quarta-feira, 30 de junho de 2021

Vacina

"Quanto a ser um bom pai, prossegue a freira, ele vai descobrir que não é difícil. É bem simples. Tem que ensinar a criança a amar a vida. Isso é tudo. Amar a vida e todas as criaturas que existem, do homem até as coisas mais pequenas e frágeis. Passam por sua cabeça todas as razões pelas quais o desafio não é tão simples quanto diz a freira. Um grande estrago à sociedade e à existência de incontáveis criaturas, do homem às mais pequenas e frágeis, está sendo sancionado neste exato momento, tem vontade de dizer. Um estrago que pode levar anos, quem sabe uma vida inteira, para ser remediado. Que talvez seja irreversível. E que não raro é justificado por seus perpetradores nesses mesmos termos de amor à vida." - O deus das avencas: Três novelas, Daniel Galera, p.62-63, Companhia das Letras, 2021.

Arte por @ellaproenca


Vacina (2013)
Letra e música: Thales Salgado

De tantos caminhos escolhemos o mesmo
Na onda de um bonde chamado desejo
De recriar o dia a dia outra vez
Cheio de notas de acordes e arpejos
Fazendo o mundo girar num festejo
Ninguém a se arrepender do que fez

Com meus amigos prosseguindo na estrada
Seja com risos ou nas várias roubadas
Em noites eternas trazendo à vocês...

A Vacina
Pra todos os males da vida
Que já anda muito sofrida
Pra quê se deixar abater?
A Vacina
O amor que nos salva a vida
Toda a pessoa é bem vinda
A achar novas formas de ser

    Quando bob surgiu com a encomenda para esta composição, eu contava 24 anos recém-feitos (à título de comparação, contava 31 e alguns meses quando escrevi este post) e nem em um pesadelo, haveria uma pandemia. De 2020 para cá, ressurgiram web afora matérias de periódicos antigos que descreviam os acontecimentos atuais com grande fidelidade. Pode ser que eu tivesse até folheado um deles sem dar muita atenção. Recordo até não ter recebido bem o filme Contágio (2011), de Steven Soderbergh, apesar de seu elenco digno das calçadas da fama. Você a ler reviu o filme recentemente? Se sim, diga se vale a reprise. Enfim, divago. Não é muito difícil encontrar dados sobre como, por exemplo, 86,3% do público alvo, 26 milhões de pessoas, haviam recebido a vacina contra a gripe em 2012.
      Naquele período, não havia como pensar que, em poucos anos, o país passaria por uma crise sanitária e hospitalar com as proporções que passamos hoje. É claro, com a eleição de Jair Bolsonaro em 2018, era certo que passaríamos por tempos sombrios, sua necropolítica é aplicada em declarações como dizer que o efeito do novo coronavírus seria "uma gripezinha", que ele "não era coveiro", ou que o Brasil deveria "deixar de ser um país de maricas". Como comentou ao G1 o médico sanitarista e ex-ministro da Saúde José Gomes Temporão: " O governo federal rejeitou a ciência, rejeitou a saúde pública, brigou contra as evidências. Nós nunca tivemos uma política de comunicação pesada, orientando, esclarecendo, mobilizando. E o resultado macabro e dramático é essa crise humanitária que nós vivemos hoje". No meio desse turbilhão, 2021 veio como um ano em que perdi minha avó paterna devido a complicações da COVID 19. Conheço outras pessoas que perderam pais, avós, tios, primos... seus vizinhos, conhecidos, seus amores, mais de 500 mil pessoas. Tendo seus lutos e elaborações interrompidos na impossibilidade de despedirem-se com respeito e dignidade. Como bem resumiu uma pacífica amiga em outubro de 2020: "Isso me deixa triste, puta, irritada, tô muito chateada". Tudo ao mesmo tempo.
      Ainda que existam movimentos antivacina desde as primeiras campanhas de vacinação, é ainda mais revoltante quando, ao mesmo tempo em que o presidente passeia pelo país sem mascara e aglomerando apoiadores, as timelines são brindadas com uma série de agremiações, coletivos, brindes, como se nada estivesse acontecendo e já fosse mais que esperado retornar às ruas. Admiro quem tenha saído das redes sociais para conservar a saúde mental.
      Apesar dos pesares - segundo a Folha de São Paulo, Luiz Paulo Dominguetti Pereira, representante da empresa Davati Medical Supply no Brasil, afirmou ter recebido do diretor de Logística do Ministério da Saúde, Roberto Ferreira Dias, um pedido de propina de US$ 1 por dose de vacina em troca de assinatura de um contrato - a pandemia vem sendo controlada na Europa e nos EUA e temos acompanhado um aumento no número de doses de imunizantes contra a Covid-19 em nosso país. Na última terça-feira, 29, por exemplo, um avião com 528,8 mil doses da vacina da Pfizer/BioNTech chegou pelo Aeroporto Internacional de Viracopos, em Campinas. Pensando nas notícias positivas (nunca me identifiquei tanto com a letra de Notícia Boa, da Nenhum de Nós) é que voltei a pensar nessa composição, pensada em um período tão distinto.
Em conversa com Estela,
provável primeira ouvinte em 2013

      Como eu dizia no primeiro parágrafo, a ideia era representar o significado de uma banda. A banda Vacina. Como bob comentou comigo no início de junho "Não existe uma cura definitiva para as coisas que te jogam para baixo, mas se você estiver se remediando, se cuidando, tomando a sua vacina, talvez você consiga se proteger melhor. Só que você precisa descobrir qual é a sua, já que o "mal" que você sofre é diferente do meu. A nossa vacina 'Preto, Fabio e bob', ao menos na época, era a banda, a música. Tocar." Como disse o psicólogo e doutor em saúde coletiva da Unicamp, Bruno Emerich, em matéria publicada na revista ComCiência do Laboratório de Jornalismo da Unicamp: "Há uma parte grande da sociedade brasileira que não tem o hábito de consumir cultura porque não consegue. Porque é caro, porque a cultura nem sempre está ao acesso, não está disponível em todos os bairros. A grande questão é como vamos aproveitar esse momento. E também temos que entender que tem gente que não está consumindo cultura neste momento, não porque não gosta ou não sabe, mas simplesmente porque está em uma situação muito difícil para sobreviver". Voltamo-nos para os filmes e séries em nossos streamings, e também à música (!) aos desenhos, pinturas... Cada um vai do jeito que pode, diria o poeta.
      A banda Vacina segue em hiato por tempo indeterminado, bob complementou: "Decidimos deixar mais parada ainda para não parecermos oportunistas. E tinha uns querendo show da Vacina ou Live, justamente por isso." nesse cenário, uma vez que havíamos trabalhado a composição pela primeira vez em 2021, houve algumas conversas quanto a se seria o momento certo para trazer uma canção com esse nome durante este período. E, ao fim, concluiu-se que sim: as vacinas, mais que palavras, são um compromisso coletivo de saúde pública visando o controle e erradicação de doenças. A ilustração da multiartista Isabella Proença conserva com delicadeza um pouco de tudo o que envolve a Vacina no antes e no agora: tanto a esperança e expectativa para um dia em que poderemos, novamente, sentir a música vibrar em nós, quanto uma homenagem para enfermeiras, técnicas de enfermagem, médicas, e todos os demais profissionais de saúde que seguem o combate incessante contra o vírus em todas as linhas possíveis. Convido à conhecer mais do trabalho dela em sua página no Instagram:

Nenhum comentário:

Postar um comentário