domingo, 26 de junho de 2016

Era Domingo

“...e vencidos os primeiros momentos de dor a coisa até que ficou fácil, tinha sido um alívio sentir aquilo de verdade, pela primeira vez na própria carne e não nos devaneios fantasiosos ou nos filmes e quadrinhos, pela primeira vez deixar rolar e descobrir que sentir era fácil, difícil era imaginar. ”  Daniel Galera – Mãos de cavalo.

            Irrompeu com a caixa do DVD em mãos, a vida no tráfego o tornou exímio conhecedor dos labirínticos corredores asfálticos, respirando noticiários radiofônicos desde antes das 5h da manhã. Aquele fim de tarde era distinto: as vezes uma canção emergia da FM. Por conta de Telegrama meu pai adquirira o Líricas me apresentava, naquele instante, a Zeca Baleiro.
            Compositor maranhense, confluência de amor e amigo, escárnio e maldizer. Partiria dali com uma série de canções no imaginário: Skap, Meu amor, meu bem me ame, Banguela, Tem que acontecer. Há um termo para designar as pessoas que julgam sem conhecer? Havendo ou não já me enquadrei mais nele do que hoje, dizia não gostar de Bob Dylan, mas nunca o conhecera de fato. Ao ouvir sua versão para One more cup of coffee gostei tanto que me lancei, ávido a internet para procurar quem era o compositor, qual não foi minha surpresa? Oh Águas antes inconcebíveis em que mergulhamos! Lembro de um show no Sesc Santo André – fevereiro de 2008 se não falha a memória – em que fui acompanhado por dois Fabios. O pai, e o amigo e companheiro de banda. Os dois volumes do Coração do Homem Bomba se firmaram como álbuns multi-climáticos, a utilização de vinhetas também chamou atenção como Aquela Prainha ou Jesus no Cyber Café do Inferno entender os bailes de Baleiro foi fundamental para apreciar melhor o artista, afinal, tendo um primeiro contato de natureza intimista foi um leve choque se deparar com faixas como Você não liga pra mim ou Datena da raça. Tomei como mantra os versos de Samba de um janota só “Tome uma atitude sua besta/Seja uma besta com atitude/Pode ser uma atitude besta/Mas que seja uma atitude” e recebi em Tacape a primeira menção ao lendário Carcará.
Depois vieram a Virada Cultural e a oportunidade de conhece-lo pessoalmente na biblioteca Alceu Amoroso de Lima em 2009 quando ele participou com o poeta Celso Borges do projeto ‘Parceria: a voz da poesia’ em que tratavam dos diálogos possíveis entre música e poesia. Não consegui ingressos e passei o evento todo em frente a biblioteca acompanhado por outros fãs. Havia ainda espaço na biblioteca, um ou outro acorde ainda era captado por algumas das frestas laterais do prédio. Ao fim do evento, enquanto a provável centena de pessoas saía, entrei no contra fluxo para procura-lo. Ele afirmou não ter ciência de quantas pessoas haviam ficado de fora, mas foi solícito, tirou fotos e deu autógrafos a todos os que não puderam acompanhar o debate. Anos depois num dos efeitos retroalimentares por apresentar Baleiro a minha amiga Juliany fui convidado por ela a acompanhar o lançamento de seu primeiro livro de crônicas, Bala na Agulha na Saraiva do Center Norte. Como haveria um bate-papo decidi tirar uma dúvida relativa ao que eu chamei de A Trilogia da Alma: Em Babylon ele diz “Vou botar minh‘alma à venda” seguindo com Ela falou Malandro e seu verso “até já botei a minha alma à venda” fechando com Balada do Asfalto “Há alguns dias atrás vendi minh’alma a um velho apache”. Essa ligação era proposital? Lembro de sua surpresa com a pergunta, e a sagacidade na réplica, essa vontade de desvendar a alma, de cantar o que havia além dos véus de nossa existência carnal era parte de sua curiosidade como compositor, isso se refletia em sua música, de maneira inconsciente. Lembro de uma conversa na UniSant’Anna em que a professora de inglês dizia ter tentado falar com ele ao menos uma vez, sem sucesso. Assunto que surgiu quando, numa aula em 2011 ela trouxe poemas traduzidos de Emily Dickinson, entre eles I’m Nobody já musicada por ele.
No ano seguinte, O Disco do Ano tinha, já no título, um deboche seguindo a linha do que Titãs fizera em 2001 com ‘A melhor banda de todos os tempos da última semana’. Há sempre essa intenção de encontrar “the next big thing”, mais que isso, professa-la por parte de alguns membros da imprensa, em suas listagens arbitrárias.  Baleiro se reuniu a Chorão em O Desejo, rap que poderia ser encarado como caminho natural depois de composições de ambos como Piercing e O Preço. Dentre as tantas, uma pequena pérola: Felicidade pode ser qualquer coisa.

Se você quer ser feliz, tente
Felicidade pode ser só ilusão
Mas se o coração não mente
Felicidade pode ser qualquer coisa
Uma cachaça, um beijo, um orgasmo
Um futebol na tarde de domingo
Uma canção de Roberto e Erasmo

Vida eterna (vida eterna)
É a vida dos sonhos
Deus é o tempo
Sonhar é a salvação
 O sonho de Lennon morreu
O meu não
O sonho de Lennon morreu
O meu não
O sonho de Lennon morreu
               
            Eis que, em um dia de junho, procurando com minha namorada pelo último cd dos Chili Peppers me deparo com Era Domingo. Grata surpresa! As onze músicas começam com a faixa homônima. De acordo com Baleiro: “É uma canção sobre (...) a sobrevivência da alma no mundo contemporâneo” Eis a alma em voga. Ares do mellotron Beatle de Strawberry Fields Forever ou seriam as cordas de She’s leaving home? Nada. A canção ecoa os outros Blues do próprio Baleiro , e essa questão de identidade sonora envolve o ouvinte desde o início. Ela parou no sinal é ska-mariachi com um protagonista tão inseguro quanto o de Bola Dividida de Luiz Ayrão. A moça dá bola e o eu-lírico cheio de medos não avança. Agosto, o asfalto, o ceú negro e até mesmo Giorgio Armani receberam de Baleiro uma “balada”. Sua temática avança com mais uma: A Balada do oitavo andar com seus versos em que o vento personificado diz a um desolado personagem que “nada respira sem que roce a pele em carne viva a dor e tudo espera pela mágica da primavera flor”. Se na faixa do álbum anterior a faixa O desejo tinha entre seus versos a forte sentença “Você se olha no espelho/E vê que tudo é mentira/A vida é uma mentira/Felicidade, mentira/O amor mentira covarde/Olha pro relógio/E vê o quanto é tarde/Tarde demais pra ser feliz”, De mentira retoma o tema com o conselho: “A vida é dura irmão cheia de fúria/Amor dor e paixão cobiça ira/Mais uma razão pra não viver a vida de mentira”. A vida pode nada significar ou conservar misteriosos desígnios, mas é só uma. Evoca então os famosos versos de Pessoa em sua Autopsicografia de 1931. Agora, quanto de nossa dor é verdade?
            Homem só expande a dialética almática de Baleiro, o eu-lírico desalmado é, na verdade, a multidão resignada e apática, fruto das mentiras contínuas de seus suicídios cotidianos. Depois de tantos sacríficos, olha para trás, e ao ligar os pontos se percebe “como um Cristo demasiadamente humano, ódio a Judas, Inveja a Barrabas”. É reiterada a apatia metalinguística já que homem só tem a participação da cantora Ellen Oléria. Desejo de matar tem uma das melodias mais divertidas e poderia facilmente ter um clipe dirigido pela dupla Rodriguez/Tarantino numa mistura dos timbres de guitarra das trilhas James Bond com os metais de Era uma vez no México se passando numa cidade qualquer do Brasil. Parece louco, mas não é. Nosso Charles Bronson tupiniquim é narrador não confiável como Bentinho, desejando matar alguém como o próprio Santiago. Ele diz ter sido feito de bobo. Seu desejo de matar não surge por necessidade de vingança, e isso por despeito. É uma faixa divertida, mas carrega a carga dramática de histórias que vemos nos jornais a cada dia, quando o desejo de matar deixa o mundo das ideias. O arranjo de cordas vem para resolver a tensão construída na faixa anterior no reggae solar, O amor é invenção, ainda assim, o(a) interlocutor(a) não acredita no amor, o vendo como mero produto criado para satisfazer industrias, sejam elas o cinema, a música ou a publicidade. Na impossibilidade do amor, melhor prezar a dor e o prazer. 
            Deserta é uma das únicas parcerias dessa leva de canções, o congolês Lokua Kanza, com quem Baleiro já havia tocado em conjunto no Rock in Rio de 2011, canção que, ainda que despida de seu arranjo, teria a força do piano que a orbita. Tem um dos melhores grooves de baixo. Aqui surge a esperança, a vontade de que o outro(a) “pegue sua mão e o leve para onde quiser”. Pequena canção tem temática similar à de Boi do Dono. Tudo o que se deseja dar a pessoa amada, mas não se pode. Faz sentido que seja a canção mais antiga do disco. Todas as outras composições foram feitas no período de três anos que antecedeu o disco. Pequena foi resgatada e inserida como fina flor, delicada em meio ao cinza. O último suspiro antes da segunda parceria. Desesperança um rap feito sobre um poema do maranhense poeta romântico Sousândrade. Os versos lancinantes “Eu queria poder rir e celebrar o amor beber brindar a vida/Esquecer a funda ferida só por um segundo/e crer que enfim o mundo é um lugar gentil/pros meus pros seus/Eu queria que Deus acordasse do seu sono profundo”. A faixa ainda conta com o compositor Paulo Monarco. Partindo desse desassossego, Baleiro coloca a crônica contemporânea Ultimamente Nada aglutina diversas paisagens do universo baleireano dos backing vocals aos grandes corais, bandolins, a urgência de Soneto Erótico. O compositor reflete acerca do afastamento dos amigos, mergulho no trabalho, o piloto automático. Mais uma vez, Baleiro captura as angústias das multidões sem alma, mas descontrai sem desconstruir. Ainda que não se sinta nada e mesmo as paixões sejam ficção, n’algum lugar, ainda há prazer!

2 comentários:

  1. NÃO SEI SE MUITAS PESSOAS LERAM ISSO, MAS ADOREI SEU TEXTO BEM ESCRITO E TÃO DESCRITIVO QUE ME DEU ATÉ UM ORGULHO BOBO DE SER FÃ DE ZECA BALEIRO E ESSAS CANÇÕES CAUSAM UM ORGASMO NA ALMA, DESCREVEM BEM NOSSA HUMANIDADE UM TANTO PERDIDA!

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    1. Fico contente que você tenha gostado Rubens! Hoje ele estará na Livraria da Vila as 19h30 e tentarei fechar o ciclo deste texto entregando uma cópia para esse grande artista. Muito ainda pode ser dito. Em breve teremos posts novos. Muito obrigado pelo comentário!

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