sábado, 9 de julho de 2016

O vôo mais sombrio de Moska

"O título do disco é um enigma, que eu montei para as pessoas entenderem o que quiserem. Minha diversão é ficar no meu mundinho, bolando esses enigmas - que alguns captam, outros não. Coloquei essa questão do falso em primeiro plano porque para mim a falsidade não é negativa em si: é a possibilidade de uma nova verdade." - Moska 


I - Do texto 
           Estar aberto ao desconhecido não é simples; quando se está falando sobre música torna-se ainda menos simples - difícil se preferir - ao menos é assim para mim. Muitas vezes é preciso uma série de acontecimentos para que um artista desperte a minha atenção outras vezes tudo que preciso é a insistente indicação de um amigo, compondo elegias com as palavras que lhe faltam para descrever um álbum, o desempenho, um espetáculo, outras vezes reunindo tudo isso. Moska foi um desses casos. O nome não me era estranho, eu conhecia algumas músicas do compositor "Tudo novo de novo", "O último dia", e as versões de "A flor e o espinho" e de "Sonhos". Havia poesia e belas melodias, entretanto foi apenas quando Jean Reis pediu para que eu escutasse a canção "Nuvem" de seu último trabalho "Muito Pouco" é me interessei em conhecer a obra completa do artista que me fez pensar comigo mesmo qual é que tinha sido o motivo de nunca ter me presenteado dessa maneira antes, então, conversando recentemente com Jean ele perguntou qual era meu disco preferido do Moska, e eu titubeando um pouco respondi ser o "Muito Pouco", mas afirmando que reouviria os discos para alterar ou manter meu 'veredicto'. Conclusão? A obra que me chamou a atenção chamava-se "Eu falso da minha vida o que eu quiser". 

II - Para sempre tudo novo 
           Naquele tempo a reinvenção da maneira de se ver e buscar ser visto já aflorava no artista, desde o seu primeiro disco de 93 "Vontade" com ares de rock, os elementos brasileiros crescentes em "Penzar é fazer música" de 95, a filosofia das relações do 'Eu' em "Contrasenso" em 97 que contava com a balada realista "A seta e o alvo" e uma (talvez) citação a Henry James em "A outra volta do parafuso" para mim a canção mais emblemática desta coleção com versos como "Você me dói agudo e isso é grave. "Antes de te reencontrar sei que preciso voltar a ser alguém". Essa forma realista de encarar os fatos podia ser percebida em diversos títulos: "Me chama de chão", "Paixão e medo", "Seja o que deus quiser", "Tudo o que a gente quis", "Efêmero" e "Admito que perdi" apenas como exemplo, porque a realidade tem diversas nuances mesmo sob um olhar poético. 
Em 99 com o lançamento de Móbile havia mais um renascer, que atingia por completo até mesmo a aparência de Moska que surgiu então com cabelos descoloridos, aquele era um 'outro' e ao mesmo tempo o 'mesmo'. Neste disco as interferências eletrônicas passam a contribuir ainda mais com a assinatura de suas canções levando o ouvinte a outros ambientes, ou quem sabe países, podemos através da música conhecer outros países de nós e vislumbrar os de outros. Esta viagem chegou a um país vasto, antigo e novo ao mesmo tempo, em que o tempo flutuava e não havia gravidade, na mais veloz câmera lenta se recriava o Universo do entendimento. Seria um trocadilho tolo dizer que odisseia pessoal de Moska o havia levado ao ano de 2001? Seja como for, meus olhos assim disseram. 

III - Reflexos de um amor de perdição, ou não? 
           Ouvindo o disco do início ao fim uma das primeiras impressões que tive foi a de que se tratava de uma obra conceitual, o velho 'amor e dor' talvez? ou aprofundando-se nestes conceitos sobre a alegria e a tristeza, ou então a ausência da alegria e a presença da tristeza? Semanas passadas embaixo de um sol negro, regado a lágrimas com gosto de sangue? ou seria o lado mais lírico dos sentimentos que estava a ser cantado? Era a transformação do mais belo paraíso onírico numa terra de ninguém com o "Eu" perdido em meio a sentimentos inomináveis? Era tudo isso e também a definição da interrogação feita pelo espírito, ao menos pelo meu espírito, quase como um grito ouvido do passado por mim no presente? Sim e/ou não; objetivamente a atmosfera remeteu-me a alguns outros discos: "Homogenic" (1997) de Björk, "A vida é doce" (1999) de Lobão, "Líricas"(2000) de Zeca Baleiro para ficar no mínimo, há outras ideias que me apareceram mas convém dizer que o som assemelhava-se ao som de Moska. Convém dizer que até então seu nome artístico era "Paulinho Moska" e que neste instante havia uma outra metamorfose e não estou falando sobre Kafka. Moska sabia que seria sempre chamado de 'Paulinho' mas sabia também que trocar o seu nome também era parte de sua arte. Na letra de "Blues do elevador" Baleiro diz: "Só faz milagres quem crê que faz milagres como transformar lágrima em canção" seria este "Eu falso da minha vida o que eu quiser" um milagre de Moska? Toda canção é biográfica mesmo quando se diz não ser, a composição é a revelação do que o olhar daquele ser captou. Deixemos de filosofias e vamos as músicas. 

IV - Da alma, a noite escura 
           Na companhia de Marcos Suzano (percussionista que tem entre seus trabalhos parcerias com Lenine, em Olho de Peixe e Vitor Ramil, em Satolep Sambatown) e Sacha Amback (programações) que são foram imprescindíveis pelo som que encontra-se no disco, Moska seguiu em sua mais instigante empreitada. Um parêntese: no momento em que digo que é a mais instigante, de forma alguma estou a desmerecer as passadas ou as vindouras obras. Tentemos então decifrar parte do que se apresenta nas faixas: 

1 - Corpo Histérico - A percussão e um dedilhado dão o tom para uma abertura fantasmagórica. São fantasmas sem fantasia, perturbações de inteligência e da percepção, uma histeria de quem foi abandonado e agora põe-se a querer saber para onde "o outro" foi no presente pois no futuro da memória de quem sofre eles estão juntos. Imagens paradoxais? Quando se coloca a si mesmo em outra pessoa o que é que sobra para si no momento em que essa pessoa partir? A personagem divaga sem ter uma certeza "como é que eu pude deixar me perder se eu nunca sequer me encontrei?" 

2 - Um e Outro - É uma canção bem livre e seu título pode ser visto como autoexplicativo. As diversas maneiras de agir e reagir em relação a vida. Enquanto um está inerte o outro está em movimento e estas ações variam entre si. Em cima de um muro entre cada uma das escolhas um e outro vivem quando alguém retira a última pedra desse muro, há que se escolher um caminho a seguir. 

3 - Não deveria se chamar Amor - Quando tentei definir o motivo de julgar esta obra como conceitual divaguei sobre o tema, esta faixa me coloca a impressão de que ele trata sobre uma perspectiva um tanto diferente sobre o sentimento chamado de amor. Para onde levam os rótulos? Há sentimentos que transcendem as palavras que podemos usar para defini-los. Há tantos nomes pelos quais poderíamos chamar um sentimento assim... No final desta balada nos é jogada uma ideia interessante: este sentimento "poderia simplesmente não se chamar para não significar nada e dar sentido a tudo" 

4 - Tudo que viveu e morreu - Essa música poderia estar como parte de acontecimentos pré "Corpo Histérico": "Definitivamente não sou o homem que vai sorrir depois que você se for" o parecer gostar das coisas que 'o outro' me fizeram lembrar de "A seta e o alvo", é uma canção com ares de 'pop' por não passar a sensação de claustro, o ar é de esperança. A parte eletrônica lembrou-me a usada por Jair Oliveira na faixa "Falso Amor" do disco "Outro" de 2002 o que tornou a faixa mais familiar para mim. 

5 - Nunca foi tarde - A única canção do disco que não é de autoria de Moska é uma versão da balada "Lover, You Should've Come Over" de Jeff Buckley do álbum "Grace" de 1994. Uma balada com cara de despedida: "O que aconteceu com o futuro que se perdeu? Com seu futuro que era o meu? Com meu futuro que era seu?" Seja como for nunca foi tarde... 

6 - Eu falso da minha vida o que eu quiser - Nas primeiras audições achei uma das faixas mais estranhas do disco e que talvez estivesse fora do lugar, entretanto, pensando no que coloquei no capítulo II sobre as metamorfoses de Moska a faixa faz todo o sentido por sua animação. Talvez fosse na época uma forma de dizer a todos qual era a sua proposta: fazer o que quisesse, tanto com seu nome quanto com sua música. Pensando numa visão interpessoal poderia ser o grito de alguém 'ao outro' numa 'não-submissão'. A palavra "falso" no lugar de "faço" também poderia significar que toda a ideia de mudança neste disco é uma 'farsa' se o poeta é um fingidor, Moska como compositor também o seria. Toda essa dor e angústia não seria sua, e mesmo assim ele teria todo o direito de demonstrá-la, ainda que ninguém além dele entendesse. 

7 - Mentiras Falsas - Enquanto ouvia pensava no livro n'O túnel de Ernesto Sabato. As incertezas do que ouvimos (e dizemos) e os ciclos de decepções a que nos colocam. Fosse apenas o baixo e o pandeiro a música por si já seria instigante, a canção ganha um aspecto visceral por volta de um minuto quando Moska passa a 'gritar' a letra e ainda assim a melodia 'quebrada' não cansa; 

8 - Meu pensamento não quer pensar - Na música mais curta deste disco é curioso notar a forma como o 'eu - lírico' expressa que para aprender terá que apanhar e essa é a única forma de o ser humano evoluir. Seria o mesmo personagem da canção anterior? estaria sua via crucis justificada agora? O pensamento não quer pensar e cobra do 'eu-lírico' uma ação; há uma insatisfação em relação a pessoa que mantém os mesmos padrões e que tem a paixão por coisas absolutamente banais. Apesar do tema abordado a música corre. 

9 - Oásis - Uma música que me colocou no oriente médio tanto por seu arranjo quanto por sua melodia. Uma visão do amor, mais uma vez perturbadora: "Será que todo amor que eu inventei por ti terá que se perder pra nos descobrir?". É uma experiência tanto pelas experimentações que levam a outros ambientes quanto pelo vocal as vezes fantasmagórico outras vezes mais intenso. 

10 - Um ontem que não existe mais - Em primeiro lugar essa música lembrou-me dos sintetizadores do Depeche Mode no disco de 2005 "Playing The Angel" foi quando me dei conta de como era interessante estar 'deslocado no tempo', como é que uma canção de um disco de 2001 remeteria a uma feita anos depois? Essa é talvez a canção mais densa do disco, se não for posso afirmar que é a mais longa. E a insatisfação de que falei na faixa 8 retorna aqui: "Você não me quer só porque eu não sou comum, só porque eu não sou banal, só porque eu não sou qualquer um, não quero parecer normal" é um lamento lírico de sete minutos. 

11 - Mar Deserto - Parte dessa música tem a mesma atmosfera da anterior. Ela vai para um outro lugar, todavia. Aqui o 'eu - lírico' está cansado da repetição do ciclo que tem tomado a sua vida e percebe que é hora de deixar sua inércia. "Agora vou voltar, mas não é para trás: O seu amor é que não me satisfaz".. Ao final da música há uma mensagem ao contrário que se assemelha a "Mais, assim nunca mais" não poderia ser mais correta a frase, já deixando transparecer o que estava por vir. 

12 - Para sempre nunca mais - O trecho reverso da canção passada reaparece aqui. Há alguém que diz em alguns trechos da canção "Forever nevermore". O Nevermore lembrou-me do corvo de Edgar Allan Poe, o que é até entendível em tal disco com ares de 'sombrio' essa música é bem animada embora sua letra não o seja. O trecho "E agora é para sempre nunca mais. Nunca para, é sempre mais mas sempre nunca iguais. Para sempre nunca mais" fez-me pensar que o artista teve por aqui uma linha do que faria nos próximos trabalhos, a forma que ele trata as palavras remeteu-me a "Lágrimas de diamantes". Divago é claro, ele poderia ter composto essa antes das outras, nunca me sei. 

13 - Vênus - Uma viagem tranquila, quase o mar, mais amor. Nessa canção fechamos o tema do amor da forma mais sublime que se poderia, o olhar que é dado a completude do sentimento e suas diversas interpretações. A canção é tão leve que poderia ser levada pelo vento a qualquer tempo. Todo o caminho percorrido pelas outras canções traz e prepara a esta: "Perceba que o que nos configura é sempre essa beleza que jorra do nosso jeito de olhar, nosso jeito de dar amor. Nos dar amor" E é por ser o amor o tema deste disco que mesmo quando a música parece não ter nada para nos apresentar Moska retorna proclamando sua poesia "Do amor", que para mim pode até ser vista como a décima quarta faixa do disco. Tudo o que o eu-lírico vê é através dos olhos do amor, ele se permite vivê-lo e saboreá-lo. E é por ter vivido esta tempestade nos mares do amor e sobrevivido que o autor pode chegar (e nos levar) a sua nova metamorfose. Agora seria o 'encontro do eu' numa nova vida, tudo novo de novo. 

V – Das positivas            
           Depois de tudo penso se fui capaz de explicar alguma coisa ou se estive perdido em bonitas palavras tentar encontrar para que elas fizessem por mim o serviço. Percebo que diversas vezes falei apenas superficialmente sobre a música em si, que haveria eu de dizer? Acaso entendesse melhor acerca das estruturas melódicas dissertaria tão somente elas, ou faria um anexo. O som é aquele que se apresenta aqui. Não um conjunto hermético, mas um passo importante! Era, já em 2001, um álbum sobre milagres e feridas, uma viagem sombria, distinta da que viria a empreender com Fito Paez, no futuro. 

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