sábado, 21 de outubro de 2017

Dádiva

"No mundo em que vivemos, o que sabemos e o que não sabemos são como gêmeos siameses, inseparáveis, existindo num estado de confusão." Minha querida Sputnik, Haruki Murakami
Natureza morta com livros, Vincent Van Gogh


Dádiva (2011)

Me habituei as dúvidas da vida
Se o poeta já tiver passado
No caminho que encontrei
Criarei n'alguma parte
O vislumbre aninhado de meu sonho
Sou quem não cabe em palavras
Só espere o magenta clarear
Para então desencontrar 
Essa árida fortuna
Rabiscada em rodapés sem harmonia

A vida é dádiva
A que não me habituei
Não sei pra onde me dirijo
Tampouco o motivo por que cheguei

E que os moinhos não mudem
Seu fluxo para as juras que nunca
Passaram de um descalabro

Moleskine vermelho, meados de fevereiro de 2011

        02/05/2011 data um e-mail enviado para Fabíola com essa composição. A ideia naquele tempo era que minha amiga cantasse essa música. Algo que, até este ano de 2017, não ocorreu oficialmente. Fiquei pensando nisso quando, há alguns dias atrás, ouvi o podcast Café Brasil nº580. O ouvinte Juliano Ribeiro é um músico e compositor pernambucano e ele tem um projeto chamado "A música de sua vida" (www.amusicadasuavida.com) em que compõe música com as histórias das pessoas. Para compor, escrever a letra e fazer a música ele precisa filtrar pelas referências de quem contratou o serviço. 
        Ainda a composição seja um de meus hobbies favoritos. Por vezes tento realizar projeto com empenho similar. Para ter a sensação de "entendimento" usar as ideias de outras pessoas me permite sair um pouco de mim mesmo. Então trazer uma citação atribuída a Sigmund Freud "Aonde quer que eu vá, eu descubro que um poeta esteve lá antes de mim" acabou partindo de conversas com a, então, estudante de psicologia. Assim como outras frases que ela me dissera tais "águas passadas não movem moinhos" ou "quem jura mente". Como um tatuador mescla algo de si às suas telas humanas, coloquei a palavra "descalabro" na letra como resquício de alguma entrevista do compositor Lobão vista à época. Há palavras que tão logo conhecemos precisamos usar!
         A melodia do refrão conserva algo de Don't Cry da Guns n' Roses embora não fosse uma intenção consciente. Talvez a influência de Renato Russo que adorava fazer medleys de outros compositores quando performava algumas de suas canções - a versão de Ainda é Cedo no álbum As Quatro Estações ao vivo é o melhor exemplo disso -  tenha vazado na composição. Por conta de direitos autorais, a versão voz & craviola presente neste post não apresenta o canto incidental. Mas está tudo aí! Uma das discussões que conduzem a trama o último livro de Dan Brown, Origem, é o velho conflito "de onde viemos? para onde vamos?". Nem sempre se sabe, mas a poderosa peça continua.

Em tempo! Vamos com a definição do Michaelis:
descalabro 
des·ca·la·bro
sm

  1. Estado de decadência ou degradação; ruína.
  2. Prejuízo elevado; dano, estrago.
  3. Desorganização extrema; balbúrdia, caos.    

quinta-feira, 12 de outubro de 2017

O Tempo Passado

"O presente puro é um inatingível avançar do passado devorando o futuro. Em verdade, toda sensação já é memória." Henri Bergson




O Tempo Passado (2010)
O tempo passa tão passado
Reprisado, antecipado.
Passa quando vejo que passa
Para, quando vejo que passa
E continua a passar
E continua a passar, parar.

O tempo tempera a ternura
E a temperatura
E perpetua por todo o passado
Presente e futuro

Passado o tempo tudo fica
Memorizado, marcado ou manchado
Importado? Importante ou não
O tempo passou e mais uma vez
Pausado passou que nem vi

          Se a foto ilustrando esse post não é a de minha turma pré-escolar tomo as palavras da canção de Chico Buarque e Ruy Guerra explicando que há distância entre intenção e gesto. "Mas Thales", diria meu editor, "você não pode começar o texto falando de um compositor famoso, esse ato quebrará a atenção da leitora ou leitor, que ficarão propensos a buscar o trecho em itálico no Google". Quem leu até este momento concorda com ele? Ou a ideia da pré-escola ecoou mais forte? Aos leitores que chegarem aqui, confiarei o texto aos seus cuidados:
           Anderson Gonçalves estava presente comigo pelos idos de minha segunda infância. (será que ele se recorda de interpretar Leiga em nossas formações-mandala dos recreios?) Voltamos a ter contato regular no Ensino Médio e entre as coisas que não perdemos pelo caminho estão alguns poemas que trocávamos por e-mail nos anos seguintes. 
          O Tempo Passado é uma das letras escritas por Anderson em meados de 2010. Gosto das sensações de tempo citadas e da personificação de um Tempo "mais dócil" comparado a algo que eu escrevia. Aprecio também a aproximação de "tempera, ternura e temperatura" se revolvendo numa dança silábica. Assim como viria a fazer com outra letra de Anderson (Falta) procurei imprimir mais cor na melodia, de modo não soasse monótona e hermeticamente reflexiva.
          Meu irmão Fernando achou essa foto há alguns meses atrás com minha avó. Quando ele me enviou pensei "bem, creio usarei no blog". Como ela viria a encorajar dias atrás "vergonha o quê, era você ué kkk". O traje de toureiro me lembra o livro O Touro Ferdinando, de Munro Leaf com ilustrações de Robert Lawson. O brasileiro Carlos Saldanha, lançará sua adaptação para os cinemas em dezembro desse ano. Oitenta e um anos depois da primeira publicação do livro. O tempo passa mas sua mensagem perpetua: antes o aroma das flores que o sangue derramado sobre a natureza morta. Que a paz seja nosso espetáculo cotidiano.
         

quarta-feira, 4 de outubro de 2017

Nada Há de Novo sob o Sol

 "Toda estória já foi contada. Uma vez que tenha lido Anna Karenina, A Casa Soturna, O Som e a Fúria, O Sol é Para Todos e Uma Dobra no Tempo, você entende que não há razão para sequer escrever outro romance. Exceto que cada escritor oferece, caso se permita, alguma coisa que ninguém mais na história do tempo jamais ofereceu." Anna Quindlen em discurso no Mount Holyoke College em 1999
ISS003-E-6816, Aurora Vermelha - NASA, Setembro de 2001



Nada Há de Novo sob o Sol (2017)


Quando eu desaparecer
Quem vai procurar
Se la fora as marchas da noite
Invadem nuvens?
Choverá por onde houver rancor:
- Eu vou me afogar!
É tão tarde
É tão tarde que já é cedo

Já não há salvação
Só resta um pedido:
Enterrem meu coração
Na curva de um rio
Para criar raiz
Renegando o pó

Nada há de novo sob o sol
Nenhum mistério a cada despertar
Há uma alma sem farol
Nunca outra alma a pode abrigar
Cada partida é um adeus
Adeus, adeus, adeus

         No fim da noite do dia vinte e cinco de agosto, uma sexta-feira, com o violão nos braços comecei a exercitar um conjunto de acordes. Sem perceber, já adentrava a madrugada do dia seguinte. Era necessário terminar a canção. Questão de sentido: era a única maneira dela se tornar um retrato daquele instante. Expiação de si, por assim dizer. Ainda assim, a letra foi crescendo com o passar de meses.
         Carrego o conceito d'A marcha da noite desde o ensino médio e nunca consegui explaná-lo. Na letra de Felinos (Baseado em Fatos, 2009) ele já aparecia. Em maio de 2016, no curso Mentiras Libertárias de Fabrício Carpinejar alcancei alguns versos:
Um pedido de socorro é vão
Se o seu amor não está lá
Para acompanhar o fim
Do que vai chegar
Nada há de novo sob o sol
É só miséria a cada despertar
         Sem conseguir desenvolvê-los, ficaram arquivados na pasta de "ideias úteis".  Onde havia um outro trecho perdido : É quase sempre outono já é tarde/ Tão tarde que já é cedo feito tendo em mente a fotografia de árvores arujaenses. No mês seguinte daquele ano como tentasse descobrir o sabor da frase a usei numa conversa com Fabio Kulakauskas. E acabou definido como o título do retorno às atividades da banda. Bruno Oliveira também participou dessas definições por essa razão essa é, ainda que alheio a eles. Uma produção coletiva. Como eram algumas das composições de dez anos antes. Mesmo com tudo isso, foi apenas no momento em que descobri o livro Enterrem Meu Coração na Curva do Rio (Dee Brown, 1970), que era lido por minha amiga Estela, que fiquei instigado a reunir todas essas informações numa linha coesa. Melodicamente há uma série de referências de Neve de Papel de Vitor Ramil (Longes, 2004) à composições próprias tal Dádiva (Belaventura, 2011). 
        Nada há de novo sob o sol foi retirado do 1:9 do Eclesiastes e me pareceu o título lógico para a temática das novas composições, iniciadas em 2016, pois elas vieram depois de anos distante da atividade criativa de forma ativa. A compilação de canções sob este título engloba um pouco de tudo que fora composto desde 2007. Há poemas musicados, composições de Bruno Oliveira, uma canção de Fábio Kulakauskas que eu terminei. Faixas em que uso a craviola de doze cordas. De um modo, é um reflexo do primeiro álbum. Falsa Modéstia. Só acaba uma vez, tudo o que ocorre antes disso é apenas progresso.