sábado, 30 de julho de 2016

Fluxorama ou (Todo mundo é uma Ilha)

“Exercitar a si mesmo ao máximo, dentro de seus limites individuais: essa é a essência da corrida, e uma metáfora para a vida” Haruki Murakami, maratonista.
ANTES DOS ATOS

- Sim, creio será a melhor maneira de agir. Estarei no meio de um dos corredores aguardando a passagem de Ciocler, depois que os fãs mais afoitos o tiverem abordado vou me aproximar e fazer minha pergunta; Digo ao menos se deixarem algum espaço. Nunca estive numa noite de estreia. Quem sabe eu devesse falar com a Marjorie Estiano ou ainda Luiz Henrique Nogueira e a Juliana Galdino. Depois de conversar sobre as atuações e a peça em si acho estarei mais confortável para realizar minha pergunta. Estarei? Pensando bem não mais sei. Não conheço o trabalho de Jô Bilac quais são seus temas, sua abordagem? Quem é Monique Gardenberg e quais seus predicados como diretora? Como falar sobre autores que não conhecemos? Sinto como o grande Outro me negasse o direito ao não saber. Nemo tenetur se detegere! Maldita hora para não ter certezas, ou melhor: bendita! Ainda estou longe do Sesc Ipiranga e suponho a coragem até lá surja. A coragem surge ou é construída? Se fosse líquida bebê-la-ia? Há anos quero saber o que aconteceu com o Dr. Luís Camillo quando foi ao encontro de Dimas Bevilláqua no final da temporada d'A Cura. A série não voltaria nunca mais? Ai de mim! Triste destino que me foi atribuído em vida acompanhar tramas em aberto. Caco estava envolvido, ele, melhor do que ninguém, saberá cobrir com verniz de veracidade os boatos que rondaram o fim da série. No final das contas quem é que vai para um ponto meticulosamente pensando chegar a outro? O assunto definitivamente não é a série e meu nome nem mesmo é Frances!!!

As portas se abrem e ele, atônito, percebe estar na estação errada. Mal sabia ele: tinha embarcado na linha errada.

OS ATOS EM SI

...se começar a chorar aqui de repente vai manchar tudo e eu vou ficar horrível e só vou notar quando já estiver atravessado toda a avenida com cara de palhaça e ficar assim rindo com a cara borrada abraçando meus amigos que deixei de ver há muito tempo, mas isso agora nem faz diferença pois a cada encontro os aperto como se pudesse dissolvê-los em meus braços de tão forte o abraço, de tão forte que quero senti-los, de tão forte que tudo isso me toma, de tão forte que meus sentimentos me inundam, de tão forte que essa dor no meu peito explode como uma napalme nuclear, de tão afetuosa e de tão querendo e de tão absoluta essa loucura que é o amor... Juliana Galdino

Quem é o outro? Quem somos quando privados da interação com o outro? Privados da audição, estamos a sós com nossos gritos e idiossincrasias. Demandamos por atenção, queremos ser vitrines, disseminar preocupações, receios, anseios. Quanto nos permitimos abrir este espaço para o que está fora de nós?! Podemos, por vezes, apenas estar habituados a determinadas cadências, tons, flexões. AMANDA sofrendo de uma doença misteriosa decide manter a perda dos sentidos em segredo. A aterradora situação não a força a quebrar o ciclo. Sinais, palavra escrita? Nada! É preferível não abrir diálogo algum. Prosseguir o monólogo. Quem sabe dar-se conta de que essa escolha já fora tomada bem antes de o problema surgir. Ou não.

A pior coisa do mundo é morrer deprimido. Vale morrer de raiva, morrer de medo, morrer de rir, morrer de inveja, morrer de tesão, morrer de vergonha, morrer de dor de cabeça, morrer atravessado por um arpão...Pode. Pode tudo. Deprimido não. Luiz Henrique Nogueira

Meu amor, o que você faria se só te restasse um dia? Não. Algumas horas, minutos, segundos? E se o filme de sua vida fosse o retrato cínico do carma inexistente, resultado de nossa opressora liberdade? Há cheiro de morte e não se quer saber o gosto do sangue, nunca. A dor de LUIZ GUILHERME é ver se aproximar a última certeza. Ele, como o maluco beleza, imaginou que ela viria no meio do copo de uísque, ou teria sido conhaque desta vez? Certamente o brandy. Aquilo naquele instante não importava.  Ele, como muitos, pode se ter vestido dum manto de invencibilidade, o #nuncavaiacontecercomigo e quem há para dizer? Agora, unido com seu cavalo de aço reflete. Encontra humor. Melhor seria negar a dor. Ah! Se ele pudesse tomar apenas mais uma dose. Estamos anestesiados de nossas próprias tragédias ourobóricas.

A culpa não é sua, é um desgaste natural e tudo é descartável, incluindo você. Incluindo o que você sente. Pensa. Quer. Pode (...) Você pode, pode. E quem não pode? Se sacode onde? Como? Com que dinheiro? Você pode tudo tudo, só não pode arregar! Marjorie Estiano

No meio do caminho há asfalto. Nada mais. Pouco importam câmeras e transmissões. A multidão se projeta, alguns almejam assistir o beijo no piche quente... Padres irlandeses podem estar a espreita, mas os passos se sucedem. Há uma série de atos interrompidos no cotidiano, planos desfeitos. Inspira. A linha de chegada é um objetivo concreto, palpável. Expira Chegar. Vencer também não está em jogo e sim não deixar o corpo perder - os sentidos? a vida? - O início e o fim estão além do alcance de VALQUÍRIA. A vida é sempre, sempre percurso-travessia de datas-dias-pessoas-passos. Há asfalto no meio do caminho e, diria Gessinger, a única certeza é que o último dia de dezembro é sempre igual ao primeiro de janeiro.

o porco/ morrendo/ esquece o bicho que se apavora tanto/
esquece o grito do bicho que se apavora tanto/
esquece esse grito/ esse grito/
esquece esse grito de quem mesmo vivendo
na merda/ na lama/ quer ficar...
Caco Ciocler

Você pode pensar, jejuar ou esperar, no entanto, preso em um banheiro pode alcançar o nirvana? Sim?! Acrescente então uma série de ofídios com consciências singulares em sua cabeça, a existência se torna MEDUSA e o ato de meditar se torna uma impossibilidade prática. Afogamo-nos todos em informações de nossos pluripercursos. A busca pelo não-pensar é procurar o stop do pensamento que é dinâmico. Possuímos, enfim, um fio condutor ou tudo são tentativas de chegar ao fim? Cada monólogo suscita diálogos seminais. Expectativa de convergência dos solos, retrato de nossos tempos, assonância política. Fora Temer! roteiro-ator-inconsciente coletivo?. Se tudo é referencia, viciosos ciclos de inércia, eternos retornos, todos os pensamentos são presa de alguma besta.


Virá
Impávido que nem Muhammad Ali
Virá que eu vi
Apaixonadamente como Peri
Virá que eu vi
Tranquilo e infalível como Bruce Lee
Virá que eu vi
O axé do afoxé Filhos de Gandhi
Virá
E aquilo que nesse momento se revelará aos povos
Surpreenderá a todos não por ser exótico
Mas pelo fato de poder ter sempre estado oculto
Quando terá sido o óbvio

quarta-feira, 27 de julho de 2016

A Louça Fina de Djavan

"Larga essa pose de literata
Diz que não ama Djavan
Cantar é tão bom
Entender pra quê?" 

Eu amo Djavan - Tó Brandileone e Ricardo Teté

       Ainda eu já conhecesse diversos singles de seu cancioneiro, voltei a atenção para Djavan apenas em 2007 quando do lançamento do álbum Matizes. A safra de composições iniciada nos anos 2000 é repleta da sofisticação característica do alagoano. Em meio a uma das conversas com Jean Reis surgiu o pedido de uma análise que escrevi em abril de 2010 e publico aqui praticamente sem revisões, de modo a manter cacoetes, referências bibliográficas e o espírito da época. Schopenhauer, Freud, Raduan Nassar eram alguns dos autores com quem eu tratava maior contato nos tempos da faculdade então qualquer revisão maior seria racionalização tardia. Sigamos para a letra e a análise!


Louça Fina
Djavan
  
Boa, meiga, franca
Justiceira, tu me gustas
Chantilly num pedaço de bolo
Louça fina, mãos do meu amparo
Luz acesa
Pra que eu possa seguir...
Diz-me aí, sou todo ouvido:
Que só quer comigo
Ninguém mais, nada mais que o querer
Que o contrário não põe mesa
Inda traz tristeza
... isso não se vai ver!
Tudo pra mim
É riqueza, é riqueza
Porque passo ao lado teu
E todo amor
Tem um sonho, tem um sonho:
Propagar-se por terras antes perdidas,
Dando vida a um viver
Boca-luva, rosa-vulva,
Insuficiente o ar;
Vertigem, só de pensar!
Cores se acabando de alegria
Onde nasça flor
Em qualquer ramo pálido que já foi dor
É o que eu desejo
Pra nós dois
Todo mês
Tudo em paz
Toda vez
Minha amada
Se eu sei bem
Sei que mais
Não se tem, não se tem!


Boa, meiga, franca
Justiceira, tu me gustas

      A canção começa com quatro adjetivos que podem entrar como segredos de polichinelo palavras com uma aura já desgastada, mas que ora ou outra podem ser ditas ao pé do ouvido num início de momento mais intimo, Chantilly num pedaço de bolo 
      Pensando em Freud e sua teoria do simbolismo nos sonhos (isso por ele ter citado o fator sonho posteriormente), os doces são geralmente representação de satisfação sexual. o chantilly também pode estar relacionado a um comum fetiche e que no final das contas, independente da área em que o mesmo for colocado tudo terá sido feito numa busca pela satisfação anteriormente citada.
      Louça fina,que pode simbolizar um casamento ou também um amor cheio de encantamento que parece ser o caso aqui, também pode estar tratando da pele da mulher em questão sendo branca, ou fria ou mesmo os três - no Novo Testamento a mulher é referida como o 'vaso mais frágil' - mãos do meu amparo confirma a idéia de que o frio seja o de suas mãos que apoiam neste momento inicial do ato em que a luz está acesa - ainda que haja para muitos na sociedade uma não conformidade com a idéia da luz acesa, tenhamos em mente, mais que um momento inicial, os instantes da iniciação propriamente dita, onde há menos pudores sobre como deve-se proceder - para que ele possa 'seguir' como diria José Simão "Mais direto impossível", até mesmo há reticências para criar o clima do que está implícito"Luz acesa pra que eu possa seguir..."

       Neste próximo trecho o eu-lírico deixa transparecer levemente uma aura possessivista, mas que é comum quando em vista de uma relação monogâmica. ele diz "Diz-me aí, sou todo ouvido:" ou seja é mais uma confirmação do que ele mesmo afirmou que ele quer. E o que ele afirma é "Que só quer comigo, ninguém mais, nada mais que o querer". Cabe a mulher deseja-lo e quere-lo apenas - ressaltando que em relação a si, nada é dito - e que o contrário traria problemas de diversas instancias, do ramo material ao psicológico

Que o contrário não põe mesa
Inda traz tristeza
... isso não se vai ver!

Tudo pra mim
É riqueza, é riqueza
Porque passo ao lado teu
E todo amor
Tem um sonho, tem um sonho:
Propagar-se por terras antes perdidas,
Dando vida a um viver
Boca-luva, rosa-vulva,
Insuficiente o ar;
Vertigem, só de pensar!
Cores se acabando de alegria

      Neste trecho o eu-lírico retoma as ideias elogiosas de outrora, nos momentos de amor ou de paixão, há compartilhada um sensação de que os melhores momentos da vida são passados junto com esta pessoa. depois que sua declaração firma a mulher como seu amor ele altera o curso da leveza ao dizer que o sonho do amor é 'propagar-se por terras antes perdidas' podemos tomar o termo perdidas como escondidas, e sendo o corpo humano como um mundo. as terras perdidas podem ter um paralelo com a região que as mulheres - na cultura ocidental - tem mais cuidado em esconder de outrem e que ao ser compartilhada com alguém do outro sexo cria a possibilidade de "dar vida a um viver", a criação de vida, de uma família talvez.
      Em seguida temos um jogo de palavras que é interessante também enquanto jogo linguístico: a palavra 'vulva' em português tem a pronuncia similar a 'vuva' criando 'boca-luva','rosa-vuva' uma rima pela terminação que dá a idéia de que os substantivos compostos tem a mesma quantidade de letras. Esse jogo também cria uma outra imagem: a de um beijo perfeito, entretanto, este na vulva, numa alusão ao sexo oral que é corroborada pelas idéias subseqüentes de falta de ar e da vertigem, um arrepio pela simples menção da ação que traria emoções arrebatadoras dignas de alterar a percepção de visão, independente das cores existentes sua existência estaria fadada a explodir em satisfação ao clímax.

Onde nasça flor
Em qualquer ramo pálido que já foi dor
É o que eu desejo
Pra nós dois
Todo mês
Tudo em paz
Toda vez
Minha amada
Se eu sei bem
Sei que mais
Não se tem não se tem!

      Botões e flores indicam os genitais femininos ou, em especial, a virgindade, mas quando analisamos os sonhos os valores por seres muitos, serem diversos e pouco exatos, eles também podem representar os masculinos. esta afirmação remeteu ao livro "Lavoura Arcaica" de Raduan Nassar em que há um trecho que diz "nos intervalos da angústia, se colhe, de um áspero caule, na palma da mão, a rosa branca do desespero" sendo este trecho uma metáfora a masturbação, sendo a 'flor branca do desespero' a representação do sêmen, a  'flor que nasce de qualquer ramo pálido que já foi dor' também o é, mas na canção, algo que nasce em companhia de alguém. o fim do ato também para o homem.
      O sonho que todo amor tem seria o sexo que é o meio que há para perpetuar a espécie, isto sim um desejo intenso que faz parte de todos os seres, esta idéia dentro dos ideais do filósofo Schopenhauer que acreditava que todas as juras de amor existiam apenas para 'mascarar' o instinto de perpetração da espécie o que dentro do que já foi colocado dentro da interpretação feita acerca desta letra. O que leva também a idéia de que o ato sexual tomou uma vida própria ligada ao prazer, não significando apenas procriação, por isto é que o eu-lírico afirma que deseja isso para os dois todas as vezes, todos os meses, sempre na paz que pode levar às maiores alterações dos sentidos e este ato, esta sensação, é tão real e possível de maneira natural que para ele não existe algo mais que isso em nenhum aspecto ou circunstância.


quinta-feira, 14 de julho de 2016

O Dia Nunca Igual

ps: havia aberto uma página para escrever a você segunda. Só houve tempo para o título: “o dia nunca igual”. Não lembro o porquê de. - Kariny Cristina 11/07/2012

          Por vezes eram cartas entre Drummond e Mário. Dadas as devidas proporções, claro. Embora houvesse certo verniz de megalomania autodepreciativa. Por outros tempos era apenas o eterno retorno variando entre trezentos e sessenta e cinco dias - sim, há um despudor em citar Nietzsche sem entendê-lo de fato. N'algum lugar uma erupção solar causa uma tempestade geomagnética que passa despercebida. Noutro instante ela é Lenina mergulhada em soma para então sumir do alcance, dos olhos do radar. Hoje é silêncio. Desmaterializada não está: aporta na Terra Média e parece seguir os passos de Verne.
          Daquele indecifrável título erigi versos. Havia ali menções à Tropicália surgida em condução na rodovia Dutra, as cismas que a perseguiam, o atirar-se, O Rio de Janeiro - continuaria, ele, lindo? as Noites Brancas de Dostoiévsky, a pulsão de morte. Augusto dos Anjos,  a Casa Tomada de Cortázar. Tudo convergindo para o instante em que ela se torna Chaplin convocando para a união dos soldados em nome da democracia. Ideia eclipsada em busca de particularidades pessoais. Quanto disso permanece como reflexo das pessoas do agora, quatro anos depois? Algum tempo depois ele mesmo sintetizaria a confusão da esfínge:

Quem tu foi?
Quem tu és?
Ou serás?

Era novamente o dia nunca igual.

Uma melodia composta em uma afinação desconhecida por mim: CDGCEA. Algum tempo depois descobri poder ser utilizada, também, em um instrumento chamado Bandura! Nunca se sabe.




O Dia Nunca Igual (2012)

Acima de mim as àguas
Abaixo de mim a estrada
Ela no dia nunca igual
Resposta não lançada
Em solidão povoada
Goles de lírica ilusão

Os carinhos que estima são amargos
Tal a cisma insistente em achar paz
Ela trajando seu melhor sorriso
Atira-se ao Rio

Noites brancas são as tardes
As vezes a espera invade
A ânsia pelo doce final
Que quase sempre tarda
A alma já dourada
Ao gosto dos anjos do além-ser

Uma casa tomada por saudade
De uma ausente vestida de Paris
Em meio a marcha ela dirige-se aos soldados:
Unamo-nos por nós
Unamo-nos por nós
Unamo-nos

sábado, 9 de julho de 2016

O vôo mais sombrio de Moska

"O título do disco é um enigma, que eu montei para as pessoas entenderem o que quiserem. Minha diversão é ficar no meu mundinho, bolando esses enigmas - que alguns captam, outros não. Coloquei essa questão do falso em primeiro plano porque para mim a falsidade não é negativa em si: é a possibilidade de uma nova verdade." - Moska 


I - Do texto 
           Estar aberto ao desconhecido não é simples; quando se está falando sobre música torna-se ainda menos simples - difícil se preferir - ao menos é assim para mim. Muitas vezes é preciso uma série de acontecimentos para que um artista desperte a minha atenção outras vezes tudo que preciso é a insistente indicação de um amigo, compondo elegias com as palavras que lhe faltam para descrever um álbum, o desempenho, um espetáculo, outras vezes reunindo tudo isso. Moska foi um desses casos. O nome não me era estranho, eu conhecia algumas músicas do compositor "Tudo novo de novo", "O último dia", e as versões de "A flor e o espinho" e de "Sonhos". Havia poesia e belas melodias, entretanto foi apenas quando Jean Reis pediu para que eu escutasse a canção "Nuvem" de seu último trabalho "Muito Pouco" é me interessei em conhecer a obra completa do artista que me fez pensar comigo mesmo qual é que tinha sido o motivo de nunca ter me presenteado dessa maneira antes, então, conversando recentemente com Jean ele perguntou qual era meu disco preferido do Moska, e eu titubeando um pouco respondi ser o "Muito Pouco", mas afirmando que reouviria os discos para alterar ou manter meu 'veredicto'. Conclusão? A obra que me chamou a atenção chamava-se "Eu falso da minha vida o que eu quiser". 

II - Para sempre tudo novo 
           Naquele tempo a reinvenção da maneira de se ver e buscar ser visto já aflorava no artista, desde o seu primeiro disco de 93 "Vontade" com ares de rock, os elementos brasileiros crescentes em "Penzar é fazer música" de 95, a filosofia das relações do 'Eu' em "Contrasenso" em 97 que contava com a balada realista "A seta e o alvo" e uma (talvez) citação a Henry James em "A outra volta do parafuso" para mim a canção mais emblemática desta coleção com versos como "Você me dói agudo e isso é grave. "Antes de te reencontrar sei que preciso voltar a ser alguém". Essa forma realista de encarar os fatos podia ser percebida em diversos títulos: "Me chama de chão", "Paixão e medo", "Seja o que deus quiser", "Tudo o que a gente quis", "Efêmero" e "Admito que perdi" apenas como exemplo, porque a realidade tem diversas nuances mesmo sob um olhar poético. 
Em 99 com o lançamento de Móbile havia mais um renascer, que atingia por completo até mesmo a aparência de Moska que surgiu então com cabelos descoloridos, aquele era um 'outro' e ao mesmo tempo o 'mesmo'. Neste disco as interferências eletrônicas passam a contribuir ainda mais com a assinatura de suas canções levando o ouvinte a outros ambientes, ou quem sabe países, podemos através da música conhecer outros países de nós e vislumbrar os de outros. Esta viagem chegou a um país vasto, antigo e novo ao mesmo tempo, em que o tempo flutuava e não havia gravidade, na mais veloz câmera lenta se recriava o Universo do entendimento. Seria um trocadilho tolo dizer que odisseia pessoal de Moska o havia levado ao ano de 2001? Seja como for, meus olhos assim disseram. 

III - Reflexos de um amor de perdição, ou não? 
           Ouvindo o disco do início ao fim uma das primeiras impressões que tive foi a de que se tratava de uma obra conceitual, o velho 'amor e dor' talvez? ou aprofundando-se nestes conceitos sobre a alegria e a tristeza, ou então a ausência da alegria e a presença da tristeza? Semanas passadas embaixo de um sol negro, regado a lágrimas com gosto de sangue? ou seria o lado mais lírico dos sentimentos que estava a ser cantado? Era a transformação do mais belo paraíso onírico numa terra de ninguém com o "Eu" perdido em meio a sentimentos inomináveis? Era tudo isso e também a definição da interrogação feita pelo espírito, ao menos pelo meu espírito, quase como um grito ouvido do passado por mim no presente? Sim e/ou não; objetivamente a atmosfera remeteu-me a alguns outros discos: "Homogenic" (1997) de Björk, "A vida é doce" (1999) de Lobão, "Líricas"(2000) de Zeca Baleiro para ficar no mínimo, há outras ideias que me apareceram mas convém dizer que o som assemelhava-se ao som de Moska. Convém dizer que até então seu nome artístico era "Paulinho Moska" e que neste instante havia uma outra metamorfose e não estou falando sobre Kafka. Moska sabia que seria sempre chamado de 'Paulinho' mas sabia também que trocar o seu nome também era parte de sua arte. Na letra de "Blues do elevador" Baleiro diz: "Só faz milagres quem crê que faz milagres como transformar lágrima em canção" seria este "Eu falso da minha vida o que eu quiser" um milagre de Moska? Toda canção é biográfica mesmo quando se diz não ser, a composição é a revelação do que o olhar daquele ser captou. Deixemos de filosofias e vamos as músicas. 

IV - Da alma, a noite escura 
           Na companhia de Marcos Suzano (percussionista que tem entre seus trabalhos parcerias com Lenine, em Olho de Peixe e Vitor Ramil, em Satolep Sambatown) e Sacha Amback (programações) que são foram imprescindíveis pelo som que encontra-se no disco, Moska seguiu em sua mais instigante empreitada. Um parêntese: no momento em que digo que é a mais instigante, de forma alguma estou a desmerecer as passadas ou as vindouras obras. Tentemos então decifrar parte do que se apresenta nas faixas: 

1 - Corpo Histérico - A percussão e um dedilhado dão o tom para uma abertura fantasmagórica. São fantasmas sem fantasia, perturbações de inteligência e da percepção, uma histeria de quem foi abandonado e agora põe-se a querer saber para onde "o outro" foi no presente pois no futuro da memória de quem sofre eles estão juntos. Imagens paradoxais? Quando se coloca a si mesmo em outra pessoa o que é que sobra para si no momento em que essa pessoa partir? A personagem divaga sem ter uma certeza "como é que eu pude deixar me perder se eu nunca sequer me encontrei?" 

2 - Um e Outro - É uma canção bem livre e seu título pode ser visto como autoexplicativo. As diversas maneiras de agir e reagir em relação a vida. Enquanto um está inerte o outro está em movimento e estas ações variam entre si. Em cima de um muro entre cada uma das escolhas um e outro vivem quando alguém retira a última pedra desse muro, há que se escolher um caminho a seguir. 

3 - Não deveria se chamar Amor - Quando tentei definir o motivo de julgar esta obra como conceitual divaguei sobre o tema, esta faixa me coloca a impressão de que ele trata sobre uma perspectiva um tanto diferente sobre o sentimento chamado de amor. Para onde levam os rótulos? Há sentimentos que transcendem as palavras que podemos usar para defini-los. Há tantos nomes pelos quais poderíamos chamar um sentimento assim... No final desta balada nos é jogada uma ideia interessante: este sentimento "poderia simplesmente não se chamar para não significar nada e dar sentido a tudo" 

4 - Tudo que viveu e morreu - Essa música poderia estar como parte de acontecimentos pré "Corpo Histérico": "Definitivamente não sou o homem que vai sorrir depois que você se for" o parecer gostar das coisas que 'o outro' me fizeram lembrar de "A seta e o alvo", é uma canção com ares de 'pop' por não passar a sensação de claustro, o ar é de esperança. A parte eletrônica lembrou-me a usada por Jair Oliveira na faixa "Falso Amor" do disco "Outro" de 2002 o que tornou a faixa mais familiar para mim. 

5 - Nunca foi tarde - A única canção do disco que não é de autoria de Moska é uma versão da balada "Lover, You Should've Come Over" de Jeff Buckley do álbum "Grace" de 1994. Uma balada com cara de despedida: "O que aconteceu com o futuro que se perdeu? Com seu futuro que era o meu? Com meu futuro que era seu?" Seja como for nunca foi tarde... 

6 - Eu falso da minha vida o que eu quiser - Nas primeiras audições achei uma das faixas mais estranhas do disco e que talvez estivesse fora do lugar, entretanto, pensando no que coloquei no capítulo II sobre as metamorfoses de Moska a faixa faz todo o sentido por sua animação. Talvez fosse na época uma forma de dizer a todos qual era a sua proposta: fazer o que quisesse, tanto com seu nome quanto com sua música. Pensando numa visão interpessoal poderia ser o grito de alguém 'ao outro' numa 'não-submissão'. A palavra "falso" no lugar de "faço" também poderia significar que toda a ideia de mudança neste disco é uma 'farsa' se o poeta é um fingidor, Moska como compositor também o seria. Toda essa dor e angústia não seria sua, e mesmo assim ele teria todo o direito de demonstrá-la, ainda que ninguém além dele entendesse. 

7 - Mentiras Falsas - Enquanto ouvia pensava no livro n'O túnel de Ernesto Sabato. As incertezas do que ouvimos (e dizemos) e os ciclos de decepções a que nos colocam. Fosse apenas o baixo e o pandeiro a música por si já seria instigante, a canção ganha um aspecto visceral por volta de um minuto quando Moska passa a 'gritar' a letra e ainda assim a melodia 'quebrada' não cansa; 

8 - Meu pensamento não quer pensar - Na música mais curta deste disco é curioso notar a forma como o 'eu - lírico' expressa que para aprender terá que apanhar e essa é a única forma de o ser humano evoluir. Seria o mesmo personagem da canção anterior? estaria sua via crucis justificada agora? O pensamento não quer pensar e cobra do 'eu-lírico' uma ação; há uma insatisfação em relação a pessoa que mantém os mesmos padrões e que tem a paixão por coisas absolutamente banais. Apesar do tema abordado a música corre. 

9 - Oásis - Uma música que me colocou no oriente médio tanto por seu arranjo quanto por sua melodia. Uma visão do amor, mais uma vez perturbadora: "Será que todo amor que eu inventei por ti terá que se perder pra nos descobrir?". É uma experiência tanto pelas experimentações que levam a outros ambientes quanto pelo vocal as vezes fantasmagórico outras vezes mais intenso. 

10 - Um ontem que não existe mais - Em primeiro lugar essa música lembrou-me dos sintetizadores do Depeche Mode no disco de 2005 "Playing The Angel" foi quando me dei conta de como era interessante estar 'deslocado no tempo', como é que uma canção de um disco de 2001 remeteria a uma feita anos depois? Essa é talvez a canção mais densa do disco, se não for posso afirmar que é a mais longa. E a insatisfação de que falei na faixa 8 retorna aqui: "Você não me quer só porque eu não sou comum, só porque eu não sou banal, só porque eu não sou qualquer um, não quero parecer normal" é um lamento lírico de sete minutos. 

11 - Mar Deserto - Parte dessa música tem a mesma atmosfera da anterior. Ela vai para um outro lugar, todavia. Aqui o 'eu - lírico' está cansado da repetição do ciclo que tem tomado a sua vida e percebe que é hora de deixar sua inércia. "Agora vou voltar, mas não é para trás: O seu amor é que não me satisfaz".. Ao final da música há uma mensagem ao contrário que se assemelha a "Mais, assim nunca mais" não poderia ser mais correta a frase, já deixando transparecer o que estava por vir. 

12 - Para sempre nunca mais - O trecho reverso da canção passada reaparece aqui. Há alguém que diz em alguns trechos da canção "Forever nevermore". O Nevermore lembrou-me do corvo de Edgar Allan Poe, o que é até entendível em tal disco com ares de 'sombrio' essa música é bem animada embora sua letra não o seja. O trecho "E agora é para sempre nunca mais. Nunca para, é sempre mais mas sempre nunca iguais. Para sempre nunca mais" fez-me pensar que o artista teve por aqui uma linha do que faria nos próximos trabalhos, a forma que ele trata as palavras remeteu-me a "Lágrimas de diamantes". Divago é claro, ele poderia ter composto essa antes das outras, nunca me sei. 

13 - Vênus - Uma viagem tranquila, quase o mar, mais amor. Nessa canção fechamos o tema do amor da forma mais sublime que se poderia, o olhar que é dado a completude do sentimento e suas diversas interpretações. A canção é tão leve que poderia ser levada pelo vento a qualquer tempo. Todo o caminho percorrido pelas outras canções traz e prepara a esta: "Perceba que o que nos configura é sempre essa beleza que jorra do nosso jeito de olhar, nosso jeito de dar amor. Nos dar amor" E é por ser o amor o tema deste disco que mesmo quando a música parece não ter nada para nos apresentar Moska retorna proclamando sua poesia "Do amor", que para mim pode até ser vista como a décima quarta faixa do disco. Tudo o que o eu-lírico vê é através dos olhos do amor, ele se permite vivê-lo e saboreá-lo. E é por ter vivido esta tempestade nos mares do amor e sobrevivido que o autor pode chegar (e nos levar) a sua nova metamorfose. Agora seria o 'encontro do eu' numa nova vida, tudo novo de novo. 

V – Das positivas            
           Depois de tudo penso se fui capaz de explicar alguma coisa ou se estive perdido em bonitas palavras tentar encontrar para que elas fizessem por mim o serviço. Percebo que diversas vezes falei apenas superficialmente sobre a música em si, que haveria eu de dizer? Acaso entendesse melhor acerca das estruturas melódicas dissertaria tão somente elas, ou faria um anexo. O som é aquele que se apresenta aqui. Não um conjunto hermético, mas um passo importante! Era, já em 2001, um álbum sobre milagres e feridas, uma viagem sombria, distinta da que viria a empreender com Fito Paez, no futuro. 

domingo, 3 de julho de 2016

Madrugada ou (Da influência da lírica trovadoresca na música popular brasileira)

Há descaminhos em meus passos/Uma sombra que abraço/
Um presente passado/Uma vontade tamanha de não ter mais vontade/
Não admiro os covardes mas agora é tarde. Presente Passado, Isabella Taviani


Proximidade ao local de nascimento das primeiras canções (2017)

Há ecos trovadorescos mesmo quando o compositor em questão guarda seus textos da madrugada nas gavetas da vida. Quando ele age como um abutre para capturar as agruras da vida, e se coloca no lugar da amiga, para falar de um horrível momento entre ela e um amigo. Isso é abuso da amizade, ou, é louvar cada passagem da vida? A noite escura da alma antes de um alvorecer? Rimar amor e dor é um dos maiores clichês, mesmo que ocorram de um fluxo impensado. Passado o tempo, importam as origens das canções?




Madrugada (2007)

Saber a verdade é bom
Mas nem sempre me faz bem
E se as lagrimas rolarem
Em meu vestido branco?
Infinito vermelho verterá
Da tristeza, insuportável passageira
Acompanha até o ponto final

Deixe em paz!
Meus pensamentos voam
Vão levando as lembranças aos poucos
Vai sangrar!
Tingindo todo o vestido
Não é escarlate, é um rubro sangue
E vou usar
Pra me lembrar
Que já superei a dor
De perder mais um amor


O texto abaixo era parte de uma atividade acadêmica em que a composição Madrugada foi inserida, uma vez que sua versão escrita era do ponto de vista feminino.

DA INFLUÊNCIA DA LÍRICA TROVADORESCA NA MÚSICA POPULAR BRASILEIRA

O Trovadorismo é a primeira escola literária e compreendeu do século XII ao século XIV, ela é, assim denominada, pela presença dos trovadores que eram os responsáveis por compor os poemas e as melodias para acompanhamento. Os poemas, enquanto cantados, eram denominadas cantigas. Tais cantigas, primeiramente destinadas ao canto, foram manuscritas e transpostas posteriormente em coletâneas, os Cancioneiros.As cantigas são divididas entre o gênero lírico e o satírico. No primeiro se enquadram as Cantigas de amor e as Cantigas de amigo já no segundo encontram-se as Cantigas de escárnio e as do maldizer. Para nós, neste estudo referenciaremos o gênero lírico.
Nas cantigas de amor o cavalheiro se dirige à mulher desejada de maneira idealizada, se põe a serviço da dama da corte, sua senhora – descrita como ‘senhor’ uma vez que palavras terminas em or como senhor ou pastor, em galego-português, não possuíam feminino – reproduzindo a relação entre suseranos e vassalos, em virtude disso o termo vassalagem amorosa é encontrado em estudos afins. Já nas cantigas de amigo observamos o sentimento feminino cantado pelo trovador que imagina os sentimentos da mulher na ausência do amigo, podendo ser interpretado como o esposo, namorado, amante, etc. As mulheres não eram consultadas.
Poder-se-ia pensar que com o passar dos anos a influência desses textos teria fenecido e, no entanto, com as divisões literárias servindo apenas para fins acadêmicos somos capazes de encontrar ecos e a influência da produção daquele período tanto na literatura brasileira contemporânea quanto na música produzida no país. E não em poucas! Entre os influenciados estão cantautores tais Chico Buarque que tem entre algumas canções que podem ser vistas sob essa ótica Olhos nos olhos, Atrás da porta e Teresinha. Djavan, em canções como Meu bem querer, Correnteza e Oceano. Caetano Veloso com Queixa ou Sozinho, de Peninha. O grupo Roupa Nova também demonstra esses ares quando canta Dona.
Os ecos trovadorescos ressoam, também, em álbuns de rock, como o resgate feito por Renato Russo de um poema do trovador Nuno Fernandes Torneol, presente no álbum V com o nome Love Song:

Pois nasci nunca vi amor
E ouço del sempre falar
Pero sei que me quer matar
Mas rogarei a mia senhor
Que me mostr’aquel matador,
Ou que m’ampare del melhor


O compositor Fernando Anitelli, d’O Teatro Mágico, também se mostra atingido em alguns momentos, como nos primeiros versos da canção Sina Nossa, presente no álbum O Segundo Ato:

Mia senhora,
És de lua e beleza
És um pranto do avesso
És um anjo em verso
Em presença e peso
Atrevo-me atravesso
Pra perto do peito teu

Outro exemplo está em Marcelo Camelo, e sua composição A Outra - de Ventura - observemos a letra para fundamentar essa questão:

Paz, eu quero paz
Já me cansei de ser a última a saber de ti
Se todo mundo sabe quem te faz
Chegar mais tarde
Eu já cansei de imaginar você com ela
Diz pra mim
Se vale a pena, amor
A gente ria tanto desses nossos desencontros
Mas você passou do ponto
E agora eu já não sei mais

Eu quero paz
Quero dançar com outro par
Pra variar, amor
Não dá mais pra fingir que ainda não vi
As cicatrizes que ela fez
Se desta vez
Ela é senhora deste amor
Pois vá embora, por favor
Que não demora pra essa dor
Sangrar


Ao pensarmos nas características gerais das cantigas de amigo notamos a presença do eu-lírico feminino, comprovado no verso “já me cansei de ser a última, a saber de ti” pela desinência de gênero. A linguagem encontrada não é rebuscada remetendo a ideia de uma mulher simples; há também paralelo entre o primeiro verso de cada estrofe com “eu quero paz”. O eu-lírico se lamenta por uma traição sofrida pelo amigo e nisso cria uma imagem curiosa quando diz “se desta vez ela é senhora deste amor” vemos na ideia supracitada, o amigo tem, na outra, a senhora. O arranjo é leve, e, se não tratamos quanto a estruturação dos versos é por não haver, na música contemporânea, regras específicas para tal.

Concluímos a presença da herança trovadoresca na música que o cantautor Lenine chama de MPP: música popular planetária e que alimentaria discussões acadêmicas relativas a qual é o ponto de fissura entre o compositor popular e o poeta.