segunda-feira, 15 de junho de 2020

A Menina em Sépia

“Dr. Louise Banks: Se você pudesse ver sua vida inteira do início ao fim, você mudaria as coisas?Ian Donnelly: Talvez, eu diria o que sinto com mais frequência. Eu, eu não sei.” - A Chegada, 2016, de Denis Villeneuve, com roteiro de Eric Heisserer baseado no conto História da Sua Vida, de Ted Chiang.






A Menina em Sépia (2008)

Não me adiantaria o torpor eterno
Se a consciência não parasse
Para me fazer descansar
De tantas viagens
Onde as paisagens não eram alivio
Para ninguém, e o "não" 

E o "não" era tantas
Vezes que se ouvia
Que já era raro alguém
Não viver no oposto da emoção

Estava-se preso em locais
Distantes, tão seguros
Que eram n'outro tempo
Os vocábulos reprise, tentação

Me mudei
E cai, enquanto agora
Espero alguém aqui
Talvez o sono não venha mais
E você, meu "sonho"
Vem?

Minha bela estrela
Venha me calar
Não tenho palavras
Mas posso cantar
Minha bela estrela
Paralisa-me o seu doce olhar
Minha bela estrela
É um sonho, não quero acordar.

         Antes de escrever este texto, fui procurar um calendário perpétuo. Nele, verifiquei que o dia 15 de junho de 2008 foi um domingo.
       Apesar de não ter encontrado, digitalmente é bom dizer, nenhum periódico da região do Alto Tietê da época para fundamentar essa alegação, imagino este tenha sido o encerramento do “Encontro das Nações” de Arujá.
       O que coloca a primeira apresentação da banda Falsa Modéstia no evento, ocorrendo, salvo melhor juízo, no dia 12, uma quinta-feira. Isso é importante, pois, como bem pontua Nando Reis no vídeo em que explica a história por trás da letra de Dois Rios “a memória é a forma como a gente pensa, na atualidade, o que se passou. Aí já começa toda a viagem. Da mesma forma, quando se escreve uma coisa no passado e, ao longo do tempo você mantém contato com ela, ou quando você volta a ter contato com ela (...) o significado, mesmo que remeta e remonte ao que foi feito anteriormente, ele está inalienavelmente associado ao que se dá agora”.
       Dentro do período de sete meses e meio entre a apresentação na E.E. Esli Garcia Diniz e o Encontro das Nações, muita coisa aconteceu. As mudanças mais superficiais tendo sido meu aniversário de 18 anos e o fim do Ensino Médio. Outras mudanças, mais sutis, todavia, se consolidavam, como a percepção de que o ditado “a primeira impressão é a que fica” ou estava equivocado, ou apresentava exceções.
A pesquisadora da Universidade de Nova Iorque Irmak Olcaysoy Okten investiga processos de percepção pessoal e autopercepção, com foco específico nos papeis da memória e motivação nestes processos e tem um artigo de 2018 muito interessante sobre o assunto e ele pode ser apreciado “aqui”.
      Outra mudança no universo particular, se deu no número de composições. Se em outubro de 2007 havia cerca de 14, reunidas com o intuito de compor o repertório autoral. Em 2008, o ato composicional prosseguia de maneiras distintas, já sem um prazo específico, resvalando em uma série de temas como a solidão em O Sol Só II, Lost, como não poderia deixar de ser, em Constante. Além, é claro, da canção que nomeia este texto.
Nascida refletindo especificamente as mudanças sutis ocorridas nesse período supramencionado, minha lembrança é de, naqueles dias, descer ao centro da cidade com um CD-R com as composições e, entre elas, esta. A primeira composição em que utilizei uma gaita diatônica. Como possuía apenas uma em Mi maior, era imprescindível que esse fosse o tom. Sua melodia revolve em torno de “E C#m G#m A / F#m B”. Apesar de minha limitação com o instrumento, seguia meu interesse consciente em que as composições tivessem mais de três acordes.
         Sua letra foi escrita refletindo em andanças pela cidade e, mais que minha dileção por fraseados floreados, há nela, algo de inexperiência: Quanto se pode conhecer em sete meses? Como se pode agradecer a alguém por falar de vida?
Estas perguntas, entre outras, iam e vinham.
      Se hoje, 2020, posso ligeiramente seguro, tentar emprestar as palavras de Haruki Murakami de que “para pintar um retrato com vida, é preciso compreender a essência escondida nas feições de cada pessoa”. Isso vem de uma série de leituras e vivências ocorridas no espaço de doze anos. Hoje, pude fazer um desenho no dia 6/01 e outro no dia 26/01 sem que fossem tão funcionais quanto um desenho feito no dia 24/05.
Para o desenho feito em 2008, baseado na mesma foto que inspirou o título da canção, apresentado aqui com uma máscara de cor que o diferencia da versão original, eu poderia dizer, emprestando palavras de Dominick Cobb, no filme Inception, dirigido e roteirizado por Christopher Nolan: “eu não consigo imaginá-la em toda a sua complexidade, toda a sua perfeição e imperfeição. Você é apenas uma sombra (...) você é o melhor que eu posso fazer”.
       A música, carrega isso. Ela abarcou, inclusive, a leitura que fiz de A Marca de uma Lágrima, livre adaptação de Pedro Bandeira para a obra Cyrano de Bergerac, de Edmond Rostand. Decidi verificar nas páginas do livro de onde emprestei o conceito de uma pessoa personificada de sonho, não foi preciso ler muito. Bastou chegar ao capítulo 2. Mas essa imagem era tão interessante, que era impossível deixar de usá-la.
Essa inocência, poder-se-ia dizer, hoje, que me inspirei nas Canções de Inocência e Canções da Experiência de William Blake, mas, seria equivocado, visto que conheci o autor apenas na faculdade, está inserida em alguns dos versos e, talvez, seja até perceptível. Se eu ousasse descrever o tamanho do medo que senti ao perceber que utilizaria verbos possessivos nos versos finais do poema, não caberia aqui. Mas não ouso.
       Hoje não faz exatamente doze anos que compus esta canção, mas era importante, para mim, contextualiza-la dentro do espaço-tempo em que ela foi composta. Pensei que, durante a leitura do livro João Machado documenta: Arujá, Cidade Natureza poderia descobrir as origens do “Encontro das Nações” e assim traçar um paralelo entre o ontem e o hoje. A festa em que estive antes e depois de compor e em que, provavelmente teria estado este ano, não fosse a pandemia que, infelizmente, tem trazido vítimas muito mais graves que uma festa popular. Não encontrei o que procurava, talvez por, como bem pontua o sociólogo na introdução: a cidade ter “bloqueado os caminhos das lembranças, arrancado seus marcos e apagado seus rastros”.  
      Ainda assim, há um outro ditado: nós podemos ser escritores e editores de nossas próprias vidas. Enquanto não há presença, haverá, sempre, a lembrança.

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