domingo, 3 de julho de 2016

Madrugada ou (Da influência da lírica trovadoresca na música popular brasileira)

Há descaminhos em meus passos/Uma sombra que abraço/
Um presente passado/Uma vontade tamanha de não ter mais vontade/
Não admiro os covardes mas agora é tarde. Presente Passado, Isabella Taviani


Proximidade ao local de nascimento das primeiras canções (2017)

Há ecos trovadorescos mesmo quando o compositor em questão guarda seus textos da madrugada nas gavetas da vida. Quando ele age como um abutre para capturar as agruras da vida, e se coloca no lugar da amiga, para falar de um horrível momento entre ela e um amigo. Isso é abuso da amizade, ou, é louvar cada passagem da vida? A noite escura da alma antes de um alvorecer? Rimar amor e dor é um dos maiores clichês, mesmo que ocorram de um fluxo impensado. Passado o tempo, importam as origens das canções?




Madrugada (2007)

Saber a verdade é bom
Mas nem sempre me faz bem
E se as lagrimas rolarem
Em meu vestido branco?
Infinito vermelho verterá
Da tristeza, insuportável passageira
Acompanha até o ponto final

Deixe em paz!
Meus pensamentos voam
Vão levando as lembranças aos poucos
Vai sangrar!
Tingindo todo o vestido
Não é escarlate, é um rubro sangue
E vou usar
Pra me lembrar
Que já superei a dor
De perder mais um amor


O texto abaixo era parte de uma atividade acadêmica em que a composição Madrugada foi inserida, uma vez que sua versão escrita era do ponto de vista feminino.

DA INFLUÊNCIA DA LÍRICA TROVADORESCA NA MÚSICA POPULAR BRASILEIRA

O Trovadorismo é a primeira escola literária e compreendeu do século XII ao século XIV, ela é, assim denominada, pela presença dos trovadores que eram os responsáveis por compor os poemas e as melodias para acompanhamento. Os poemas, enquanto cantados, eram denominadas cantigas. Tais cantigas, primeiramente destinadas ao canto, foram manuscritas e transpostas posteriormente em coletâneas, os Cancioneiros.As cantigas são divididas entre o gênero lírico e o satírico. No primeiro se enquadram as Cantigas de amor e as Cantigas de amigo já no segundo encontram-se as Cantigas de escárnio e as do maldizer. Para nós, neste estudo referenciaremos o gênero lírico.
Nas cantigas de amor o cavalheiro se dirige à mulher desejada de maneira idealizada, se põe a serviço da dama da corte, sua senhora – descrita como ‘senhor’ uma vez que palavras terminas em or como senhor ou pastor, em galego-português, não possuíam feminino – reproduzindo a relação entre suseranos e vassalos, em virtude disso o termo vassalagem amorosa é encontrado em estudos afins. Já nas cantigas de amigo observamos o sentimento feminino cantado pelo trovador que imagina os sentimentos da mulher na ausência do amigo, podendo ser interpretado como o esposo, namorado, amante, etc. As mulheres não eram consultadas.
Poder-se-ia pensar que com o passar dos anos a influência desses textos teria fenecido e, no entanto, com as divisões literárias servindo apenas para fins acadêmicos somos capazes de encontrar ecos e a influência da produção daquele período tanto na literatura brasileira contemporânea quanto na música produzida no país. E não em poucas! Entre os influenciados estão cantautores tais Chico Buarque que tem entre algumas canções que podem ser vistas sob essa ótica Olhos nos olhos, Atrás da porta e Teresinha. Djavan, em canções como Meu bem querer, Correnteza e Oceano. Caetano Veloso com Queixa ou Sozinho, de Peninha. O grupo Roupa Nova também demonstra esses ares quando canta Dona.
Os ecos trovadorescos ressoam, também, em álbuns de rock, como o resgate feito por Renato Russo de um poema do trovador Nuno Fernandes Torneol, presente no álbum V com o nome Love Song:

Pois nasci nunca vi amor
E ouço del sempre falar
Pero sei que me quer matar
Mas rogarei a mia senhor
Que me mostr’aquel matador,
Ou que m’ampare del melhor


O compositor Fernando Anitelli, d’O Teatro Mágico, também se mostra atingido em alguns momentos, como nos primeiros versos da canção Sina Nossa, presente no álbum O Segundo Ato:

Mia senhora,
És de lua e beleza
És um pranto do avesso
És um anjo em verso
Em presença e peso
Atrevo-me atravesso
Pra perto do peito teu

Outro exemplo está em Marcelo Camelo, e sua composição A Outra - de Ventura - observemos a letra para fundamentar essa questão:

Paz, eu quero paz
Já me cansei de ser a última a saber de ti
Se todo mundo sabe quem te faz
Chegar mais tarde
Eu já cansei de imaginar você com ela
Diz pra mim
Se vale a pena, amor
A gente ria tanto desses nossos desencontros
Mas você passou do ponto
E agora eu já não sei mais

Eu quero paz
Quero dançar com outro par
Pra variar, amor
Não dá mais pra fingir que ainda não vi
As cicatrizes que ela fez
Se desta vez
Ela é senhora deste amor
Pois vá embora, por favor
Que não demora pra essa dor
Sangrar


Ao pensarmos nas características gerais das cantigas de amigo notamos a presença do eu-lírico feminino, comprovado no verso “já me cansei de ser a última, a saber de ti” pela desinência de gênero. A linguagem encontrada não é rebuscada remetendo a ideia de uma mulher simples; há também paralelo entre o primeiro verso de cada estrofe com “eu quero paz”. O eu-lírico se lamenta por uma traição sofrida pelo amigo e nisso cria uma imagem curiosa quando diz “se desta vez ela é senhora deste amor” vemos na ideia supracitada, o amigo tem, na outra, a senhora. O arranjo é leve, e, se não tratamos quanto a estruturação dos versos é por não haver, na música contemporânea, regras específicas para tal.

Concluímos a presença da herança trovadoresca na música que o cantautor Lenine chama de MPP: música popular planetária e que alimentaria discussões acadêmicas relativas a qual é o ponto de fissura entre o compositor popular e o poeta.

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