quinta-feira, 22 de fevereiro de 2018

MITO: O NADA QUE É TUDO

Um embate entre o monstro mítico de Mensagem e o de Os Lusíadas
(Originalmente um trabalho apresentado como parte do Curso de Letras do Centro Universitário Sant’anna na área de Literatura Portuguesa. Junho de 2011)





Pessoa, um mito à altura do mito Camões?
Nacionalistas ao extremo? Poder-se-ia dizer. O certo é que tanto Luís de Camões quanto Fernando Pessoa construíram, cada um à sua maneira e época, uma obra exaltando os valores do povo português. Suas angústias, expectativas, conquistas e mais ainda sua coragem para sobreviver aos perigos de "mares nunca antes navegados" afim de aumentar territórios, aumentar riquezas e glorificar a terra natal: Portugal. 
Camões em Os Lusíadas descreveu em dez cantos e 1102 estrofes decassílabas a viagem de vasco da Gama em busca do caminho para as Índias e pelo Ocidente. Há três ‘mitos base’ que são Adamastor, Velho do Restelo e A ilha dos amores. O mito que será utilizado nesta monografia é o de Adamastor. 
A Obra mensagem de Fernando Pessoa em questão “Mensagem” possui três partes: Brasão, Mar Português, e O Encoberto. Distribuídos em 44 poemas. A primeira e terceira parte apresentam subdivisões e a segunda parte não. O poema “O mostrengo” que será utilizado nesta monografia, faz parte da segunda parte do livro. 
O que se busca neste trabalho é analisar as semelhanças e diferenças entre as partes em questão: Adamastor é um gigante que encontra-se com a tripulação de Vasco da Gama quando estão no Cabo das Tormentas. O mostrengo é uma criatura que lembra um morcego e se coloca a assolar a tripulação de uma navegação portuguesa no mesmo Cabo das Tormentas. 
Essa é uma intertextualidade sempre citada, ao falar sobre as duas obras. Qual das duas criaturas configura-se como o monstro máximo? Seriam mesmo totalmente malignas? Estas são algumas das questões que serão levantadas nesta monografia. 

Prólogo 
Como se portar quando seu inimigo mostra-se "monstruosamente irascível"? Quando é imenso e parece gritar que é a própria "Natureza" que o quer amedrontar e a qualquer instante lhe pode levar para as profundezas sem lume?.. Camões representa através de Adamastor estes dilemas e Fernando Pessoa se vale do 'mostrengo'. 
N'Os Lusíadas, Camões, apresenta Adamastor no Canto V, quando Vasco da Gama põe-se a narrar a viagem empreendida de Lisboa até o rei de Melinde, no canal de Moçambique. O mostrengo, por sua vez, se apresenta em "Mar Português" segunda parte da obra Mensagem, de Fernando Pessoa. 

Um monstro em dois momentos ou diversas interpretações para um mesmo mar? 
Partamos de um ponto de semelhança em palavras empregadas na descrição das figuras em questão. 
Adamastor é descrito em determinado momento como "horrendo e grosso": "Com tom de voz nos fala, horrendo e grosso/ Que pareceu sair do mar profundo" enquanto o mostrengo tem as palavras "imundo e grosso" constituindo parte de sua adjetivação: "Três vezes rodou imundo e grosso". Embora uma das entidades seja horrenda e a outra imunda, há uma relação pois as palavras remetem a um campo de idéias comum, sugerindo algo repulsivo, pavoroso, ou mesmo monstruoso. A utilização da palavra "grosso" por Pessoa constitui um traço de intertextualidade consciente com o texto de Camões. 
Quanto a forma com que são caracterizados singularmente: Adamastor é uma figura de tamanho descomunal, com boca negra, dentes amarelos, barba maltratada. O tom de sua voz é profundo e causa o arrepio de todos os tripulantes : "Cum tom de voz nos fala, horrendo e grosso,/ Que pareceu sair do mar profundo/ Arrepiam-se as carnes e o cabelo, / A mi[m] e a todos, só de ouvi-lo e vê-lo. 
O mostrengo é uma figura que voa e chia e diz habitar em "cavernas que não desvendo" seus "tetos negros de fim do mundo". A semelhança que este carrega com um morcego não é gratuita. Na versão original, "Mar Portuguez" - que Pessoa publicou em Outubro de 1922, no nº 4 da revista Contemporânea - o poema se intitulava "O Morcego". Animal este, que simboliza a natureza proibida da noite. A palavra 'mostrengo' adotada posteriormente pode causar estranheza. É palavra derivada por sufixação: monstro + sufixo -engo de conotação pejorativa. Há ainda a supressão do 'n' de "mons" ficando apenas "mos", que ao compararmos com "morcego" notamos ser a alteração para a consoante subsequente na ultima consoante da silaba "mor", formando "mos". 

Três parágrafos acerca do três 
Nota-se na construção do poema de Fernando Pessoa o recorrente número três: a palavra "mostrengo" possui três silabas, o poema tem três estrofes, cada uma delas possui nove versos (o número nove é múltiplo de três). O número também é trabalhado de forma a criar ainda mais mistério em volta das ações do mostrengo. 
Lemos no poema: "voou três vezes a roda da nau", "voou três vezes a chiar", "rodou três vezes", "Três vezes rodou imundo e grosso". O três não está apenas nas ações do mostrengo. Mostra-se também nas ações do 'homem do leme' : "Três vezes do leme as mãos ergueu", "Três vezes ao leme as repreendeu", "E disse ao fim de tremer três vezes". No último verso de cada estrofe há a menção a El-rei D.João Segundo, o que faz com que , também ele, seja referido três vezes. 
O número três carrega força mística tal, que por si só poderia ser objeto de estudo em relação ao que pode significar no poema. Há a tríade de deuses egípcios Osíris, Hórus e Isis. A santíssima trindade, a ordem espiritual composta de Deus, o Universo e o Homem etc. O número três também pode simbolizar a perfeição, a totalidade. A presença deste número no poema pode sugerir a influência de Deus nas ações do homem. Decidido isso, podemos focar na comparação entre os monstros. 


De como as criaturas lidam com indesejados viajantes 
Camões optou por criar uma figura flexível. Adamastor, a principio, é uma figura completamente assustadora. Anuncia como tem lidado com todos aqueles que tentaram passar, valendo-se de ventos e tormentas desmedidas num castigo que vem sem que se aguarde. Este tom toma maiores proporções quando em determinado momento ele diz: "Antes, em vossas naus vereis, cada ano,/Se é verdade o que o meu juízo alcança/ Náufragos, perdições de toda sorte,/Que o menor mal de todos seja a morte!" Quais destinos de imensuráveis sofrimentos seriam estes maiores que a morte? Ainda que apresente tais perigos a figura de Adamastor é humanizada ao fim da passagem. Quando o monstro se mostra atormentado por um fracasso amoroso, logo, o que o motiva capaz de criar empatia para os navegantes, e consequentemente para o leitor. 
A abordagem de Pessoa para o mostrengo é única: aterrorizar os navegantes através de seu vôo ao redor da nau, seus chiados e sua própria figura. O mostrengo é fruto de um mistério: nada se explica acerca de sua vida pregressa. Ele percebe os intrusos em seu território e se coloca a tentar afugentar os navegantes. Sua abordagem tem - como a de Adamastor - efeito instantâneo, percebemos já no oitavo verso da primeira estrofe que o 'homem do leme' está a tremer no instante em que responde a criatura. Apenas a coragem dos heróis pode vencer este desafio. Sem ela, o mostrengo reinaria absoluto por aquelas áreas. Ele só pode ser vencido. Não é capaz de mudar de idéia. 


Navegando o Cabo a dentro e através 
Mais que a simples representação do Cabo das Tormentas, o Adamastor e o mostrengo podem ser interpretados como a personificação de todos os medos que os navegantes mostravam quando se punham a desbravar os mares. Sempre se soube das lendas que eram criadas pelos navegantes na tentativa de compreender quais eram os perigos dos mares e tormentas. Estes monstros fantásticos representavam um perigo palpável. O que poderia causar tantas mortes se não uma terrível criatura à espreita? Preparada para levar os homens e seus sonhos para as fossas abissais? 
As criaturas se vistas como protetoras de um caminho e apresentando um desafio ao povo português tem um papel semelhante ao desempenhado pela Esfinge Egípcia que devora os que não tem coragem, ou não estão a altura de seu enigma. As duas figuras, Adamastor e mostrengo, colocam-se contra os navegantes e apenas a coragem e a ousadia podem servir como resposta ao terror que representam. 
Vendo sob uma outra ótica, para os navegantes era primordial atender a vontade do rei, este sim, detentor de uma fúria maior que a de qualquer monstro encontrado no mar. Por isso pode ser interpretada como uma ironia o fato de a coragem de enfrentar um medo venha de um outro medo. Dizer que para um rei os fins justificam os meios é útil a esta altura? 
D.João II alterou o nome do Cabo das Tormentas para Cabo da Boa Esperança depois que Bartolomeu Dias e sua tripulação conseguiram ir além do Cabo. Essa façanha é a presente no poema "O Mostrengo". Quando, depois, Vasco da Gama no reinado de D.Manuel I, encontrou o caminho para a Índia indo além do Cabo, Luís de Camões homenageou este heróico ato n'Os Lusíadas. 


Um navegar impreciso entre dois mares do tempo 
Houve a possibilidade de observar a intertextualidade entre o poema "O Mostrengo" de Fernando Pessoa e o Adamastor presente em Os Lusíadas de Luís de Camões. Podemos concluir que foi pela existência de Adamastor que o mostrengo pode tomar vida. Uma vez que Pessoa, tendo podido buscar inspiração em seu compatriota, diluiu a influência da antiguidade clássica - fortemente presente no texto de Camões, por exemplo o próprio Adamastor baseado em um gigante mitológico - e fortifica a sua visão interior dos perigos do mar, no Cabo da Boa Esperança. 
Camões criou um personagem que aterroriza por suas proporções, mas o descreve como uma figura humana. Além disso, a força épica que Adamastor inspira vai sendo reduzida quanto mais o ser vai sendo humanizado no decorrer do episódio. Adamastor fora vencido pelo amor. Essa reviravolta acaba transitando o foco entre os conflitos do gigante e os dos navegantes. 
O poema que apresenta o mostrengo, por sua vez, tem uma reviravolta apenas no instante em que o 'homem do leme' se percebe como a confluência de energias e almas do povo português e da vontade do rei D.João II e toma em suas mãos o destino que parecia estar, até então, nos dominios do mostrengo. Nas duas primeiras estrofes, tudo que o homem é capaz de fazer é tremer e temer. O nome do rei é tudo o que consegue articular. É apenas na terceira estrofe que o poder da coragem, necessário para sobrepujar a criatura horrenda, se manifesta. Como fosse uma epifânia. É a vitória do homem sobre seus medos. A luz que oblitera as sombras. A força de Portugal é tanta, que até mesmo detentor de uma verve poética o homem do leme se mostra. 
Enfim, a emoção do episódio de Camões divide-se entre os homens e Adamastor, enquanto no poema de Pessoa o foco mantém-se no fortalecimento do espirito do homem. 

O supra-Camões 
Essa força colocada por Pessoa torna a sua criatura e a ação que a envolve mais interessante, e assim mostrando aspectos do "Supra-Camões", pois elevou ainda mais os valores e ideias que Camões propusera n'Os Lusíadas. Fernando Pessoa criou no mostrengo um símbolo máximo para o medo. Mais que uma geniosa personificação como fizera Camões. 
Encerro com uma citação que resume esta ideia de forma mais articulada, e considerando aspectos gerais das duas obras: 

"A Mensagem comparada com Os Lusíadas é um passo a frente. Enquanto Camões, em Os Lusíadas, conseguiu fazer a síntese entre o mundo pagão e o mundo cristão, Pessoa na Mensagem conseguiu ir mais longe estabelecendo uma harmonia total, perfeita, entre o mundo pagão, o mundo cristão e o mundo esotérico." (Cirurgião; 1990, 19) 


Referências 

MOISES, Carlos Felipe. Mensagem de Fernando Pessoa. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil. 2ª edição 

CAMÕES, Luis Vaz de. Os Lusíadas. Comentário por Francisco da Silveira Bueno. Rio de Janeiro: Ediouro. 

CIRURGIÃO. Antônio. O Olhar Esfíngico da Mensagem de Pessoa. Revista 

ICALP, vol. 22 e 23, Dezembro de 1990 / Março de 1991, 74-85 

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018

A Primeira Paixão

Foto: Renata Custódio
Eram girassóis, seus olhos.
E parecia que não mais olhariam para mim.
Aos treze, a aprovação dos colegas de classe parecia conduzir a metade de mim desinteressada pelas descobertas. Claro que a indignação da moça perante minha, suposta, brincadeira não havia passado pela minha cabeça. Mas deveria.
Nos conhecíamos pessoalmente desde a 6ª série, no ano anterior, e, até então, cultivávamos uma amizade baseada na consonância de nossos gostos por seriados norte-americanos, música estrangeira e livros.
Digo pessoalmente, pois, seu nome sempre fora mencionado pelos professores.
Ela tinha as melhores notas da classe, além de desenvoltura em público e, além disso, dançava jazz, balé e dança do ventre.
É bem capaz que eu não tivesse percebido o quanto ela fazia parte de minha vida. Então, bem mais que as aulas, meu objetivo passou a ser ter as palavras dela de novo. Mas como? Dias passavam sem que nenhum de nossos colegas em comum a demovesse da ideia de me ignorar. As amigas dela tampouco tinham interesse em interceder em meu nome. Aqueles foram dias em que descobri uma agonia que contagiava cada um de meus passos, até o momento em que decidi escrever um e-mail para ela pedindo desculpas e explicando como sua falta era sentida. E seria sempre. Por mais distante ela estivesse, meu pensamento seguiria firme na tentativa de criar laços telepáticos.
Quinze anos depois, eu não lembro quanto tempo remoí aguardando uma resposta. “Não te desculpo, é melhor fingir que eu não existo.” Era o que pensava estaria escrito, quando, finalmente o minúsculo envelope surgiu na caixa de entrada. Fiquei chocado no momento em que tomei coragem para abrir aquela carta virtual. Ela era breve e dizia não poder se prolongar. Ela viajaria no final de semana e quando voltasse deveríamos conversar.
A frase que me petrificou, no entanto, era outra. Quatro palavras inesperadas: Estou Gostando de Você.
“Nem de longe” Pensei. E fui ficando aflito. Ela já havia namorado. Eu, até onde lembrava, só tinha idealizado umas duas relações na vida e a coragem para tirá-las da esfera platônica não havia me acompanhado. Eu sentia o mesmo por ela? Gostava quando fazíamos trabalhos escolares juntos, ela escrevia e eu desenhava os projetos. Era uma forma de união, certamente. Aquela vontade de ouvi-la, paixão era isso? Considerando a importância que eu atribuía a ela, não demorei a concluir que sim.
A paixão me acompanhara na vontade que eu sentia de poder conversar de novo. Na prática, porém, isso não facilitava as coisas.
“Os meninos” não deveriam ser hábeis nestas questões? Talvez, todos eles eram dados a bravatas quanto ao que já haviam feito, ao que conheciam. Eu não ficava atrás, e, já havia contado vantagem de uma namorada imaginária, estudante de outra escola. Tinha medo de como seria essa fachada caindo. Por certo, ela seria capaz de notar a inexperiência.
Na segunda-feira após o e-mail, me lembro que ela ficou parada na porta conversando comigo quase de perfil até que um colega gentilmente me explicou que ela esperava um beijo no rosto. Mesmo os protocolos mais simples diante de uma garota me eram estranhos. Ainda assim, poder partilhar de sua companhia novamente tornara as aulas muito mais vívidas. Nossa primeira ação foi unir as carteiras escolares lado-a-lado. Naquele mesmo dia, ela entregou uma carta em que explicava que o período de silêncio a fez ver um lado carinhoso que eu normalmente escondia.
Cada uma das linhas daquela carta me deixava tremendo de expectativa, mesmo depois da terceira leitura. A folha de papel dobrada em três, num pequeno retângulo me fazia de tempos em tempos sair de dentro de casa para reler – um dos males de ter um quarto sem portas – e, em dado momento, chamou a atenção de meu pai que se prontificou a ver o que eu estava escondendo. Envergonhado por precisar mostrar algo tão íntimo e precioso, fiquei sem jeito quando ele indagou o que eu tinha nos bolsos. Ele desdobrou a folha, e, já na primeira linha se deteve e respeitou minha privacidade apenas brincando “Vi apenas o Dear Thales… avise a moça que se começar em inglês, é melhor continuar a carta em inglês.”
Minha ansiedade crescia na expectativa de que algo era esperado de mim. O receio era tanto que em algumas aulas eu andava mastigando pequenas pimentas dedo-de-moça, evitando, assim, ter um beijo roubado. Até o dia em que combinamos participar do conselho de classe. Era um pretexto para estarmos no mesmo ambiente sem a pressão do expediente escolar.
Tão logo pudemos, pegamos a primeira direita do portão da escola e nos aproximamos de um canteiro nos fundos do maior hospital da cidade. As flores e a vegetação irregular lembravam um jardim. Quais eram nossos assuntos naqueles momentos? Havia antecipação para assistir à Matrix Reloaded, lançado na semana anterior, mas isso não era tão importante quanto o instante em que minhas mãos tremulas a puxavam pela cintura e eu a vi cobrir os girassóis para nosso beijo, seguido de outro e mais um. Nada naquele dia me fez vibrar de maneira tão concreta. Era dar um salto no escuro e tropeçar em nuvens.
Algo em mim havia mudado, era possível perceber, pois, naquele mesmo dia assisti à transformação de Goku em um super saiyajin 4 pela primeira vez, algo esperado ao menos por quatro anos, e tudo o que eu pensava eram aqueles beijos. Aquela moça e em como a vida seria eterna dali para frente. Fosse numa troca de cartas, fosse em inventar pequenas mentiras para que passássemos o tempo depois da escola juntos, fosse correndo atrás de seu ônibus para aproveitar mais de seu perfume e presença, fosse tocando canções de nossas bandas preferidas pelo telefone. Pudemos viver essa intensidade por um par de anos. De alguma maneira, os resquícios desse sentimento nunca saíram de minha memória. Tanto que, quando tinha dezessete anos, ocupava meu tempo ocioso lembrando daquela moça e escrevendo poemas para ela, ainda que estivéssemos distantes.

(Texto escrito originalmente para uma promoção da Editora Intrínseca)

P.S.: Para saber mais acesse Um Conto no Jardim ou Para Ela.

Enquanto Fizer Sentido

"Sabemos todos, por experiência, quão fácil é nos apaixonar e quão difícil e belo é amarmos realmente. Como todos os valores reais. não se pode vender o amor. Há prazeres que se vendem; o amor não." Hermann Hesse, Para Ler e Guardar.






Enquanto Fizer Sentido (2018)
Letra: Barbara Barduchi e Thales Salgado

Gostaria que pudesse ver
Através de meus olhos
A extensão desse amor
Que os anos passassem me fez ver
Ainda sinto um arrepio
Banhado de ardor

Sei minhas palavras
Foram setas a te lacerar
Mesmo em fúria, "eu fiquei"
Apesar das dores que passei
Não me arrependi
Do que fiz pra estar aqui

Te quero comigo
Enquanto fizer sentido
Enquanto você inteiro
Nomear meu riso
Te amo por hoje
Se fossem pedaços
Menos da metade
Te deixava ir

Foi Deus
Quem te trouxe
Pra mim

"Gostaria que pudesse ver através dos meus olhos o tamanho do meu amor por você. Posso dizer que não sabia o que era este sentimento até te conhecer. Quis você a partir do primeiro beijo. Acredito eu, que foi pela sensações que me causou: como coração acelerado toda vez que pensava em você. Depois de quase dois anos juntos e um ano casados ainda me causa frio na barriga quando me beija com paixão.
Sei que o casamento nos fez amadurecer muito e ainda fará muitas mudanças na gente. Sei que já o feri com palavras pela dor que sentia no momento. Sei que você e eu ainda vamos errar muito durante toda nossa vida. Mas posso garantir que, da minha parte, sempre terá toda minha sinceridade e meu respeito, mesmo em meus dias de fúria.
Apesar das dores que meu coração já passou, eu não me arrependo de nada que fiz pra estar com você. Viver este sentimento me fez viva até aqui. Agradeço a Deus por ter te colocado no meu caminho, assim como pedi a ele inúmeras vezes. Antes de você chegar eu era muito menos.
Acredito que haverá um tempo que seremos tão um do outro que nada nos separará e tudo será tão mais fácil. Mas também te amo o suficiente para te deixar partir se um dia não for o motivo do seu sorriso e tua vida não fazer mais sentido ao meu lado. Te quero comigo, mas mereço você por inteiro, assim como me dou por inteira para você. Quando tiver metade e pedaços será a hora de deixar você partir. Por hoje, eu amo você." - Barbara Barduchi
         
         Seria um clichê dizer "eu nem sei bem o que é o amor". Praticamente qualquer frase tirada das gravações ao vivo da Legião Urbana se torna um clichê pela repetição. Comentei em 2016 acerca de um álbum de Moska e, nele, a última faixa transborda numa poesia falando do amor. Dentre os versos, ele diz que a morte do amor é quando, diante do seu labirinto, decidimos caminhar pela estrada reta. Cronista da ternura, Fabrício Carpinejar diz que uma linha de costura prende mais o casal do que uma corrente ou uma corda. A possibilidade de romper o nó sensível permite que os dois se olhem a todo momento para verificar se permanecem juntos. Onde quero chegar com isso?
         Há formas de amor pouco expressadas culturalmente. Um amor maduro o suficiente para considerar o próprio fim, não se enxerga todos os dias. Há uma honestidade bruta. Eis um sentimento como costuma ser renegado no cotidiano. Queremos viver as grandes histórias de amor, sentimentos que nos ponham num êxtase infindo. Quando é que nos esquecemos do famoso ditado sobre o excesso? Shakespeare que me perdoe, mas Romeu & Julieta, como diria o menestrel, perderam a noção do juízo e isso os impediu de encapsular a paixão em pílulas cotidianas. Essas sim, eternas.
         Já não me lembro quanto tempo passei ruminando as palavras de Barbara. Ela me mostrara na intenção que me inspirasse. Engraçado como as coisas são, não? Se ao falar de seu casamento inseri uma composição de seu esposo, e ela foi a pedra sob a qual erigi Nada Há de Novo sob o Sol. Certamente suas palavras me trouxeram mais próximo do que busco em Hermético como Memória. Sim, pois, ainda que a desconhecer os pormenores que a levaram a escrever, no momento em que peguei o violão tentei respeitar as palavras. Uma madrugada insone e me apropriei daquelas palavras. Se um de meus receios recorrentes é saber onde termina o sentimento e começa a ourivesaria. Nesse caso eu sabia residiam cálidos sentidos nas sentenças. 

      Qual a influência de São Valentim para nós, na América do Sul? Mesmo para historiadores sua origem é controversa. Há vários homônimos, para uns ele foi santo pois soube amar, para outros ele abençoava uniões contrariando um imperador. Mesmo a igreja católica retirou Valentim do calendário dos santos em 1969. A tradição de trocar cartões, e votos, no entanto, perdura até hoje em grande parte do mundo. Faz sentido que as palavras da esposa para o esposo venham à tona nesta data. Mais do que faria num mês de junho.
        "Enquanto Fizer Sentido", musicalmente, vem de fontes diversas. Enquanto compunha pensei em Fran Healy, Viva por Mim (de Leo Chaves). A repetição de "eu fiquei", é um eco do "quero sim" em Uma Noite e Meia, de Marina Lima. O que mais? Há sempre um mistério que me escapa. Um poeta que morreu jovem de amor e fumaça dizia que n
ão existem amores perfeitos, existem amantes acomodados. E, de acomodados, este casal de músicos não tem nada. Que cada dia contenha um brinde à eles.

quinta-feira, 8 de fevereiro de 2018

Hermético Como Memória


"Anseios temperados com receios, paranoias e outras duvidas.
Nada além de esconderijos"
Nada Além - Los Porongas
Hermético Como Memória (ou HCM) é uma composição-irmã de Tudo Depende de Conforme For - Em algum ponto até de CCCLXV. Qual a razão de surgir apenas neste 2018? Diferente do conceito elaborado na coleção de composições anterior (Nada Há de Novo Sob o Sol) em que cada faixa surgia cronologicamente à feitura, o surgimento de Amor Infinito após a leitura do livro de Leo Chaves trouxe algo com um tom diferente do que foi desenvolvido até a mezzo-ramiliana Da Escolha. HCM traz tanto uma série de questionamentos, envoltos numa atmosfera de "arte pela arte". Se a palavra "nefelibata" fora aprendida nos tempos de faculdade, "temperança" é reflexo de fazer uma longa maratona do seriado Bones, em que a protagonista se chama justamente "Temperance". Mesmo o termo "azinhavra" surgiu de observar o evento na vida real, a prata perdida para efeitos químicos...
Nada para dizer que não esteja na letra. Imagino. Desconheço o paradeiro de Raul, tampouco imagino o que Júlia está fazendo. A última vez que ouvi dele, me desejava ano novo dizendo que William o havia ameaçado caso insistisse em fazer contato. Eu disse a ele que de Nelson Rodrigues conhecia apenas a fama, seria impossível criar narrativa em cima disso, ao menos por enquanto. "Tudo são sonhos maus, no final, e, apesar de vencer, eu perdi." Há um algo na composição da trilha do Homem de Aço de Hans Zimmer e também de Luís Alberto 'El Flaco' Spinetta, falecido dia 8 de fevereiro de 2012, grande artista argentino que vim a conhecer apenas por seu registro pregresso. As influências estão aí. Nada surge sem ser, de alguma forma, resposta aos que se foram.



Sombras: sobras de Raul e Júlia


Hermético Como Memória (2017)

Pode um raio cair duas vezes
Nos jardins da alma?
Apontando apenas o "preciso"
E preenchendo o nada
Com algum aroma bem melhor
Que o crepitar de cartas

De meus sonhos, onde não hesito
Sentimento, lá não azinhavra
Que delírio! Ser nefelibata

Enquanto há vida
Há de haver mudança
Mas em nenhures
Encontro segurança
Será que elido
De vez a esperança?
Para imergir 
Em vasta temperança.

"É só silêncio."