"Fazia pouco tempo que eu voltara d'A Princesinha do Atlântico, Macaé - RJ. Uma viagem acompanhando meu irmão com o intuito de conhecer uma igreja acabou por propiciar o inicio de um namoro com uma moça local, direta e liberal, mal nos conhecemos e estávamos enlaçados. Há quanto eu deixara de ser o rapaz tímido em uma mesa de amigos em uma viagem ao Paraná? Nem mesmo notara quão simples me era para pedir uma garota em namoro. Tempo se não perde. A família dela? Sem problemas, ela afirmou eu poderia levá-la à sua casa enquanto seus pais e irmãos conversavam na saída da igreja.Voltei com a promessa de manter este relacionamento através de cartas, seria algo firme e concreto. Depois dos vinte e cinco anos há pouco espaço para incertezas.
Ao menos, era o meu
pensamento naquele instante. A chegada em São Paulo me propiciou uma leveza
ímpar. Por mais prazer eu tenha em passear por outras paisagens fazendo novas
amizades. Como o lar, não há lugar. Ainda que você sinta a sua pátria como o
mundo, suas raízes sempre estarão mais firmes n'algum lugar. Para mim, esta é
São Paulo. Enquanto famosa por sua garoa, foram sempre suas chuvas torrenciais
a me fascinar. Chuvas, presente de Deus. A mim, não cabe delimitar os limites
de sua previdência, pois que não os há. Foi na casa Dele, noticiei uma presença
diferente, e antes de poder controlar. Estava com os olhos magnetizados na
saxofonista da banda. Cabelos longos, uma beleza natural. Sem maquiagem, sem
disfarces, e me convencendo cada vez mais de que era uma moça ideal. O tempo
que passei a observando foi um curto infinito. Congregávamos na mesma igreja, e
por isso, ainda que estivéssemos distantes, estávamos próximos. A observei
mesmo enquanto meus irmãos e amigos cumprimentavam-me antes de sairmos da igreja.
A saxofonista estava acompanhada de, creio, suas três irmãs. Eu a via, e a
sensação só seria mais perfeita se a pudesse ter para uma conversa. Coloquei-me
a pensar a aproximação.
Dias depois estava
eu, naquela época nem mesmo possuía carro, em meio a uma tormenta, meu protetor
era um guarda-chuva. E aí lhe digo: era um guarda-chuva masculino banal, sem
floreios ou borrões, sem pétalas ou detalhes. Deixei-o ao lado do grande portal
da igreja e entrei para o louvor como acontecia toda a semana. Lembrei-me da
promessa de Deus de nunca mais inundar a Terra e censurei-me por tê-lo pensado,
afinal, a chuva era forte mas não equiparava-se a um dilúvio. Quando o culto
acabou, a chuva não cessara, seriam necessários poucos quilômetros até a minha
casa. Noto, o desaparecimento de meu guarda-chuva. Será mesmo, nem na casa do
Senhor estava livre de sofrer pequenos furtos? Era um guarda-chuva banal, mas
me pertencia. Uma mulher não o confundiria com uma sombrinha rosa. Fui ao
encontro do pastor. E lhe comuniquei minha indignação com o caso, ele, muito
compreensivo, apaziguou-me e afirmou a disponibilidade de um irmão levar-me até
minha casa. Anunciaria, então, no culto da semana seguinte o desaparecimento de
meu pertence, com isso, voltei para casa um tanto mais tranquilo.
Semana seguinte, já
mais tranquilo, compareci a igreja. A chuva, tal qual meu objeto na semana
anterior, desaparecera. O pastor informou ter feito o comunicado um pouco antes
de minha chegada e ao final do culto, eu esperava a manifestação da alma
caridosa. E - acreditem vocês ou não - a pessoa que se dirigiu a mim não era
senão a saxofonista. Explicou-me o engano que ocorrera: suas irmãs pensaram
que guarda-chuva era de um de seus
irmãos, então pegaram-no sem ao menos confirmar. Pediu desculpas pelo
infortúnio. "Infortúnio nenhum", respondi polidamente, afinal, o erro
de suas irmãs fez com que ela precisasse se aproximar de mim. Não comuniquei a
ela, estes pensamentos, eles eram meus e a surpresa daquele contato me deixou
muito contente. "O problema" prosseguiu ela "É que como não
choveu hoje, não trouxemos seu guarda-chuva, o que faremos?" repliquei não
haver problema em pega-lo depois. E se chovesse depois? como eu faria para me
locomover? Essas perguntas que eu fazia para mim mesmo enquanto conversávamos
foi respondida por ela no instante em que propôs que eu a acompanha-se até sua
casa para reaver meu guarda-chuva por garantia. "Claro". Prosseguimos
conversando amenidades. O fato de haver possibilidade de conhecer sua família
adiantar-me-ia as coisas. Em sua casa, recuperei meu guarda-chuva - que
honestamente, deixa de ter importância a partir deste ponto. Ele cumprira sua
função e esta foi a razão de eu tê-lo colocado em tão grande estima no título
desta pequena, mas importante memória - e passei a conversar um pouco mais com
a saxofonista. A proximidade me acalentava. As irmãs dela, nos observavam de
soslaio entre risinhos divertidos, elas já haviam notado meu interesse.
Exagero não seria se
eu dissesse que a partir deste momento, parte do meu foco residiu neste passado
regido pelo guarda-chuva e a outra parte imaginando o próximo encontro.
Aconselho: escolha uma namorada da igreja, moça recatada, séria. De família. É
muito difícil errar. Não é o seu caso? Se sua namorada foi da igreja e atendia
a estes pré-requisitos e tudo deu errado eram possibilidades também. Regras
inexistem neste caso. Importante é sentir fazer sentido. Vale para vocês
também, mulheres. Encontram-se bons rapazes na igreja, se sua mãe a força em um
relacionamento e não dá certo também é da vida: coisas e causos.
Lembra-me de continuar o meu! A saxofonista me quase escapava na saída do
culto da semana. Sem tanto pudor segure-lhe pelo braço, suas irmãs cúmplices de
meu pensar apressaram o passo para propiciar um momento a sós.
"Estou gostando de você e adoraria tê-la como namorada", não foram
essas as palavras que eu dissera naquela hora. Quero apenas registrar que foi
direto. Tão direto quanto alguém respeitosamente poderia ser. Como seria?
"Você terá que falar com meu pai, se ele aceitar..." Costumes
carregados até o fim dos anos oitenta. Se você estiver a ler estas palavras nos
anos dois mil provavelmente achará esquisito. "permissão dos pais".
Eu não achei e prossegui com ela até sua casa para resolver o caso o mais
rápido possível. Os bigodes de meu futuro sogro me lembraram por alguns
instantes um coronel em uma novela de época. Poderia ser também a autoridade
daquela figura. Para este relato, importa a pronta aceitação da parte dele,
desde que seguíssemos algumas regras, a saber: estaríamos sempre sendo
observados. Poderia conversar com sua filha no portão até as 22h pois que ela
trabalhava. Ele delimitou também alguns dias específicos para estes encontros.
Aceitei a tudo sem muito alarde, não convinha desagradar ao pai naquele
instante, tampouco nos próximos! Prosseguíamos em obediência.
Tão logo estávamos prestes a iniciar o namoro de forma séria, confidenciei à
garota uma situação que até então eu esquecera: minha namorada em Macaé! Rapaz!
Ou moça a ler este relato. Naquele instante não soube se aquele olhar era de
raiva, de riso ou misto. Poderia também ser de alguma emoção não catalogada.
Teria ela pensado na canção de Luiz Ayrão "Se ele faz com ela vai fazer
comigo?" Era apenas surpresa? Ouvi um contrariado "Você também,
viu?" Sem pestanejar corri à cidade maravilhosa para fechar as pontas.
"Mas, o que houve?", "Qual o motivo?", expliquei a situação
rápida e detalhadamente - se há maneira de fazê-lo encontrei - a carioca compreendeu
tudo. Não fosse o caso eu nada poderia fazer. A volta para São Paulo
significava poder viver por perto da saxofonista. De que mais eu precisaria?
FIM
P.S: À vocês, tradicionalistas que desaceitariam o fim da história
com minha volta - aos que aceitaram a falibilidade da vida e das narrativas
afirmo: tome o fim como definitivo e esqueça ter começado a ler este adendo -
relatarei os acontecimentos ocorridos depois de meu reencontro com minha
querida saxofonista:
A obediência cega ao pai dela prosseguiu e com o passar, quem
não apreciou muito estas regras foram os meus pais. "Onde já se viu um
homem com mais de vinte e cinco anos precisar ser pajeado? É muito século
passado isso, você é um rapaz honesto filho, e a filha dele também já é maior
de idade" Entre outras, ouvi frases como esta. Certos, meus pais estavam.
Tanto que até mesmo minha namorada concordou com eles. É coisa dos melhores
romances, uma rivalidade entre famílias, pequenas exaltações. Os pais dela
desgostaram esta atitude. Quando se é superprotetor, enlaça-se aos filhos de
tal maneira! Depois de vinte anos é difícil uma separação pacífica. Vinte.
Estou falando há uns vinte minutos não? Certo, prosseguirei"
***
Oh ironias! Anos depois,
a carta que conservara a narrativa estava incompleta. Houve tempo em que
semelhante relato despertaria em mim a crença no amor. Tal engano com o
guarda-chuva era parte de um plano superior, quase uma prova da existência de
Deus, onipotente em seus desígnios a reunir os filhos perdidos para fins
maiores que a procriação. Seria a anulação de Schopenhauer suas colocações
acerca do amor? falácias, talvez até adquirissem um valor cômico para o grande
filósofo no pós-morte em que caminha ao lado de Goethe e Hemingway. Não seria
hoje. Quando parti pela cidade a indagar que acontecera com o narrador da
história sou surpreendido com a informação de que fora preso por assediar
mulheres. Mencionaram algo acerca do artigo 216-A, eu já não estava a prestar
atenção, todavia. Lembrei-me de quando este homem pedira para eu redigir sua
história que seria um presente para a esposa, um brinde pela longevidade da
relação. Encontrei até mesmo o endereço dela em um diário antigo. Alegrei-me
por nunca ter remetido o texto à tal saxofonista. Me não tornei cúmplice,
criador de álibis para fidelidades imaginárias.
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