quarta-feira, 28 de dezembro de 2016

Exaustão e Veneno


"Exponho o meu modo
Me mostro
Eu canto para quem?"
Esquadros, Adriana Calcanhotto




         

Exaustão e veneno (2011)

Angústia é grito a não querer sair
Suspiro calado esgotando o ar que não há
Além dos muros do rei: aurora em passagem
Anseio a paisagem e a vejo afastar

Um veneno me queima a garganta
É a exaustão a querer consumir
Eu quero fugir mas não sei sair de mim
Sozinho eu morro. Não me impeço, eu só corro.

Eu gritei que o lobo chegou por demais
(Por vezes demais)
Isso não se faz



         De acordo com alguns e-mails, redescubro a data de concepção de Exaustão e Veneno: segunda-feira, dezenove de setembro de dois mil e onze. Como uma série de outras composições desconheço o gatilho motivador. Ela falou "suas músicas são sempre tão tristes", até quando o seriam? Algumas ideias realizaram a transição de um sms outras surgiram de fábulas, se por um lado estava consciente de afirmar um complexo de raposa. Por outro havia a anunciação do garoto-pastor de um fim que nunca chegou. Se um dia se abreviar, quem vai ouvir?
        

quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

Vita Brevis

"Deve ter sido por esse tempo que começaste a procurar uma verdade que pudesse salvar a tua alma de tudo o que perece." Jostein Gaarder, Vita Brevis
   
 

       Quando leu Vita Brevis no final de 2013, coincidentemente, um período repleto de composições, a busca contínua de propósito. Mal sabia que o período que se seguiria seria apenas de silêncios. Vez ou outra nascia uma vinheta, pouco elaborada e que, por si só, não apontava caminho nenhum. Talvez a frase atribuída a Borges fosse seu cais muitas coisas tenho lido, poucas vivido. Nesse sentido, a inexistência de composições em três anos pudesse apresentar um vislumbre de salvação: a obsessão cessara no momento em que mais viveu? Ninguém, nem ele mesmo possuía essa resposta.
         O dia em que os primeiros versos surgiram foram após perder o aparelho celular. Se perguntou a razão de não ter feito o backup das fotografias, notas e conversas. Sim, anos antes ele cantara "fotografias são mentiras", mas algumas vezes, por mais não fosse afeito, valiam a pena pelo registro. Poderiam conservar ao menos o momento do clique. Sem a memória do cartão nada disso seria possível, talvez, essa impossibilidade tenha motivado o inconsciente a desenhar uma ponte diferente para ternas memórias de viagem. Também não fazia muito tempo o livro de Umberto Eco ressurgira em seu cotidiano, usar "memória animal" provavelmente tenha partido de alguma reflexão d'A memória Vegetal.
        No mês seguinte se deparou com um texto da Superinteressante falando de como havia uma rede de lembranças compartilhadas, trocamos memórias entre amigos como um quebra-cabeças. Sabia que usar termos como "guardiões" podiam soar tolo ou didático, não seria a primeira vez. Mas coube na melodia que tinha na cabeça, então, qual seria a vantagem de fugir dessas escolhas? Foi apenas no mês de dezembro que conseguiu concluir o óbvio: ele era apenas uma máquina de recordações tentando escapar, em vão, da Indesejada das gentes.



Vita Brevis (2016)

A nossa foto não revelada
Esmaecida, quase um borrão
Nossa memória animal é falha
Mas recorrendo à tradição

Vou escrever ou desenhar
Faço o que for para guardar
Tudo dessa nossa vita brevis

Nessa existência compartilhada
Nossos amigos são guardiões
Somente o tempo da mente é nosso
A nossa vida é invenção

Vão se as tardes
Vem manhãs
Mal se nota
Temos cãs
É só a morte
A se descortinar



quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

Barbara & Bruno


"Eu passei muito tempo pensando no que dizer nesse momento, fiquei muitas noites tentando rascunhar as próximas palavras, mas percebi que, tudo o que está acontecendo aqui hoje, foi fruto que algo não programado, não previsto, não arquitetado.Conheci a Barbara, “como Barbara”, do nada e no segundo seguinte eu estava apaixonado. Pois bem, sem programar, sem arquitetar e sem prever, tentarei ser tão feliz agora no que vou dizer, quanto fui no momento em que a conheci. Em que conheci a minha pequena.
Certo! Não vou ler o que escrevi. Vou dizer de improviso as palavras do meu coração. Seguindo meu improviso, queria dizer que...

Brincadeira.

Acontece que ocorreu algo tão especial comigo, que não posso mais viver no improviso. Desde que a conheci, tenho tentado ser como tantos outros homens que me foram exemplos na vida. Exemplos de maridos e exemplos de pai e tentando ser homem como algumas mulheres, que também foram ótimos exemplos de pai e mãe ao mesmo tempo.

Por isso, hoje mais cedo, renasci. Rasgaram minha certidão de nascimento e me deram outra. Agora tenho um novo nome. Agora sou da Barbara, tal qual ela é minha. Me chamo agora Bruno Barduchi Oliveira da Silva e ela se chama
Barbara Barduchi Oliveira da Silva. Hoje, amanhã e sempre, eu quero pensar no que vou dizer, no que fazer, no próximo passo, quero merecer a pessoa mais especial na minha vida. Quero merecer você Barbara.
Você é a pessoa mais especial na minha vida. É a pessoa que estará presente em todos os momentos da minha vida. A pessoa com quem vou brigar por tudo.

Você é a pessoa por quem terei ciúmes por tudo.

Mas também será a pessoa que vai estar nos melhores momentos da minha vida. A pessoa que eu sempre vou amar até que se acabe a vida de um de nós.


E além. - Porque é claro que se ela morrer antes eu ainda a amarei! Esse é o conto de fadas contemporâneo, o príncipe rabugento que se esforça pra fazer a princesa feliz. O príncipe com cara de mendigo e a barba por fazer, que se esforça para manter a aparência menos pior. E é por isso que eu vim aqui hoje dar uma casada, de boas. Vim aqui te dizer, na frente das pessoas mais importantes da minha vida, e na frente das pessoas mais importantes na sua vida, DIZER QUE TE AMO.
Trouxe esses seres humanozinhos aqui, para que eles sejam testemunhas, de que eu disse o seguinte: “Vou ficar com você até que a morte nos separe, pois eu te amo e vou fazer 8 filhos em você.” - Está certo, quanto a quantidade, depois chegamos num denominador comum.

Obrigado por me ouvirem, obrigado por estarem aqui." - Bruno Barduchi Oliveira da Silva, 3 de dezembro de 2016.
         Quando Estela e eu chegamos ao Cantinho da Cozinha Mineira nos deparamos com Fabio Kulakauskas e Zé Roberto ensaiando para a apresentação que se seguiria em breve. Seríamos só nós a brincar num "Qual é a música?" Silencioso nas primeiras notas de cada canção? Poderia ser. N'algum momento surgiram os noivos trajados de elegantes sorrisos e branco. Até então, eu só conhecia por meio de uma composição que Bruno me mostrara meses antes. Além, é claro, do Facebook. Então você tem a personificação de uma ideia. Um, feito de dois. Longe de quebrar a individualidade de cada um, mas a espontaneidade fazia parecer que a qualquer momento um começaria a completar a frase do outro. Risos de amor, risos de nervoso, rios de amor e maravilhamento mútuo. 
No meio de tudo isso o pedido de Fabio para que eu monte um repertório. Os músicos já sabem o que farão, eu não. Num sulfite verde azulado me prontifico registrar por alto as atmosferas. Alheio à movimentação da entrada dos convidados escrevi:

"Possível repertório desaparecido.

A verdade é que as canções provavelmente tem vida própria. Uma vida entre cada uma das seis cordas do violão e entre as inomináveis cordas vocais. Numerá-las nem sempre é necessário, elas estão por aí esperando ser imaginadas. Quem ouve sabe ser a esperada, ou a que se queria. Sejam músicas de uma banda com apenas uma, sem projeção ou que embalou amores em novelas globais, estas sempre as mais lembradas. Diria Gessinger: A vida imita o vídeo.
Pessoas se reúnem em ensolarada manhã para uma celebração silenciosa, afinal, você nunca saberá quais os caminhos uniram cada um ali. Amigos, irmãos, companheiros de trabalho. Os pais, tios. O ruivo resumo: família, família. Todos embalados na mesma balada que é a de cantar um amor, sempre novo amor. 
Haverá também canções falando da vida, em suma. Compostas por todos os artistas que nos precederam nesse ofício artístico singularmente plural que é entoar sentidos e sentimentos.
A aleatoriedade do repertório tem o sabor da vida em sua falta de controle cotidiana. Por esse prisma, reitero, numerá-las é amordaçar a fluidez do dia. Haverão sim, pedidos. Cada um a buscar nos sons os ecos das trilhas transitadas antes da reunião. Nos livros, cada encontro precisa ser capaz de transformar as personagens de maneira brutal. Como estão a fazer os protagonistas desse dia. O um mais um já não é dois, é um novo ser! Sendo assim, de que importa a ordem das canções?"

         Mais tarde, no momento mais esperado do ritual, Fabio dedilhava Paciência, de Lenine, enquanto Barbara declarava seus votos. de como eram dois perdidos e encontraram o sentido um no outro. As dúvidas se partiram e as dores foram minimizadas. Quatro letras conservam miríade de significados. Os grãos de amor da perfeita simetria, a força mútua. Os versos de todas as canções não se igualariam a um sentimento que prosseguiria além do fim do mundo.
"Costumo dizer que você trouxe cores, sabores, essências. Pois tudo ficou melhor, com você veio o sentido que procuramos incessantemente, porém, não imaginava que o sentido de tudo era o amor. O nosso amor. Você e eu é tão certo quanto o calor do fogo.E o tempo? Temos todo o tempo do mundo, o tempo para nós não existe não importa se são dias semanas meses anos décadas séculos milênios que vão passar o que conta é a nossa intensidade, a vontade de sermos um do outro, porque você está nas coisas tão mais lindas. Cá estamos nós, com exatos onze meses e quatorze dias, casados! Com a arte do seu jeito tudo faz sentido. Como diz Frejat, eu vou tratá-lo bem para que ele não tenha medo quando começar a conhecer os meus segredos e amor tudo o que ofereço é meu calor meu endereço a vida do teu filho desde o fim até o começo. Amor meu grande amor te amarei de janeiro a janeiro até o mundo acabar." - Barbara Barduchi Oliveira da Silva, 3 de dezembro de 2016
          Num delicado intertexto com os votos Barbara empunhou o violão para cantar As Coisas tão mais lindas de Cassia Reis e Nando Eller, . O discurso de Bruno surgiu ao melhor estilo Bob, mesclando emoção e bom humor. Após os votos do casal emprestei o violão para tocar duas canções, algo que não fazia publicamente há anos. Receoso de macular o momento segui com Piano Bar e De Fé, esta última com mensagem clara do esposo para a esposa: Quando eu mais preciso eu só tenho você. Ainda houve espaço para Fabio dividir os vocais com sua amada Hellaine em Janta e De Janeiro a Janeiro. Sem soar irônico uma canção folk versando sobre um fim de relacionamento ser performada por um enamorado casal. O sol acalentava o sábado de encontros e reencontros contribuindo para a beleza da união de Barbara e Bruno. 


***

Doze dias depois, recordo a primeira vez que vi o Bruno cantando essa composição, acho que era julho; Sempre penso que o último verso será "mas é" contrapondo a estupefação a permear os versos. É interessante perceber as formas de cada um compor. Ali estava o sentimento sincero versado, sem dúvidas, o nome de Barbara claramente, quase um vislumbre do que já era e seria. Realizei essa gravação rudimentar como um simples registro, sou a máquina de recordações. Se a qualidade do som compromete, os versos conservam verdade e não poderia surgir n'outro texto. Em épocas de retrospectivas uma canção nova. Para não perder o hábito de uma citação, no livro Para Ler e Guardar de Hermann Hesse ele diz que quanto menos confia em nosso tempo, quanto mais vê a humanidade estiolar-se e perder-se; tanto menos se propõe a revoltar-se contra a sua ruína e tanto mais acredita na magia do amor. Concordo com ele.


         


Como Pode ser Verdade (2016)

Meu espelho nunca foi tão fiel
Nenhum vidro nunca viu tanto em mim
Como vê seu olhar, como diz seu olhar
Quero ser na sua vida o meio
Um porto para tempestade
Se alinhar no meu peito
Dominar a paisagem
É pequena na fachada
Gigante no jeito
Estratégia pra fazer me sentir maior
Todo o tempo a seu lado
É pouco, atrasado
O relógio não trabalha
Sem vontade, má vontade

Como pode ser verdade?
Ela não pode ser verdade!
Desafia ciência e religião
Duvidar da realidade
Ela se acha no meu peito
O seu lugar pra descansar
Um anjo sem acreditar que pode voar
Barbara!
Início da família, começo da história
Todos os filhos num sorriso
Começo e fim da trajetória
Na minha vida até o fim
Finais de fadas cantarão
Mesmo sem força pra andar
A minha mão vai segurar

Como pode ser verdade?
Ela não pode ser verdade!      
         

quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

Da Invisibilidade

"- Tire essa camisa!

O imperativo o pegou desprevenido, o tom sobre tom resultara de horas daquela manhã. Provara as peças esquecidas até pelo armário e ali, a primeira vista fora derrubado. Restava manter a compostura; atravessei a passarela, conta? Rostos beijados, impessoal, considerando o terno abraço 8,85 semanas antes, quando o encontro fora surpresa. Ela comentou sua maquiagem eram as asas de Ícaro, mesmo com seus pés no chão.
Não tomavam água, apesar do calor, recusar bebidas seria uma constante aquele dia. A mãe dela os guiaria ao ponto de encontro. Ele se deteve diante do jardim de azaléas e cactos. Estava tentando se decidir se preferia o Opuntia microdasys ou o Mammillaria elongata quando ouviu a frase "eu estou gata?". Instantes depois, recebeu o comentário da mãe e então, ela está gata? quem sou eu para dizer? 
Teve ganas de dizer que era uma questão de ser e não de estar e que por vezes poderia venerá-la como faziam os egípcios aos felinos na antiguidade. Teve ganas. Qualquer coisa que dissesse agora poderia ser mal-interpretada, ela não precisava da validação masculina, ninguém tinha dúvidas disso, mesmo assim a pergunta não ter sido dirigida a ele o fez se sentir invisível."

            Muitas vezes dizem soar estranho quando me detenho a falar com estranhos na rua. Sou abordado e decido seguir com a conversa. Esse ponto é importante, via de regra não sou eu a procurar essas interações. Acolho-as como sinais de um Destino o qual já fui mais convicto, afinal, se forem apenas coincidências tudo adquire um ar banal e desinteressante, divago.
         Meses atrás estava no Sesc Pompéia aguardando para ver o show da pernambucana Flaira Ferro. Próximo aos guichês de ingressos vejo uma serie de cartões virados de cabeça para baixo, como um grande jogo da memória. Um rapaz me pediu que virasse um dos cartões, ele explica que o mastim tibetano é um dos cães mais caros do mundo, com uma aura sagrada no oriente. Nunca imaginaria. Ele me incentiva a virar outra, em que encontro um chaveiro dourado da Louis Vitton. O preço também estava numa quantia inacessível. Percebi onde o jovem professor queria chegar com aquele jogo quando a foto seguinte representava negros num aterro. Eram os contrastes hediondos e a atribuição de valores.
        Despido da impressão de que havia algo a ganhar naquele jogo decidi descobrir todas as fotos. Até chegar a uma de autoria de Tuca Vieira e era a síntese da desigualdade, a famosa foto da favela de Paraisópolis. O professor conta que em suas aulas utiliza a foto para instigar o questionamento aos alunos, muitos deles supondo se tratar de Photoshop - não era, o próprio autor da foto na revista ZUM de dezembro de 2012 comenta como a foto foi pensada e não fruto de acaso. Há uma fuga interna contra a aceitação da realidade, e enfim, a conversa foi interrompida pelo fim do expediente do rapaz. 
        Como a hora do espetáculo não chegasse decidi passar o tempo na Livraria Cultura do Shopping Bourbon. Na calçada fui abordado por uma família de moradores de rua. Eu não tinha visto as carroças improvisadas ao chegar. Me agradeceram pelo simples fato de eu parar para ouvi-los, pouco depois, pediram um trocado. Tirei uma nota de dez reais do bolso e entreguei. Conheço os discursos para promover cidadania, enfim agi ao perceber. Me contaram ter vindo andando de Santos em três dias. O patriarca tinha hérnia de disco, tem casa, mas sua família não aceita a esposa que ele conheceu nas ruas. Passaram a cantar louvores e eu por ali fiquei. O patriarca afirmava seu maior sonho era um dia poder pregar para muitas pessoas numa igreja e quando isso ocorresse Jesus poderia levá-lo. Partilharam aguardente numa garrafa trazida por uma senhora idosa e foram sinceros: se bebiam era para espantar o frio e não por ceder a algum vício. Soava nada como as discussões distanciadas que eu tivera minutos antes. O cenário da calçada era este: a família escorada no muro, eu em frente a eles, uma árvore às margens da rua. Ninguém me pedia licença, como fizesse parte de minha obrigação ceder. Talvez não me vissem, estava eu invisível e não havia ares de suspense com o Homem sem sombra nem a magia de uma relíquia da morte. A invisibilidade não me trazia benefícios, mas eu sairia dali. Logo aquelas pessoas se tornariam vozes avulsas de novo. Quando tinha dezessete anos escrevi na letra da canção Falsa Modéstia Quem é que vai se acostumar com os lamurios, com os lamentos daqueles que não tem casa? Menos ingenuidade seria perguntar quem não se acostumou.
        Já esses dias, no meio do caminho o motorista do ônibus deu carona a um homem de olhos injetados. Seus movimentos erráticos davam a impressão de estar sob efeito de algum agente tóxico. Se aproximou de mim, e eventualmente, puxou assunto perguntando de que tratava o livro do tal Cortázar que eu tinha em mãos. Depois, assumiu um ar amistoso e se propôs a contar uma história de sua vida. Falou da educação do namorado da filha, falou como sofria ao ter vacilado com a mulher que amava e de como sabia não ter volta. Ela não gostava dos efeitos que o álcool tinha nele e isso levou a uma escalada de desentendimentos. Chorava como se conversasse com um amigo que não tinha. Nas vezes em que buscou qualquer palavra dos outros passageiros foi ignorado, por mais gentil fosse o tom da interação. Estes mesmos passageiros deixaram de me dirigir o olhar de censura em alguns minutos, como eu tivesse esmaecido. Pode ser eu só mantivesse a conversa por medo de que a qualquer momento o homem se aproveitasse de minha distração para tomar o que lhe não pertencia e saltar do ônibus antes do fim da desaceleração - o que não aconteceu. Caso acontecesse, aposto ninguém perceberia, também não o enxergavam mais.


quarta-feira, 30 de novembro de 2016

Vanguart Acoustic Night

Mal passei a catraca e a vi pela janela. Se eu me concentrasse o motorista se deteria até que eu a visse seguir seu próprio caminho? Aquelas mãos desenlaçaram do que parecia um nó tão perfeito nas minhas. Eu via o riacho negro preso a altura de suas costas e me perguntava se ela se viraria e me veria ali; inerte. Se perder de um amor doía tanto por não ser erro de ninguém e isso me fez sentir nas veias a urgência trágica do violino envolvida pelo trompete, a guitarra lacrimosa. Como era possível o teclado se manter tão dócil, ao que o baixo nunca esteve tão grave seguindo a bateria a conduzir crescente a um estancar seco, como a voz que me rasga a noção de tempo pensando tudo "O que a gente podia ser" - Adaptado da participação numa promoção promovida pelo Fã Clube Sindicato Vanguart promovido no dia 23 de novembro.
Foto: Helen Moraes

        Parte: Antes que pisasse no palco, nunca tinha ouvido falar no trabalho de Rodrigo Alarcon e surge aquela presença com pegada mezzo-reggae-mezzo-samba. Uma levada que, na falta de âncoras ao trabalho dele me levou ao 5 a Seco de alguma maneira. Muito simpático e desenvolto, apresentou letras repletas de bom amor e humor. Suas brincadeiras com o coração e a razão, personificações e a mescla de registros formais e informais (armaria muié cadequê...) o puseram em meu radar. O formato voz e violão foi deixando o público em sintonia com a ideia de um acústico. Embora, assim que ele partiu ainda houvesse nas cercanias da pista premium quem se espantasse: nossa! quantos instrumentos de corda!

       Entre as palmas surge o primeiro de vários gritos, "lindos". Surge também a banda ao que Hélio Flanders agradece a presença do público Que presente, hein? Mal sabiam eles que eram presente de meu natalício. Nesse sentido, quando surge Estive a sensação de familiraridade não poderia ser maior. Se aos nove eu era apresentado ao formato unplugged com o lançamento da incursão da Legião Urbana no formato, estar no Estúdio, dezoito anos depois tinha inominável sabor. A banda que me fez descobrir a existência de Cuiabá viria a contar histórias, parte dos shows que mais gosto por torná-los próximos, na sempre doce intimidade que temos para com nossos ídolos sem que muitas vezes eles saibam. ...Das lágrimas encerra com a vocalização do empolgada do público. Reginaldo acrescenta que haveriam surpresinhas, as músicas a ser tocadas não seriam as mesmas que a banda sempre tocava. Essa afirmação atiçava a curiosidade, afinal, antes mesmo da banda entrar os mais próximos do palco já haviam registrado mentalmente as dezoito canções presentes no repertório. A narrativa de Hélio corta meu divagar. "Essa próxima canção é do primeiro álbum (...) lembro que fiquei umas cinco horas trabalhando numa canção épica que se chamava Para um Marinheiro Grego. Depois dessas horas percebi que aquilo era uma porcaria. E, em três minutos, fiz essa música que ficou para o disco." Para abrir os olhos, além de um solo de David ao bandolim é arrematada com os versos nossos sonhos a caminho, menção a Bridge over troubled water? Quem vai saber?!
        Enquanto Hélio alterna do violão para o piano, a violinista Fernanda Kostchak aproveita para assumir os microfones e pede uma salva de para os companheiros de banda. Ela diz quão legal é poder olhar nos olhos, o coração, do público. O formato do show também permitiu a ela estar presente no palco o tempo todo. Reginaldo oferece a música seguinte à amiga. Helio confidencia que ainda a autoria seja partilhada a música foi essencialmente feita pelo baixista. Mesmo de Longe vem como balada lenta, num dos vários momentos em que David Dafré performou com o lap steel. Todo fim é bom pode estar no próximo álbum. Quanta expectativa. A cada audição crescem os sentidos e significados dela. Versos tais hoje já não tens a chave podiam soar como adaga a acariciar o músculo que nenhuma vez descansa. Talvez seja possível viver sem descontextualizar os versos. Não naquela hora. Outra voz se sobressai no meio da casa lotada: quando sai o próximo disco? Reginaldo sorri um "Por mim saía agora, mas não é demora; é o carinho e o cuidado com a feitura". Anunciam uma canção antiga, do tempo em que cantavam em inglês. O público cria a bateria com suas mãos em Hey yo Silver se houve instante para se sentir num saloon foi esse.
         A primeira meia hora do show encerra com uma canção "menos conhecida". Hélio a dedica a "alguém que está sempre nos shows, ele carrega o pessoal de lá pra cá, para todos os lugares" Ivan. Fica o agradecimento a ele também, afinal, não surge todos os dias uma oportunidade de ouvir Robert. Ainda mais depois de ter ouvido no show de outubro no Sesc Bom Retiro que a tão pedida canção não apareceria mais. As narrativas vanguartianas sempre oferecem possibilidades tanto aos neófitos quanto aos seguidores de longa data. Assim, o revesamento é inevitável: do segundo registro em estúdio vem Se tiver que ser na bala, vai,agora com arranjos de gaita, e depois Olha pra mim quando Hélio diz que quando a fez estava mal mas as vezes isso possibilita o nascimento de coisas boas. Canções-declaração como a que tocariam em seguida, tão logo Reginaldo chegasse ao piano. Na era da impermanência de universos compartilhados; a cidade seria a mesma dos versos de Todo fim é bom? Nessa cidade conserva as características catárticas há anos, ainda arrepia o violino. Para além disso, perceber o conforto no trompete em se permitir mais passa a impressão de ser uma música nova. Reginaldo convoca palmas para Claudinha Almeida da lojinha e para todos do sindicato. Ao fim de Pra onde eu devo ir? e Pelo amor do amor vem mais gritos do público: Hemisfério, Enquanto isso na lanchonete, Engole... A banda se abre em relação ao trabalho envolvido na preparação do repertório desnudado. Nem todas as canções pedidas virão.Quente é o medo, nova composição de Reginaldo Lincoln aparece logo depois de Demorou pra ser
          A décima quarta canção é um cover de David Bowie Space Oddity e o Vanguart expressa sempre ter tido vontade de tocá-la. Podemos acompanhar mais uma camada de referência dos ídolos fora das esferas Dylanescas e Beatlemaníacas normalmente evidenciadas pela mídia. A banda agradece a presença de Calil Barros, parte da equipe desde o início da banda. Há sempre um zelo com a citação nominal da equipe e impressiona por não soar protocolar como se vê muitas vezes. Hélio dedica a canção seguinte aos cônjuges e vice-versa. Ao primeiro acorde, todos sabem que Meu Sol raiará na noite. 

Foto: Helen Moraes

         Faço então, caro leitor ou leitora, um parentese do espetáculo - que contava já cerca de uma hora e dezessete condensadas nos quatro parágrafos anteriores - para agradecer à mesma Helen Moraes autora das fotos presentes neste post por ela ter me reapresentado ao Vanguart. Já ouvia a banda desde ver o clipe de Semáforo a primeira vez. Passei a brincar com as sétimas maiores em composições como Exaustão e Veneno e Meio-dia.  Ansiei pelo segundo álbum ouvindo a banda Major Luciana e vendo qualquer canção que sugeria um caminho que nunca se seguiu com as canções em inglês. Até mesmo abri uma conta no Facebook quando descobri que Boa parte de mim vai embora seria lançado primeiro na rede social. A melancolia misteriosa das metáforas sempre me tragou. De modo que quando Muito mais que o amor ganhou o mundo a única canção a ressoar em mim foi A escalada das montanhas de mim mesmo. Era como os fãs de Tucker Crowe repudiando o lançamento de So, where was I que não julgavam a altura de sua obra-prima trágica Juliet. Tanto sol era demais para mim. Até que, como diria o poeta, antes que eu soubesse, estávamos juntos. A ideia de ver um show no Cine Jóia a meia noite fez com que eu a apresentasse a banda. Amor à primeira audição. Ela não chegou a levar dois dias para decorar as onze faixas. O que era para ser um evento único se tornou algo mais quando, após o show, ela perguntou: quando será o próximo?! Fomos então, ao Sesc Carmo, pudemos conversar com a banda no Sesc Santo André quando avisaram da gravação do segundo DVD da banda, o que nos levou ao CCSP. Era quase como uma bola de algodão doce em que cada show levava a outro com novas nuances. Hélio ainda chegou a comentar na gravação de como casais que estavam na gravação se separavam, e o destino do disco ficava perdido. Aquele tipo de conversa que faz tanta falta quanto David Dafré cantando Get Back no bis desse mesmo show. Passamos ao Blood on the Tracks em Santana, escolhemos canções para o show no Teatro Mars, e mais! Há casais que tem uma música, quantos podem dizer essa é a nossa banda? Mesmo quando não são mais um, as reminiscências desse mapa conjunto pelas estradas de São Paulo seguirá de algum modo. Ter sentido o que é muito mais que o amor tornou meu olhar um outro. El caminho es largo, pero tenemos que seguir.
Repertório cedido gentilmente por Reginaldo Lincoln
           Mi vida eres tu diz Hélio, conta a história de "um garotinho, um mancebo em Cuiabá sofrendo e procurando alguém como ele". Além da já esperada citação à Odair José, houve a inserção do "So you think you're gonna hit me but now I'm gonna hit you back" da banda mexicana Molotov e os versos finais de Perfeição, da Legião Urbana. A banda se apresenta e Reginaldo confessa que em Cuiabá, em meados de 2002, era quase impossível encontrar gente que estivesse compondo e o encontro com Hélio foi maravilhoso, mudando a vida de todos eles. Hélio prossegue a agradecer ao público: "um show sem bateria mais alta que a voz, sem a música alta." Tanto o de Rodrigo Alarcon quanto o acústico em si "é um formato que privilegia a palavra, a canção; e isso fez o Brasil existir na música com Caetano, Caymmi, Chico, Renato (...)" e a presença do público ali, ouvindo e cantando era indescritível. Então, conta que quando estava em Cuiabá aos dezesseis, dezessete anos. Sem nada para fazer eles se tinham. Fosse para mudar o Brasil, para tratar bem as pessoas, respeitar as diferenças. No fim das contas, o amor ainda era mais importante. O violino e o clarinete recriam Semáforo numa versão que merecia ser lançada. 
        Ouvir a banda tocar algo dos Beatles, para mim, é sempre uma justiça poético-retroativa por nunca ter conseguido ver uma apresentação do projeto Vangbeats. All my loving é a penúltima canção do Acústico. Violões de seis e doze cordas, clarinete, bandolim, violino. A instrumentação da banda não deixou a desejar em relação a suas performances "plugadas". Sentir cada um dos novos arranjos permitiu um show memorável. Ainda que o texto não contemple detalhes dos fraseados novos, as canções mantiveram sua identidade com uma roupagem envolvente. Eu sei onde você está encerra a apresentação e o ano de 2016 para o Vanguart. Que venha o quarto disco!

POSFÁCIO

         Que conste nos autos o agradecimento as meninas da lojinha do Vanguart que, sempre muito solícitas, nos ajudaram a alcançar David Dafré que, por sua vez, trouxe Fernanda Kostchak para que entregássemos uma lembrancinha. Essa sinergia é muito boa e nada há que se possa dizer além reafirmar o Muito Obrigado!!!

quarta-feira, 23 de novembro de 2016

Uma Nova Viagem

“Talvez se resumam nisso a própria juventude, a espontaneidade, a coragem e a profundeza da vida pessoal, a vontade e a faculdade de experimentar e viver com plena vitalidade a parte natural do ser.” ― Thomas Mann
         Chove na manhã fria de Porto Alegre. Poderia ser São Paulo, também. Quando você se encontra sozinho, a geografia é impessoal. A internet também carrega essa característica: erguemos muros a nos impedir de olhar nos olhos do estranho a partilhar, conosco, viagem. Exibir gentis gestos corriqueiros parece antiquado. Ao mesmo tempo, temos nossas amizades ao alcance da mão. Com poucos toques pode-se ir do sul brasileiro ao sudoeste do Oceano Pacífico. Mesmo assim ainda pode causar estranheza ver as pessoas banhadas pela luz das telas. Narcisos imprecisos? Quando o display esmaece, sobra o reflexo.

                                 

       
        Refletir a canção Uma Nova Viagem envolve novo retorno ao passado. A temporada 2007 chegava ao final, eram os segundos de silêncio antes da explosão. Havia quem soubesse de antemão as ações, o arco a desenvolver na temporada seguinte. Vestibulares, faculdades, empregos. Para outros? Tudo em suspensão. O fim do ensino médio trazia à tona as mais bonitas mentiras professadas nas despedidas, a famosa frase vamos marcar toma de assalto lábios, corações e mentes. Àqueles poucos a arriscar sinceridade são observados de soslaio. Consideremos, os censores possuem nesse ato algo de admiração aos párias. Sejamos ternos com eles. Quando dizem como pode dizer uma coisa dessas? querem dizer não seja rude, mantenhamos este último momento ameno. Um dia nos encontraremos no Sinal Fechado, como diz a canção. O menestrel nos instrui que as coisas se transformam e isso não é bom nem mau. Sejamos felizes nessa última ilusão. Essa é uma possibilidade; podem querer dizer quisera eu dizer algo assim. Como forma de incentivo vou censurá-lo mas ele sabe o quanto o estimo... você está certa. A pessoa pode estar a ser genuínamente sincera. Não se pode presumir generalizando assim. Ponto para você.
         No meio disso nomeei a letra da nona faixa da primeira demo. Num encontro casual Fabio me disse simplesmente desatou a cantar as primeiras palavras que brotaram em seu pensamento. Queria se provar. Achava ser possível conseguir fazer uma música a qualquer momento. Sabe a sensação? Como aquela frase não sabendo ser impossível, foi e fez seja ela de Cocteau ou Twain. De alguma maneira, essa sensação de invencibilidade permeava os arredores. Em algum lugar do tempo, havia um refrão diferente. Seu único registro deve estar incrustado nas paredes da garagem que ouvia os ensaios da Falsa Modéstia. Enquanto consolidava os trechos do repertório autoral retalhei o rascunho de um poema que falava de sonhos e ele se integrou naturalmente ao contexto existencial da composição de Fabio Kulakauskas. Quando meu pai levou a demo para mostrar aos colegas da empresa, voltou com a notícia de que fora a canção que mais chamou a atenção dos, então, presentes. 

Uma Nova Viagem (2007)

Não sei se é aqui onde eu queria estar
Talvez fosse melhor se não houvesse sol
Não sei quais caminhos eu devo buscar
talvez arriscar não seja o melhor

Mas arriscar é preciso
Sobreviver também
O que não pode ser perdido
para eu ser alguém?

Vou chegar ao fim
Do sonho sem querer
Onde as incertezas
Não me levem para trás
E até lá eu sei ficarei aqui
Pois não decidi
Quem virá comigo

Mas arriscar é preciso
Sobreviver também
O que não pode ser perdido
Para eu ser alguém?

Medo de não ser
Medo de não ter
Eu preciso aceitar
Mas só me ensinam a julgar

sexta-feira, 18 de novembro de 2016

O Teatro Mágico

"O falso e infeliz conceito de que o homem seja uma unidade duradoura já é conhecido pelo senhor. Também já sabe que o homem é formado por um número incalculável de almas, por uma multidão de egos. Dividir a unidade aparente do indivíduo nessas numerosas figuras é algo que passa por loucura; a ciência encontrou para esse fenômeno a designação de esquizofrenia. A ciência está certa, até certo ponto, quando afirma que nenhuma pluralidade pode conduzir-se sem uma direção, sem uma certa ordem e agrupamento. Mas, por outro lado, não tem razão ao imaginar ser possível somente uma ordenação única, encadeadora, perpétua, para a multiplicidade dos egos subordinados. Esse erro da ciência acarreta conseqüências desagradáveis; sua única vantagem reside na simplificação do trabalho dos mestres e dos educadores a serviço do Estado, poupando-lhes os trabalhos do pensamento e da experimentação. Em conseqüência desse erro, muitos homens que passam por ‘ ‘normais”, e até por valiosos membros da sociedade, são loucos incuráveis, e, por outro lado, muitos que passam por loucos são verdadeiros gênios. Por isso é que completamos aqui a imperfeita psicologia da ciência com o conceito a que denominamos a edificação da alma. Aqui demonstramos aos que experimentaram a destruição de seu próprio eu que podem a qualquer instante reordenar os fragmentos e com isso conseguir uma variedade infinita no jogo da vida." - Hermann Hesse, O Lobo da Estepe

Palhaços (1920), de José Gutiérrez Solana

        E quando uma série de amigos diziam e reiteravam: ouça O Teatro Mágico, meu "eu" do passado se manteve por algum tempo impassível. Um dos temas recorrentes em mim seria a resistência ao novo, ou mais, a vontade de se jogar ao tempo que tento manter raízes e convicções advindas de algures. Decidi seguir o caminho contrário. O que, a primeira vista, era encarado como um punhado de músicas alegres, apenas. Seria vivido até uma opinião surgisse. Simples assim. Aficionado que sou por Humberto Gessinger, não havia me passado em mente o versos da canção de 2003 Segunda-Feira Blues I Onde está o teatro mágico só para iniciados? Tampouco a relação entre a banda Steppenwolf - para mim sempre uma one-hit-wonder com sua Born to be Wild - e o autor alemão Hermann Hesse, pra ser sincero, nunca ouvira falar de Hesse até então.
        Fui surpreendido ao saber que Entrada para Raros era um álbum de 2003. Só ouvi falar da banda quatro ou cinco anos depois. É quase como Kulakauskas mantivesse canções desse período em seu repertório pessoal desde sempre. No meu caso, duas faixas se sobressaíam: Uma parte que não tinha e A Fé Solúvel, esta em especial fez com que me aproximasse da alma poética de Quintana em seu Poeminho do Contra: "Todos esses que aí estão/Atravancando meu caminho,/Eles passarão.../Eu passarinho!" Talvez por conta disso estas canções me acompanhavam quando carregava cidade afora um vaso de túlipas regadas a agua salgada. Talvez seja a ancoragem emocional, nunca cheguei a me conectar com o primeiro disco.
        Recém lançado em 2008, O Segundo Ato saltou a meus olhos a participação de Zeca Baleiro na faixa Xanéu nº5 (prima-irmã de Televisão dos Titãs, amante de Tv a Cabo de Otto) O ar era distinto do que eu imaginava encontrar, também não era difícil perceber que o titulo da canção não se referia ao perfume campeão de vendas da estilista francesa Coco Chanel. A trupe estava chegando à cidade e com ela lidando com toda sorte de problemas da vida contemporânea. Tentando entender a atmosfera de fascínio busquei assistir uma série de vídeos no YouTube enquanto me preparava psicologicamente para experimentar um show, afinal, o circo nunca teve um papel intenso em meu imaginário infantil repleto de obras nipônicas, então, mergulhar simplesmente na fantasia me parecia um passo maior que meus pés. Haviam faíscas surgindo aos poucos, quando, ao comprar uma escaleta, o primeiro reflexo foi tatear as notas de Cidadão de Papelão.
        A inadequação com a estética do primeiro disco me levou a embates ideológicos com a parcela de fãs que afirmava que o som era "só para raros", ao passo que, pelo que via, a ideia do idealizador do projeto, Fernando Anitelli era de que todo ser humano é raro em suas particularidades. A questão conceitual, o nome retirado de uma passagem do livro de Hesse me passava a ideia de que ali residia algum mistério maior. A fascinante inadequação de Harry Haller me levou também a adaptação do livro, conduzida por Fred Haines em 1974.  Não apenas isso, a outras obras tais Sidarta e Demian, nesta última, também pensei na poética d'O Teatro Mágico. Quando li A ave sai do ovo. O ovo é o mundo. Quem quiser nascer precisa destruir um mundo. Imediatamente lembrei do trecho presente em O Mérito e o Monstro: Pra dilatarmos a alma/temos que nos desfazer/Pra nos tornarmos imortais/A gente tem que aprender a morrer/Com aquilo que fomos/E com aquilo que somos nós.
         Anitelli encontrou na figura do palhaço a representação da pluralidade do ser. A falar disso, bastaria a citação de Hesse. Acaso minhas palavras não se sustentem tanto a obra de Hermann quanto a de Fernando permanecerão. A poesia prevalece! Também o ímpeto de falar en passant da minha relação com a obra desta banda.
          No ano de 2011, Fernando lançou seu primeiro álbum solo. Ali não se mostrava o palhaço trovador. Ao cair a maquiagem permaneceu o requinte poético. Quando ele tirou As Claves da Gaveta teve a possibilidade de reformular uma série de composições já conhecidos dos fãs em versão "voz & violão" que circulavam a grande rede por anos. Letras dignificadas em arranjos de ares sutis do jazz mais brasileiro, se assim se pode dizer. O receio de que a trupe desmantelaria feneceu com o surgimento d'A Sociedade do Espetáculo, agora disseminando o conceito de Guy Debord em meio a referências pop. Mesmo a capa tinha um quê de Sgt. Peppers. O fim da trilogia trazia de uma parceia com Leoni a uma composição baseada em sugestões dos fãs por meio do Twitter. Água mole em coração de pedra, o saldo parecia positivo: agora estava tudo em paz, tudo ótimo, acabada a luta. Finalmente vencida a batalha contra si mesmo. Amava o Grande Irmão. Realmente apreciava O Teatro. Não todas as canções, mas a proposta de amplificar como num sarau o discurso humano de semear o amor. Havia versos, que ressoariam melhor num poema. "Essa heterointolerância-branca te faz refém", por exemplo, era incensada por diversas reviews sem que sua forte mensagem encontrasse as melhores cores. No entanto, apenas o fato de a mensagem lá estar, é louvável nesses dias de excessos em excesso.
          Correndo o risco de beirar o ficcional - considerando que descobrir o verdadeiro sentido das coisas é querer saber demais - cheguei à hipótese de que as engrenagens da transmutação do som da banda que tomaria parte nos álbuns seguintes tinham começado a se mover em 2010, quando a trupe recebeu a oportunidade de abrir um show de um dos heróis de Anitelli, Dave Matthews. Além de, ter a participação do saxofonista da DMB, Jeff Coffin na faixa Transição; "Se aprendermos a olhar para nossos sonhos, veremos quão perto estão", parafraseando o próprio Fernando antes de tocar Sonho de uma flauta numa versão elementar. Há quem diga que a introdução da faixa Quermesse, em Sociedade, ecoa Pantala Naga Pampa. Era exagero pensar que essas aproximações anunciavam o fim de um ciclo? Talvez. Se milagres acontecem quando a gente vai a luta, estar em contato com nossos ídolos pode ser transformador até em relação a nossas próprias criações. Divago. Fato é que, depois desse álbum não me deparei com nada que envolvesse O Teatro Mágico.
Pelo menos até visitar a exposição Picasso e a Modernidade Espanhola no CCBB de São Paulo. Quando me deparei com o quadro a ilustrar essa postagem enxerguei Anitelli num dos palhaços de Gutiérrez Solana. No melhor estilo místico acreditei ser um sinal para descobrir o que eu perdera. Descobri que em 2014 havia sido lançado O Grão do Corpo. Nome que me chamou atenção juntamente a sobriedade da capa. No som não se encontrava o violino ou o DJ. Não haviam vinhetas, uma faixa com um poema, uma instrumental calcada no piano e percussão. Soa o álbum mais urgente e ao mesmo tempo coeso. Um novo ato! E essa reformulação merecia ser vista ao vivo. Ainda que não tenha mencionado no terceiro parágrafo, fez parte de minha 'experiência social' pegar o pancake que eu usava para fazer as vezes de Coringa e me maquiar como um integrante da trupe. Além disso, completei meu estudo de caso vendo diversos shows, na Academia Brasileira de Circo, no Carioca Club e também na primeira edição do SWU, por exemplo. Cada qual com um humor distinto e algumas vezes a fazer companhia dos mesmos amigos e amigas que faziam a indicação do primeiro parágrafo. Agora, eram apenas dois, eu e minhas circunstâncias.
         Não resisti passar na Lojinha para comprar camisetas, canetas, um adesivo para o carro de meu pai, etc e tal. Usara minha camiseta d'O Segunto Ato até puir. Agora era a hora de um arco-íris no logo e da estampa de Partilha, amor à primeira audição. Nas prateleiras pequenos frascos coloridos saltavam aos olhos entre os souvenires. Não ousei perguntar o que seriam. Me peguei torcendo para ouvir todas as músicas do disco novo no show. Foi assim? Sem ter um diário tal memória me escapa, também não quero procurar resenhas do evento. Os motivos antitéticos estavam ali, "morrer de vontade de viver", "a vida anuncia que renuncia a morte". Como de praxe, as letras apresentavam muito material para se discorrer de maneira existencial. Ou era o momento que eu vivia? Fica a abertura ao diálogo. Você está aí? A menção a acontecimentos em O Sol e a Peneira era como sucessora espiritual de Amanhã...Será? Travar contato com a manifestação e indignação em meio à festividade de uma canção popular tem o caráter de internalizar a reflexão. Assim, quando Anitelli explana ao público presente no Citibank Hall que o líquido em exposição na loja era a "essência do Teatro Mágico" não pude deixar de sorrir. Quantos dos mais apegados ao lado lúdico sentiam sua preciosidade esmaecida? Incontáveis, o caráter coletivo e camaleônico da trupe sempre estivera em voga, a vontade de buscar uma nova característica caracterizava o trabalho de Anitelli e, consequentemente, de todos os que o cercavam, leia-se: banda, dançarinas, sua família. Só a mudança é permanente. 
          Por conhecer o álbum de 2014 apenas em 2015, qual não foi a surpresa ao tropeçar este ano, 2016, em Allehop. Enquanto buscava referências para discorrer o álbum Era domingo de Zeca Baleiro em junho fui tomado de surpresa com o quinto registro da banda , detentor de uma alegria contagiante. Duran Duran, Oingo Boingo, Tears for Fears, ouvir é quase como estar num especial temático dos anos 80 - trilha sonora perfeita para a leitura de Armada de Ernest Cline? ao mesmo tempo nada soa fora do lugar, não é necessariamente um revival. A faixa sete, Cada Caso, me parece Undisclosed Desires da Muse. Como não poderia deixar de ser, a bagagem cultural do ouvinte vai guia-lo quanto ao que poderá encontrar. Se o disco anterior era mais politizado, esse é mais leve. Apresenta, também, campo lírico para análise. Se considerar que o disco abre já com versos como "no fundo somos todos sós" em tom de constatação. As interações do "eu" na busca de entendimento e de uma posição no mundo perpassam as letras. Frases de longa data no universo de Anitelli como "os opostos se distraem, os dispostos se atraem" se expandem na letra de Quando se distrai. Há mais de dez anos Anitelli dizia "eu não sei na verdade quem eu sou", hoje afirma que é "tudo o que faz para ser". Ainda que pareça despolitizado, o álbum soa coeso com a proposta de reinvenção. A última faixa fazer parte do "baú de Anitelli" (Num chat para o UOL em 2007 o compositor confirma a música já existia nove anos antes, o que data meados de 1998) também não parece gratuito. É quase como acenar, mais uma vez, para o passado, enquanto se permite pintar o futuro. Quase todos os registros, sejam cd's ou dvd's, d'O Teatro Mágico apresentam novas fantasias para antigos sonhos guardados. Existe, claramente, uma busca por explorar o potencial de cada uma das claves escondidas. Me identifico com essa incessante procura. Quanta bagagem cultural obtive simplesmente por querer me posicionar contrário a quem me pedia que ouvisse a banda? Hoje, sou eu quem indica: a vida convida pra se viver!!!

quinta-feira, 10 de novembro de 2016

Efeito Borboleta

Caos: Quando o presente determina o futuro, mas o presente aproximado não determina aproximadamente o futuro. - Edward Lorenz



Por Jorge Luís Barros

         "Quando a previsão do futuro se tornou tarefa ingrata, colocou os olhos no passado. Estava certo, ainda possuísse nada além da intuição como pilar, de que esse comportamento o levaria a encontrar a saída para a situação em que se encontrava. Repleto de silêncios, sem nenhuma palavra, som ou o que o valha. Havia, no entanto, uma série de "quês". Um maldito queísmo alastrado em sua fala havia anos; mesmo quando essa fala era nada mais que o fiapo de um pensar. Abriu então a empoeirada mochila vermelha, uma série de cadernos, utilizados por cerca de três anos antes de se transfigurarem em referências para consultas. Tateava cada uma das páginas tentando alcançar a desesperada destreza de Evan Treborn, sem sucesso. Lia e relia o pequeno trecho escrito no verso de um recibo da agência em que trabalhou:

A ponte entre sua mente e aquele instante não fora realizada. Estava ainda sentado no edredom escorregadio. Equações nunca estiveram entre suas áreas de atuação proeminente, então afirmava: cálculos em física quântica estariam fora de cogitação. Desaprendia cada vez mais em matéria de pêndulos duplos. Creia nisto: Quando na quarta série, sua professora de matemática - depois de observar cerca de noventa e sete por cento dos alunos deixar a sala ao fim de uma prova - solicitou a mais formosa de suas colegas que o ajudasse a resolver alguns cálculos envolvendo porcentagem. Porcentagem, imagine você! Era óbvio: a instabilidade nas equações não lineares certamente seriam uma impossibilidade prática. De onde tirara o caos, então? Provavelmente do palhaço do crime. Vestido de púrpura ele se apresentava como um agente. A palavra seguia tatuada com faca em suas sinapses. Era, com alguma sombra de dúvida, triste. Entre suas intenções estava tirar os sentimentos mais doces de pedestais, a vontade de estar acima de tudo que fosse patético, como o querer escravo que recrudescia de uma semente no solo constituído de massa cinzenta. Se dizia que o sorriso de alguém era capaz de trazer o dele, como alcançara esse estágio de bem-querer genuíno?  Poderia ser apenas a história dolorosa de possibilidades irrealizadas. O Presque vu ocorria com frequência maior que a de seu irmão mais conhecido; Por Zeus! Como é que se diz mesmo? Melhor passarmos ao próximo parágrafo que desse nada se salva!"

         O convite para falar de Efeito Borboleta veio como uma surpresa, Thales me chamou dizendo que nem sempre sabia como falar de suas letras, então tentei criar uma narrativa que remetesse a esse desconhecimento, aqueles instantes em que você sente a lembrança na ponta da língua mas não consegue traduzir sabe? o tal "presque vu" do parágrafo passado. Longe da ideia megalomaníaca do bater de asas de uma borboleta causar um tornado no Texas, meu pensamento era: quais são as pequenas ações ou encontros que pavimentam o futuro. O post da canção Volta é um exemplo disso, indo um pouco além, o próprio blog só existe por ter havido na "grande história", sete anos dedicados as composições que surgem nos textos. Tomei a liberdade de entrar em contato com pessoas próximas a ele para intuir o que achavam da música oito anos depois de sua criação. Tiele Rodrigues foi sucinta "o texto continua belo". Bruno Oliveira, baixista e coautor de canções como Felinos e Cantillena Sant'Anna, afirmou que há boas frases como "a lua cheia já prometeu que me fará companhia", e sentia o fantasma de Lobão por toda a melodia. Ambos concordaram que o verso final é o mais bonito da música. Procurei também pelo cantor Fabio Kulakauskas autor de, entre outras, Por mais que te desejo e Noites esfrias, no entanto, em virtude do intenso estudo de Estatística não consegui sua declaração;
Tive a oportunidade de perguntar a Thales acerca de onde ele surgiu com alguns dos versos. A descrição da Joaninha veio da canção de mesmo nome do alagoano Djavan, o disco Matizes fora sua entrada real no universo do artista. Já a ideia da ópera surgiu do capítulo IX do Dom Casmurro de Machado de Assis, mas apenas por alto. O filósofo francês Michel de Montaigne já registrara: "todo resumo de um bom livro é um resumo tolo", a ideia não era tentar sintetizar, era aquela ideia que parece boa demais e se pode atribuir novos significados. Ele concordou quanto a Lobão "à época eu estava ouvindo muito o acústico MTV dele, toda a questão de ir da delicadeza ao peso era impressionante, fora o número de instrumentos. O Lobão tem aquela coisa de fazer vocalizações, como em Pra onde você vai? e até então era um recurso que eu nunca tinha tentado utilizar, por vergonha mesmo, você nota que mantenho bem leve, era uma tentativa de ir para um caminho levemente distinto do que a Falsa Modéstia tinha feito até então, ou não? nesse voz e violão tentei cantar de forma mais natural, sem imitar tanto." Ele conseguiu encontrar o manuscrito que usara para registrar anos antes na casa de sua avó e reproduzo aqui, no fim das contas não houve tantas alterações. Até esse momento, ele não estava a se preocupar tanto com questões de autorreferência ou de exclusividade de termos, então essa canção marca um período de menor preocupação com o resultado final, como seria evidente a partir do momento em que ele conhecesse A Estética do Frio de Vitor Ramil. 


Efeito Borboleta (2008)

Se eu olho para o céu
E vejo as nuvens indo para um só lado
Eu sei que é o seu
Se está escuro
Sei que as estrelas podem me guiar
A lua cheia já prometeu
Que me fará companhia
Há musica no ar, música no ar
música no ar

Tudo me leva ao seu encontro
Eu simplesmente deixei-me levar
O teu sorriso em algum lugar
Traz também o meu
E mesmo quando o poema
Chega ao derradeiro fim
O caos é a saudade de você

As asas multicoloridas da Joaninha
Refletem pela mata, o brilho dos vaga-lumes
A Terra é um palco onde uma opera é regida
Pelos deuses e por ti