domingo, 6 de setembro de 2020

Identidade

“Escritores estão entre os mais sensitivos, mais intelectualmente anárquicos, mais representativos, mais exploradores artistas. A habilidade do escritor para imaginar o que não é o eu, familiarizar o estranho e mistificar o familiar – tudo isso é um teste para o poder dela ou dele. As linguagens que ela ou ele usam (imagética, estrutural, narrativa) e o contexto social e histórico em que essas linguagens são indiretas e diretas revelações desse poder e suas limitações.” Toni Morrison – Conferências Massey em Harvard, 1990


A LETRA


Identidade (2020) 
Letra: Fabíola Passos Almeida
Música: Thales Salgado

Passei um tempo acreditando ser você
Me acostumei com seus desejos
Cumpri suas metas e te levei alto

Passei um tempo fugindo de mim
Escondi minha história e cicatrizes
Dessensibilizei meus sentidos e adormeci

Até que despertei

Mas já faz tanto tempo
Que o meu corpo não parece mais meu
Que a minha voz mudou o tom
Que não reconheço esse lugar

Despertei no escuro

Passei um tempo sem identidade
Procuro maneiras de juntar os pedaços
Será possível criar uma nova forma?

Que pareça tanto com você quanto comigo?


PENSANDO IDENTIDADES

     No livro A Dinâmica da Criação, o psiquiatra Anthony Storr buscou analisar mecanismos da criatividade. Nele, são discutidos motivos e condições que levam a atividade criativa a se manifestar. Seus últimos capítulos são dedicados à “busca por identidade” e “integração” e auxiliaram em minha elaboração sobre a composição.
A autora dos versos
     Em determinado ponto Anthony afirma que “É fácil uma pessoa criativa, produzindo uma obra depois da outra – obras talvez tão distintas umas das outras como a Sétima e a Oitava sinfonias de Beethoven –, possa ter dúvidas sobre a continuidade de seu ser, mesmo que um observador isento possa perceber tal continuidade com absoluta clareza.” 
     O trecho acima é importante para esta composição, pois, foi apenas ao ler uma narrativa em prosa escrita pela psicóloga Fabíola Passos Almeida 5 meses e 28 dias após a letra, que a faísca de interesse para musicá-la surgiu para mim, diferente de versos como os de Beleza Parasita e Muitas em Mim que respondi com uma melodia horas depois de visualizar os versos. Na primeira leitura que fiz, ainda em fevereiro, pontuei que me parecia uma “despersonalização do eu-lírico” como se o mesmo estivesse “despersonalizado, se enxergando em terceira pessoa” e ela replicou que mais seria mais um “eu fragmentado” uma vez que, na psicologia, a “despersonalização” pode ser diferente.

A MÚSICA

     Para esta composição meu interesse foi traçar uma linha coerente na narrativa de meu cancioneiro. Assim como a primeira composição que fiz em vida (Um Caminho para o Céu, com letra de Bruno Barduchi Oliveira) contava apenas com os acordes “Gm F Cm Eb D” utilizei em Identidade “Eb7 Dm Gm (Gm7) F Cm A7” não é meu interesse aqui debater questões teóricas. Apenas pontuar que, mesmo em tons diferentes, houve uma procura consciente mais de intermediar minhas próprias composições que transmitir uma emoção específica.
     Na experiência do músico e terapeuta transpessoal Arthur Belino “os principais lugares que a música ocupa (para ele) são de cura e de integração com o mundo e com o outro”. Ele explica que no processo de composição ele vai se compreendendo e que “as melodias que surgem neste processo de composição expressam bastante do que há naquele momento.”Sobre esta continuidade na identidade criativa, Storr pontua:

“Repassando anos de trabalho, um homem pode se surpreender ao descobrir o fio escarlate de sua identidade ao longo de uma série de obras que lhe pareciam muito diferentes na época em que foram concebidas. Ele também descobre com frequência que ideias que a ele pareciam ter ocorrido apenas ontem já estavam implícitas em trabalhos anteriores, e tiveram precursores óbvios que ele deixou de notar. Na verdade, pessoas criativas geralmente são seres mais contínuos do que pensam.” p.383

     Quando comentei com a autora acerca das conexões ela mencionou que realmente há uma conexão entre os textos, mas que ela mesma já não tinha o primeiro em mente. Dessa forma, pode se dizer que há continuidade tanto para a obra dela, quanto para a minha. Ainda que, no meu caso, tenha sido uma escolha consciente.
      Fiz o possível para manter o texto na íntegra, salvo inserções ou omissões pontuais a fim de manter o verso na melodia. Um dos pontos mais difíceis foi encaixar “dessensibilizei”, além de ser um ponto importante na letra, queria ter uma composição com a palavra, pensando em “Desensitized by TV” presente em Boom! da banda System of a Down. 

IDENTIDADE EM PROSA
(Fabíola Passos Almeida - 2/08/2020)

Acordei e me dei conta: algo transtornou meu quarto.
Olho ao redor na tentativa de me situar, todas as coisas estão fora do lugar, só as paredes permanecem.
(Paredes cinza, ciano e pêssego).

Logo percebo: eu também permaneci aqui. Não com as roupas que eu lembro, não com os cabelos penteados, mas estou aqui ilesa. 

Ilesa? Ilusão. O quanto de mim se quebrou nesse quarto? Sinto o corpo exausto, a cabeça pesada, dores. 

Sobramos eu, as paredes, as dores, a bagunça e a dúvida: o que aconteceu?

Manuscrito da letra, 03/02/2020
Procuro um espelho, encontro. Inteiro, mas no chão. Coloco-o no lugar (ou melhor em algum lugar em um ângulo mais adequado). Encontro uma figura pouco nítida, preciso apertar e esfregar os olhos até chegar ao foco possível. 

O tremor das minhas mãos anuncia o assombro que me causa olhar para a figura que avistei. Em "um milímetro de um segundo" uma incômoda constatação aterriza em minha lembrança... pelo estômago começo a congelar até os ossos, tremor, calafrios, confusão mental. 

Olho para o espelho, mas não me vejo. Na verdade, revelada no reflexo está ela com seus olhos cintilantes de energia, o sorriso aberto exagerado, e sua obsessão de ser vista. Fecho os olhos, abro, observo minhas mãos com a sensação que elas não me pertencem. Mais calafrio, náusea, angústia.

Angústia que vira água, grito e que tenta sair de mim. Mas quanto mais tenta sair maior fica. 

De volta ao espelho eu respiro. "Calma, calma, calma, volte". Olho e encaro. Aos poucos a nitidez revela minha boca, meu queixo, nariz, meus olhos. Ela se foi. Culpa e alívio me ajudam a fazer a lista mental de como vou arrumar essa bagunça. Mais um recomeço.~

FRAGMENTOS DA IMAGEM

     A leitura do segundo texto também me informou uma possível chave de interpretação para preparar a ilustração que acompanha este post. Após a visualização de animações que fãs de Hamilton criaram nos últimos anos – quando, apesar do sucesso, o acesso a gravações do espetáculo era mais restrito – pensei em, também, fazer uma animação. 
    Assisti alguns tutoriais, verifiquei até o número de frames necessários para um vídeo de três minutos com uma movimentação, que eu julgasse, minimamente agradável. 195 quadros. Foi apenas quando comecei a recortar o canson da primeira gravura que me dei conta das horas que isso exigiria. Decidi realizar, então, uma colagem em papel fotográfico.

A ilustração original teria mais referências à Björk
Curiosidades: 

Os cabelos foram inspirados na obra Uzumaki, de Junji Ito, e as cores em Sunny, um dos quatro reis celestiais em Toriko, de Mitsutoshi Shimabukuro. A máscara da personagem foi inspirada levemente nas maquiagens da drag queen alemã Hungry, responsável por diversos dos make-ups de Björk.


Outros elementos, como o voo 815 da Oceanic Airlines ao fundo, vieram por, quando finalmente consegui tocar e cantar a canção, um avião ter passado e estar registrado na canção.

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