nada, 
nacer sin origen, vivir sin destino, 
perderse en el viaje, errar en el camino 
y no conocer la mujer amada. 

Imposible escribir sobre nada, 
dejar que se vaya lo que no llegó, 
tirar para afuera lo que nunca entró, 
tener en la lengua una faca afilada. 

Imposible escribir sobre nada, 
no permanecer, no ser, no sentir, 
desaparecer sin nunca surgir, 
las manos atadas, la boca cerrada. 

Imposible escribir sobre nada, 
contarte al oído mi falso pasado, 
estabas conmigo, mas nunca a mi lado, 
sentir el dolor de la pierna amputada. 

Imposible escribir sobre nada, 
el rompecabezas que nunca encaja, 
se disparó el tiro por la culata, 
la fuerza contraria es contrariada. 
Imposible escribir sobre nada.

Nenhum comentário:

Postar um comentário