domingo, 6 de maio de 2018

Escarlate Saudade

"Os sonhos, ah, os sonhos! Uma amiga disse-me uma vez que sonhar é o mesmo que viver, mas sem a grande mentira que é a vida. Talvez seja isso. Talvez seja o contrário disso. Nem sei. Acontece-me, por vezes, acreditar numa determinada ideia e no oposto dela com idêntica paixão, ou sem paixão nenhuma. Nos últimos anos, aliás, venho perdendo cabelos e paixão. Também venho perdendo ideias e ideais. Talvez seja a velhice, talvez seja o nirvana. O que você acha?" A sociedade dos sonhadores involuntários, José Eduardo Agualusa
Foto: LumineImages (iStockphoto)

Escarlate Saudade (2018)

Toda manhã
Sou despertado por sua canção
Dizendo quase poder ver
O sonho de sua escalada.
Passo o café
Do jeito que tu costumavas fazer
Não digo "eu lembro"
Pressupõe esquecer
E eu não me esqueci de nada.

Confesso que, às vezes,
Logo ao abrir a porta
A vejo ali, sentada,
Será Inês é morta?
Mas não vivo num filme
Aqui não é Hollywood!

Cada amanhã
Alimentando uma antiga paixão
Morrendo sem se perceber
Ilhando-me em sua morada
Lágrima, até
Avança a face
Dissipando meu ser
E já são tantas que se nada

Confesso que,às vezes,
Retraço nossas rotas
Você, já no futuro.
Será que ainda importa?
Quem dera estar num filme
Um final de Hollywood!

Mesmo não fosse assim
O orgulho impediria outra
Reação qualquer de nós
Agora, há tempos, não há par.
E as metades, desiguais.
Saudades são excessos.

O que se faz com o amor que sobrou?


         Se me fosse permitido usar o título de uma canção que desgosto para iniciar o texto, certamente seria "quase sem querer", afinal, a locução define bem a maneira como essa canção surgiu. Experimentava a afinação D-D-D-A-D-F# e decidi mantê-la desde o mês de abril. É quase como reaprender o violão. A menos eu enjoe, as próximas serão feitas nesse mesmo esquema.

       Escarlate Saudade é a primeira composição solo de 2018, uma vez que Enquanto Fizer Sentido iniciou com as palavras de Barbara Barduchi e Is This Poetry foi a musicalização de dois micro-poemas do perfil no Instagram @poetry_131 (veja aqui: https://youtu.be/yvxRwfk4aZg), e sua letra funciona como continuação de CCCLXV. A música funciona isolada? Provavelmente. A intenção da letra era fugir um pouco do críptico poético inserindo elementos cotidianos, como passar o café. 
Foi por um triz que alguma menção à Hollywood não permaneceu no título. As primeiras pessoas a ouvirem a música levaram a crer esse é o trecho mais marcante - talvez pela repetição?. Manter a palavra escondida era forma de seguir hermético como memória. Se uma década atrás se falava em paixões de cinema, abismos que, por amor, são superados, Escarlate Saudade aborda a questão sob outro ângulo: que importa a evocação de um cotidiano anterior? Estando alheio a ele. 
         Mesmo se canções favoritas "do outro", são mencionadas (leia-se The Climb de Miley Cyrus e  Alma Gêmea de Peninha eternizada por Fabio Jr.) a vida não segue uma estrutura de três atos, por mais sonhemos em emular a Trilogia do Antes (clique para um texto de Larissa Padron para o Cinema de Buteco). Até aí nada há de novo sob o sol. Essa canção só ilustra o que a poeta Joni Mitchell afirmara em seu primeiro álbum em 1971: todos os românticos encontram o mesmo fim algum dia: cínicos, amargos e chateando alguém na penumbra de uma cafeteria... Ei, você ainda tá aí?

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