quinta-feira, 2 de março de 2017

Dois de março (ou o que se esconde por trás da vergonha)

"Se afirmamos que a questão da música passa fundamentalmente pela escuta do ouvinte, que é quem completa o seu sentido, isso não significa que o receptor seja livre para o que der e vier. Não, seguimos na escuta os caminhos propostos pelo texto musical e complementamos o seu sentido com um repertório sustentado também por outros sentidos advindos de nossos sentimentos, gostos, preconceito, cultura, modo de ser. Se o texto musical é de alguma forma direcional em razão de seu gênero, estilo, forma, ethos, a forma de vivenciá-lo é exclusivamente nossa, é exclusivamente pessoal." - Da música, seus usos e recursos. Maria de Lourdes Sekeff
E se eu dissesse que a utilização de harmônicos naturais na primeira versão de Para Ela foi inspirado em uma canção de nome Poente; ou então os pequenos arranjos do segundo violão em Segredos em Sussurros foram feitos à exemplo do que eu ouvia em Teu Mundo? Quantos passos vacilantes pela Vila Virgínia foram dados ao som de 22 anos... Eu já sentia que "Arranhava toda a direção buscando a paz dentro de mim". Há mais de dez anos eu procurava a discografia da Engenheiros do Hawaii por comunidades do Orkut e, em um link que prometia isso, me deparei com uma banda de narrativas sensíveis chamada Dois de Março. As canções da banda me acompanharam.

          E com elas aquela ânsia companheira de quando queremos material novo de um artista. Ânsia que parecia impossível de saciar. Não haviam notícias, nem histórias. E eu, mal sabendo da cena musical de São Paulo, o que saberia da cena no Rio de Janeiro? Cheguei a ligar para o número disponível na página da banda no Palco mp3 imaginando que, se ainda fosse de alguém ligado àquela banda, poderia levantar alguma informação do destino dos integrantes. Sem sucesso. Até que, no fim de 2016, procurando pelo nome dos integrantes da banda pelas redes sociais encontrei o trabalho solo de Arthur Belino: O que se esconde por trás da vergonha.

       A serenidade se encontra envolvida nas quatorze canções do álbum. Desde paisagens bucólicas em que voamos com pássaros por jardins ou caminhos em que pedalamos em contemplação. Ao mesmo tempo há reflexões: "vou deixar o que eu não conheço vir", "nada é tão sério que não se possa falar" não se trata de um fugere urbem deslocado temporalmente, a intenção é vencer o medo de olhar para si. É uma busca pelos reais sentidos: o que se esconde atrás do dizer? Quem aprecia o lado lúdico e linguístico de artistas como Humberto Gessinger e Fernando Anitelli também terá matéria aqui: "o gosto da solidão, o só, o sol, o do". Ela vai inicia embebida na melancolia do piano de Vitor Camelo até a entrada do violão de Arthur, seguida pelo balanço hipnótico do baixo de Alexandre Guerra. A bateria de Lourenço Vasconcellos surge no refrão guiando as emoções até o trinado sonhador da flauta de Carmen Rosas coroar a construção.
       Pelo ar flutuam anjos em algodão, e se percebe que a sorte é resultado do amor. Há momentos como esse:

"Tempo que foi não volta mais
Tempo que será cá não está
No meio dos dois presente há
Vamos abri-lo agora"

A proposta desmonta a ideia do referencial temporal e evoca a infância na idade do céu. A paz de um pingo de chuva traz a mente o lado simples de ações significativas. "Quero tempo pra parar/Quero tempo para conversar por aqui". Como um contraponto aos personagens apressados da canção de Paulinho da Viola, Sinal Fechado. Há mais para descobrir e nos empregar em meio a nossa areia cadente.
        Numa valsa há um dançarino querendo se abrir, amor não é dever, tampouco se firma apenas no querer. é, sim, tentativa constante e a sucessão de versos vai despindo esta intenção trajada em fragilidade. Os olhos sentem, os olhos falam, e olham para mim. Sorrisar é a tradução da capa do disco, a opção por não esboçar um rosto por inteiro é acertada por permitir ao observador que se projete na mirada. Pelos céus avistamos o além-mar, os sinais recebidos em nossa busca por equilíbrio. E então, se conjuga o verbo no infinito; O que se esconde atrás do sofá? A paz não vista na TV e nos jornais. Até o instante em que os ventos e rios do Ser se põem a disposição de encontrar o que se esconde por trás da vergonha. E então, é flutuar!

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