quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

Da Invisibilidade

"- Tire essa camisa!

O imperativo o pegou desprevenido, o tom sobre tom resultara de horas daquela manhã. Provara as peças esquecidas até pelo armário e ali, a primeira vista fora derrubado. Restava manter a compostura; atravessei a passarela, conta? Rostos beijados, impessoal, considerando o terno abraço 8,85 semanas antes, quando o encontro fora surpresa. Ela comentou sua maquiagem eram as asas de Ícaro, mesmo com seus pés no chão.
Não tomavam água, apesar do calor, recusar bebidas seria uma constante aquele dia. A mãe dela os guiaria ao ponto de encontro. Ele se deteve diante do jardim de azaléas e cactos. Estava tentando se decidir se preferia o Opuntia microdasys ou o Mammillaria elongata quando ouviu a frase "eu estou gata?". Instantes depois, recebeu o comentário da mãe e então, ela está gata? quem sou eu para dizer? 
Teve ganas de dizer que era uma questão de ser e não de estar e que por vezes poderia venerá-la como faziam os egípcios aos felinos na antiguidade. Teve ganas. Qualquer coisa que dissesse agora poderia ser mal-interpretada, ela não precisava da validação masculina, ninguém tinha dúvidas disso, mesmo assim a pergunta não ter sido dirigida a ele o fez se sentir invisível."

            Muitas vezes dizem soar estranho quando me detenho a falar com estranhos na rua. Sou abordado e decido seguir com a conversa. Esse ponto é importante, via de regra não sou eu a procurar essas interações. Acolho-as como sinais de um Destino o qual já fui mais convicto, afinal, se forem apenas coincidências tudo adquire um ar banal e desinteressante, divago.
         Meses atrás estava no Sesc Pompéia aguardando para ver o show da pernambucana Flaira Ferro. Próximo aos guichês de ingressos vejo uma serie de cartões virados de cabeça para baixo, como um grande jogo da memória. Um rapaz me pediu que virasse um dos cartões, ele explica que o mastim tibetano é um dos cães mais caros do mundo, com uma aura sagrada no oriente. Nunca imaginaria. Ele me incentiva a virar outra, em que encontro um chaveiro dourado da Louis Vitton. O preço também estava numa quantia inacessível. Percebi onde o jovem professor queria chegar com aquele jogo quando a foto seguinte representava negros num aterro. Eram os contrastes hediondos e a atribuição de valores.
        Despido da impressão de que havia algo a ganhar naquele jogo decidi descobrir todas as fotos. Até chegar a uma de autoria de Tuca Vieira e era a síntese da desigualdade, a famosa foto da favela de Paraisópolis. O professor conta que em suas aulas utiliza a foto para instigar o questionamento aos alunos, muitos deles supondo se tratar de Photoshop - não era, o próprio autor da foto na revista ZUM de dezembro de 2012 comenta como a foto foi pensada e não fruto de acaso. Há uma fuga interna contra a aceitação da realidade, e enfim, a conversa foi interrompida pelo fim do expediente do rapaz. 
        Como a hora do espetáculo não chegasse decidi passar o tempo na Livraria Cultura do Shopping Bourbon. Na calçada fui abordado por uma família de moradores de rua. Eu não tinha visto as carroças improvisadas ao chegar. Me agradeceram pelo simples fato de eu parar para ouvi-los, pouco depois, pediram um trocado. Tirei uma nota de dez reais do bolso e entreguei. Conheço os discursos para promover cidadania, enfim agi ao perceber. Me contaram ter vindo andando de Santos em três dias. O patriarca tinha hérnia de disco, tem casa, mas sua família não aceita a esposa que ele conheceu nas ruas. Passaram a cantar louvores e eu por ali fiquei. O patriarca afirmava seu maior sonho era um dia poder pregar para muitas pessoas numa igreja e quando isso ocorresse Jesus poderia levá-lo. Partilharam aguardente numa garrafa trazida por uma senhora idosa e foram sinceros: se bebiam era para espantar o frio e não por ceder a algum vício. Soava nada como as discussões distanciadas que eu tivera minutos antes. O cenário da calçada era este: a família escorada no muro, eu em frente a eles, uma árvore às margens da rua. Ninguém me pedia licença, como fizesse parte de minha obrigação ceder. Talvez não me vissem, estava eu invisível e não havia ares de suspense com o Homem sem sombra nem a magia de uma relíquia da morte. A invisibilidade não me trazia benefícios, mas eu sairia dali. Logo aquelas pessoas se tornariam vozes avulsas de novo. Quando tinha dezessete anos escrevi na letra da canção Falsa Modéstia Quem é que vai se acostumar com os lamurios, com os lamentos daqueles que não tem casa? Menos ingenuidade seria perguntar quem não se acostumou.
        Já esses dias, no meio do caminho o motorista do ônibus deu carona a um homem de olhos injetados. Seus movimentos erráticos davam a impressão de estar sob efeito de algum agente tóxico. Se aproximou de mim, e eventualmente, puxou assunto perguntando de que tratava o livro do tal Cortázar que eu tinha em mãos. Depois, assumiu um ar amistoso e se propôs a contar uma história de sua vida. Falou da educação do namorado da filha, falou como sofria ao ter vacilado com a mulher que amava e de como sabia não ter volta. Ela não gostava dos efeitos que o álcool tinha nele e isso levou a uma escalada de desentendimentos. Chorava como se conversasse com um amigo que não tinha. Nas vezes em que buscou qualquer palavra dos outros passageiros foi ignorado, por mais gentil fosse o tom da interação. Estes mesmos passageiros deixaram de me dirigir o olhar de censura em alguns minutos, como eu tivesse esmaecido. Pode ser eu só mantivesse a conversa por medo de que a qualquer momento o homem se aproveitasse de minha distração para tomar o que lhe não pertencia e saltar do ônibus antes do fim da desaceleração - o que não aconteceu. Caso acontecesse, aposto ninguém perceberia, também não o enxergavam mais.


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