sábado, 25 de novembro de 2017

Notas Fora do Lugar

"Imagine que você tenha vivido num mundo em que não existissem espelhos. Você teria sonhado com seu rosto, o teria imaginado como uma espécie de reflexo exterior daquilo que se encontra em você. E depois, suponha que com quarenta anos tenham lhe estendido um espelho. Imagine seu espanto. Teria visto um rosto totalmente estranho. E compreenderia nitidamente aquilo que recusa a admitir: seu rosto não é você. " Milan Kundera, A Imortalidade
Otarterrotua


Notas Fora do Lugar (2013)

A Carta
Já foi escrita
E eu a postei
"tudo em mim mesmo"
Verdades movediças
A areia escorre
E somos nós
Escolhi uma máscara
Sem perceber
Que a peça mudou

Sempre digo as mesmas coisas
Que sejam o oposto da vaidade
E quem há para dizer?
Nunca breve nem conciso
Sou só o retrato impreciso
Deste eterno retorno

A poesia
O desafia
Ela cativa
Ao castigar
Quando ninguém
Viu sua morte
O seu viver
Inacabou

Ele chegou atrasado pra vida
Ele não lia jornais
Há mil palavras que unem os versos
Será que alguém sabe quais?

Sempre digo as mesmas coisas
Que sejam o oposto da vaidade
E quem há para dizer?
Nunca breve nem conciso
Sou só o retrato impreciso
Deste eterno retorno
De mim

Esta é só uma canção
Indo pra destino algum
Notas fora do lugar
Sons tão distantes do Sul
Esta é mais uma canção
Voz de alguém que nada é
Notas fora do lugar
Tempo leva pra nascer!


         Mantive a gravação caseira de 2013. Não por não querer um registro melhor e sim por representar a forma como enxergava o ato de gravar após praticar as canções de Vitor Ramil em seu songbook Foi no mês que vem. A ideia do "sul" rondava meu imaginário por muitos anos e compositores. Humberto Gessinger, Thedy Corrêa, Adriana Calcanhotto... Em 2017 pude visitar Porto Alegre pela primeira vez, ainda tenha sido apenas um final de semana era como saber que precisava respirar o ar do Sul. Tomar a frase descoberta no livro Satolep era a única forma de encerrar uma letra que falasse de mim. O conceito de "eterno retorno nietzschiano" com o qual tomei contato na obra de Kundera. O desconhecimento da morte como possibilidade de existência contínua nas expectativas de familiares é de um filme de Linklater (em que parte da trilogia do Antes está?). Coisas que ficaram muito tempo por dizer, agora parecem não encontrar lugar.

terça-feira, 7 de novembro de 2017

Para Contato (Marte)

"A solidão é, mais ou menos, uma circunstância inevitável. Às vezes, porém, esse senso de isolamento, como ácido espirrando de uma garrafa, pode inconscientemente corroer o coração da pessoa e dissolvê-lo. Podemos ver isso, ainda, como uma faca de dois gumes. Isso me protege, mas ao mesmo tempo me dilacera por dentro. Acho que a meu próprio modo tenho consciência desse perigo -- provavelmente, por intermédio da experiência --, e é por isso que constantemente mantenho meu corpo em movimento, em alguns casos forçando-me até o limite, a fim de curar a solidão interior que sinto e colocá-la em perspectiva. Não é tanto um ato intencional, mas, antes, uma reação instintiva." Haruki Murakami, Do que eu falo quando falo de corrida.

STS040-610-049 Mar Egeu Junho 1991


         Tire a microfonia, retire a cacofonia sonora. Sobra alguma coisa dessa composição? Você, leitora ou leitor desse texto é quem decide, afinal, provavelmente não tenha o parâmetro da gravação caseira feita em 2007. Décima primeira faixa da demo Falsa Modéstia, Para Contato (Marte), iniciava a trilogia da primavera (que segue com Um Conto no Jardim e Para Ela), inspirada na trinca do álbum Gessinger, Licks & Maltz da Engenheiros do Hawaii. Ali, travei contato com as possibilidades de um tema recorrente em canções. O Marte do título era por conta da microfonia ao final da música. Nada contextual à letra.
       O eu-lírico se dirige a um interlocutor desconhecido - senso de despeito inapropriado? - inconformado com uma decisão que lhe fugia ao controle. Na primeira estrofe predomina o caráter de negação, sintetizado pelo uso do não a iniciar os versos. Em seguida ele se dirige a outrem. "Parem de falar que as coisas são assim, sem ao menos entender!" Ele grita várias vezes como quem se faz de surdo. Aqui, cabe uma reflexão de um texto do psicoterapeuta Flávio Gikovate: Acredito que é direito legítimo de cada um falar ou não com qualquer outra pessoa. O fato de ela querer muito nossa atenção não nos obriga a aceitar sua aproximação. E isso independe das intenções de quem deseja o convívio. A postura demonstrada pelo eu-lírico nesta canção é carregada de prepotência e egoísmo. Sua insistência demonstra apenas a falta de respeito e a vontade de magoar gratuitamente, como fosse um direito!
        Isso fica evidente no trecho final da canção. Um poema aliterativo inspirado na apresentação de V no filme V de Vingança. As coisas já começam mal: "E no prelúdio irei me predispor a te prender se precisar" e essa atmosfera densa se mantém ainda ele prefira colocar palavras doces como primavera nessa equação desconsolada. O que suas lágrimas devem evocar? A decisão mais acertada para tal personagem seria respirar fundo e aceitar o conselho dos que ainda se prezavam à dá-lo: as coisas são assim mesmo. Não se deve confundir insistência com inconveniência.

Para Contato (Marte) - 2007

Não acredito no que você me disse
Não acredito que aquilo quis dizer
Não faço apostas, nem estou triste
Só não me diga o que fazer
Não vou deixar de te ver

Parem de falar que as coisas são assim
Sem ao menos entender
Quem sabe o que fazer?
Quem sabe o que falar?
Para onde estamos indo não dá pra voltar!
Não dá pra voltar!!

E no prelúdio irei me predispor
A te prender se precisar
O principal é sim precário e na pratica
Serei precavido ao proteger
O precioso prêmio
Que desde o início me privei
A primavera que por prece
Deixou de ser profana
A primavera que por fim de prantos
Trouxe-me você!

sábado, 4 de novembro de 2017

Da Escolha

"In a way this dream is over, blown away our four leaf clover"
Me and my big ideas, Tears for Fears
"Flor vermelha que encanta"




Da Escolha (2017)

Quem sabe o que nos falta
Seja paciência?
Seu último amor 
Te fez trancar as portas, todas,
Perder chaves
Quem sabe semeou já
A correspondência?
Mas leva tempo para
Os galhos alcançarem, enfim,
As janelas

Para a luz entrar
Nos fazer dançar
Dispersar essa neblina
Que nos paralisa

Quem sabe nem cheguemos
À mesma frequência
Caminho terno
O gelo fino de minhas histórias
Declaradas
Quem sabe tu repliques
Doces reticências
Aceito consciente
A consequência de seguir
Com minha escolha

Para a luz entrar
Me fazer dançar
Dispersar essa neblina
Que me paralisa

Hoje, "não passa disso"
Tudo tem seu momento
Uma amizade é
Alicerce bem melhor
Que um desejo cego e mudo

Todas as canções escritas e compostas por Thales Salgado, exceto onde notado:

  1. Como Pode Ser Verdade? (Letra e música de Bruno Oliveira)
  2. Vita Brevis
  3. Tudo Depende de Conforme For
  4. Depois de Crescer (Letra e música de Bruno Oliveira)
  5. Viver (Música para poema de Drummond)
  6. II de Hilda Hilst (Música para poema de Hilda Hilst)
  7. Mar de Mim (Letra e música Fabio Kulakauskas e Thales Salgado)
  8. O Princípio da Incerteza
  9. Nada Há de Novo Sob o Sol
  10. Da Espera (Música para poema de Thaís Soares)
  11. Da Escolha
          Tudo já foi dito uma vez, mas como ninguém escuta é preciso dizer de novo. Não conheço o trabalho do escritor francês André Gide, no entanto, encontrei essa frase atribuída a ele e ela faz sentido. Quando escrevi a letra de Falsa Modéstia aos dezoito anos o verso o mundo todo em guerra e eu a falar de amor era mais uma conclusão de uma pessoa sem muito escopo político para articular em relação ao mundo. Ainda que influenciado por artistas como Humberto Gessinger e Renato Russo transcrever o zeitgeist nunca esteve em minhas qualidades como letrista amador. Boa parte das composições tratam de sentimentos, quase sempre em esfera pessoal. Como uma fotografia sem cores de marcos e acontecimentos que, muitas das vezes, só dizem respeito aos envolvidos.
           Da Escolha segue essa linha. Ela surgiu enquanto estava a caminho do trabalho. Letra e música vieram juntas no dia dezessete de outubro. A primeira influência que posso traçar é da canção Labirinto, presente em seu 11º álbum Campos Neutrais, lançado dia 13 de outubro. Enquanto tentava aprender a letra, outros pensamentos consumiam minha atenção. É curioso notar a menção à "Paciência" uma das canções de Lenine logo nos primeiros versos. Não por ser do cantautor pernambucano, e sim, pela parceria com Dudu Falcão ser uma das que menos me impressiona em seu cancioneiro. 
          A letra apresenta a fantasia de um eu-lírico. A razão do "refrão" não vir antes é justamente pela condução precisar passar pela "escolha". Essa ilusão do eu-lírico o faz colocar num primeiro momento "nos fazer dançar" e "nos paralisa" quando, em verdade, tudo está ocorrendo apenas em sua mente. É apenas ao final que ele individualiza a oração: "me fazer dançar", "me paralisa". A proximidade da composição permite traçar outras referências mais facilmente: a ideia de caminhar no gelo partiu de uma das cenas d'O Cavaleiro das Trevas Ressurge de Christopher Nolan. A melodia do pré-refrão conserva algo de Mesmo quando a boca cala de Vinicius Calderoni (do 5 à Seco) e o acorde de introdução me lembrou de uma composição minha de 2008 que ainda não falei aqui. Sobre um dia de junho. No momento em que harmonizava ao violão me dei conta disso, porém, como as linhas vocais são muito diferentes não julguei problema. 

***

         Faltando cinquenta e sete dias para o fim de 2017 é provável não hajam novas composições a se enquadrar no conceito "Nada Há de Novo Sob o Sol". De fato, tenho intenção de musicar a Canção de Outono de Paul Verlaine (na tradução de Onestaldo de Pennafort) mas não sentei com o violão nesta intenção até o momento. Seguindo o interesse pela lírica francesa em junho último Kariny traduziu a letra de Vivre Autrement do cantautor Arnaud Fleurent-Didier, entretanto, sigo indeciso com a forma de abordagem que devo seguir quanto a conservação do esquema de rimas da versão original, então, a menos eu não viva para contar a história, há intenções de seguir com novas composições em 2018.

sexta-feira, 3 de novembro de 2017

Da Espera

"Agora tudo o que você pode fazer é esperar. Pode ser difícil para você, mas há um tempo certo para tudo. Tal o fluxo e refluxo das marés. Ninguém pode fazer nada para mudá-las. Quando é tempo de esperar, você deve esperar." A crônica do pássaro de corda, Haruki Murakami
Memória de Florianópolis


Música para texto publicado no dia 24 de setembro de 2016 no blog Chao Solus

Da Espera (2017)

Eu risco as paredes do meu quarto,

Eu conto os dias
Tento, em vão, juntar os pedaços
E criar qualquer tipo de rima
Quero gritar tudo que me cala,
O peso do que eu deveria ter dito
Desfazer dos meus ombros o medo
O nó do aflito
Espero, nado sabendo que vou me afogar
Espero, sacio a sede com água do mar


Eu risco as paredes do meu quarto,

Eu conto os dias...


         O arco-íris havia brotado de uma nuvem. E me acompanhou por toda a viagem. Era inútil procurar seu início ou termino. A nuvem era como uma janela para um pedaço de cor. Naquela manhã, ele decidiu que essa aparição era um sinal. Mas de quê, exatamente? Pode a maré mudar, ou qualquer vestígio de alteração é pareidolia do observador? Venho pensando em Schrödinger e seu gato. Você lança uma pergunta e, no período em que ela não vem, tem em suas mãos o sim e o não. Tudo ao mesmo tempo. 
        É o que ilustra a frase de Murakami que antecede esse texto. A questão é, como se manter em paz no período de espera? Ser a água como dizia Bruce Lee, ou melhor ser como o café reagindo à água e expandir suas moléculas e aromatizando o ambiente. Ela ama o cheiro do café e adora seu sabor. "Para mim tem que ter café", posso ouvi-la dizendo enquanto espero. Isso só está ocorrendo em minha mente, o que não torna menos real, como o prof. Dumbledore afirmou pela primeira vez há uns dez anos. 
         Chega sua vida mais pra perto meu amor, diria Simoninha. O sentimento é inominado mas as canções insistem em cantar 'amor'. O amor é apenas uma palavra, o importante é a conexão implicada por essa palavra. Como a canção Exatamente Igual da banda Nenhum de Nós que fala sobre não questionar a ausência, não lamentar o silêncio. Ter o sorriso de alguém como o ideal e não desistir. Outras canções vem e vão à mente. Quando li o poema da autora do blog Chao Solus o musiquei por instinto. Naqueles dias, já estava eu sob a sombra da espera? Seja como for, aceito consciente a consequência de seguir com minha escolha... Dizem que acreditar é o primeiro passo para que tudo dê certo.     

                 
         

quinta-feira, 2 de novembro de 2017

Fim


"THE MAN IN BLACK: Still trying to prove me wrong, aren't you?
JACOB: You are wrong.
THE MAN IN BLACK: Am I? They come. They fight. They destroy. They corrupt. It always ends the same.
JACOB: It only ends once. Anything that happens before that is just progress." - The Incident, Lost


Recorte do Jardim das Delícias Terrenas de Hieronymus Bosch



Fim (2011)

Somos abismos fitando o céu
Se fome, a guerra, a morte ou a peste nem sei.
Escapo ao naufrágio de vis ilusões
E acabo refém de uma tempestade
Num jardim de terrenas delicias
Defloram, corrompem, sempre acaba assim,
Esperadas condutas humanas



Olhar de espanto ante o fim dos milagres
Inquietas sombras que vem outra vez
Nas luzes desertas dos sonhos sem cor
O poente treme os passos que não tem por flutuar
E aos poucos vai se notando
Nem mesmo o corvo a dizer "Nunca mais"
Não se nota quando o túnel engole o trem



         Durante algum tempo essa composição não teve nome. Diferente de outras letras ruminadas por um longo período essa é um amálgama de referências. Não por coincidência, a letra se chamaria "referência". No fim das contas as nações unidas estão sempre prontas para a desunião a palavra intitularia uma composição posterior feita sobre um poema de Kariny Cristina. Se alguém mais inteligente disse que o segredo da criatividade era esconder as fontes, o que se pode dizer quando esquecemos as fontes? Certamente um pouco de meus gostos vazaram na letra. Lost e Dom Casmurro são os exemplos mais fáceis de descrever. 
         Outras menções, como o corvo de Poe devem ter surgido por influência da faculdade de Letras. Se há um verso que tenho certeza existia antes da letra é "O poente treme os passos que não tem por flutuar" é aquela ideia que você não quer largar de maneira nenhuma. Olhando para a letra hoje, me pergunto se conseguiria fazer algo assim ou se quero. Segue a busca por uma canção alegre, e, no entanto, é necessário colocar tudo o que foi escrito antes em perspectiva. Inclusive as elucubrações sobre a finitude.
         Nesse sentido, quando Jean Reis me mandou sua composição ele instruiu que eu escrevesse algo que fosse oposto ao que eu sentisse ao ouvir a melodia e é por conta disso a escolha temática.