quinta-feira, 23 de março de 2017

Viver

Ao escrever poesia, o que procurei fazer foi resolver problemas internos meus, problemas de ascendência, problemas genéticos, problemas de natureza psicológica, de inadaptação ao mundo, como ele existia. Foi a minha autoterapia. O resultado é esse. Não tenho maiores pretensões. As modas mudam muito. Daqui a cinco ou dez anos, terei desaparecido e virão novos poetas, novas formas de poesia, novos critérios, novas tendências. Amanhã ou depois, daqui a cinqüenta anos, um sujeito diz: "Olha, descobrimos um poeta chamado Drummond, que tinha uma pedra no meio do caminho. Que coisa curiosa". Ou "que coisa chata". Drummond em entrevista a Zuenir de Andrade

Foto: Estefan Radovicz / Agência O Dia




Viver (2017)
(Carlos Drummond de Andrade, em As Impurezas do Branco)

Mas era apenas isso,
era isso, mais nada?
Era só a batida
numa porta fechada?

E ninguém respondendo,
nenhum gesto de abrir:
era, sem fechadura,
uma chave perdida?

Isso, ou menos que isso
uma noção de porta,
o projecto de abri-la
sem haver outro lado?

O projecto de escuta
à procura de som?
O responder que oferta
o dom de uma recusa?

Como viver o mundo
em termos de esperança?
E que palavra é essa
que a vida não alcança?



   Era um daqueles momentos à toa numa tarde de sábado, os dois mergulhando em smartphones quando Thales começou a murmurar algo consigo. Perguntei do que se tratava e comentou que um de seus ex-professores postara um poema. Fosse qual fosse a razão ele ouviu a melodia dos versos e tentou traduzi-la. Não era a primeira vez, já musicara o XIV dos Cantares da perda e da predileção de Hilda Hilst, Ismália de Alphonsus de Guimaraens e a tradução de Renato Suttana para Um Sonho, das Canções da Inocência de William Blake. Ele que me perdoe, tenho cá pra mim é um recurso que denota uma certa preguiça para a escrita de uma letra ou uma autopromoçãoparasitaria conveniente, afinal, há uma série de poetas consagrados e utilizar suas criações possibilita uma divulgação massiva mais prática que usar o próprio nome do zero. Seja como for, isso não impede essa ação de existir como um exercício criativo.
     Em 2016, em entrevista à rádio CBN, Toquinho afirmou que, para ele, uma letra pode ser poética mas não é um poema. Uma letra de música é mais frágil, mais simples, disse ele: "a poesia de uma canção só tem razão se ela for cantada". Outros compositores seguem uma tradição de poemas musicados. Fagner converteu Traduzir-se e Cantiga para Não Morrer de Ferreira Gullar e Fanatismo de Florbela Espanca. Além do caso de apropriação indébita de versos do poema Marcha de Cecília Meireles nos versos de sua canção Canteiros. O compositor gaúcho Vitor Ramil lançou no ano de 2010, Délibáb, um álbum em que reuniu milongas compostas com poemas do brasileiro João da Cunha Vargas e do argentino Jorge Luís Borges. O compositor argentino Pedro Aznar, que produziu dois discos de Ramil, Tambong e Longes, também tem um registro intitulado Caja de Música com poemas de Borges musicados. É um tema amplo. 
     No caso do poema de Drummond não houve conceito além da identificação imediata descrita no primeiro parágrafo. Curiosamente, no momento em que começou a gravação, Thales insistia em cantar "sem haver um passado" no lugar de "sem haver outro lado" e parou a gravação diversas vezes até chegar ao resultado no player. Foi apenas ao revisar a canção que percebemos que ele substituiu por três vezes "projecto de abri-la" por "pro jeito de abri-la" já não havia tempo hábil para mudanças, assim ficou.

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