domingo, 30 de abril de 2017

Beijo Estranho

"Essas músicas abrem uma nova janela na minha alma e por ela entra um ar que eu nunca havia aspirado. Sinto uma alegria imensa e bastante natural. Fico livre de diversas amarras da realidade e parece que o meu corpo está flutuando alguns centímetros acima do chão. Para mim, originalidade deve ser assim. É muito simples. Outro dia eu estava lendo o New York Times (2/2/2014) e encontrei o seguinte comentário sobre o surgimento dos Beatles: "Eles produziram um som novo, enérgico e claramente característico deles". É uma definição bastante simples, mas talvez seja a mais compreensível sobre originalidade. "Ser novo, energético e claramente característico." - Haruki Murakami, Romancista como vocação

Capa do álbum, criação de Juan Pablo Mapeto

         Foram-se mil trezentos e quarenta dias de Muito Mais que o Amor. Nesse meio tempo, Reginaldo Lincoln firmou seu lado compositor em seu Nosso Lugar (2014), Hélio Flanders se vestiu de tragédias portenhas n'Uma Temporada Fora de Mim (2015); Pudemos experimentar mais da voz de David Dafré nas experimentações em To Dorothee from Leonard (2016) e a hipnótica Fernanda Kostchak mostrou sua versatilidade fosse participando em show da banda psicodélica Violeta de Outono ou realizando, em seu duo Elektra, a trilha sonora da Night Run SP. A banda também aproveitou para registrar o sucesso da turnê em seu segundo dvd, e, como representasse um rito de passagem a banda passou a apresentar duas novas canções. Quando eu Cheguei na Cidade e Quente é o Medo. As últimas apresentações, em formato acústico, não permitiam vislumbrar a trilha a que a banda se dirigia. Que sensação melhor saber que, independente do que viesse, seria bem-vinda surpresa? Sim, há quem argumente que a expectativa é a mãe da decepção. Não é o caso com esse lançamento. A banda presenteia o mundo com um doce Beijo Estranho.
         Bons discos instigam desde o primeiro momento, o design da capa é belíssimo: num momento de pareidolia Rorschachiana, enxerguei a imagem de um artista derramando seu sangue em silêncios azuis. Com a tinta de suas veias ele roga por uma renovação. Garantida pelos morcegos cor de pêssego alcançando a cena. Se pensamos, claro, pelo ponto de vista da cultura chinesa que tem os quirópteros como símbolos de bençãos e boa sorte. Gosto como entre o equilíbrio dos cinzas e azuis há os vermelhos centrais. Estaria o personagem em espécie de nuvens? Posso estar a superanalisar; sem mais delongas, adentremos o disco: quando o vídeo de Beijo Estranho foi lançado semanas atrás, tivemos uma amostra do que estava por vir: começando com o piano passando pelo violino que passeia do lado esquerdo ao lado direito do áudio, praticamente criando uma resposta sensorial autônoma do meridiano involuntária.  A letra entregava uma chave importante de interpretação: a busca pelo equilíbrio do Ser. O eu-lírico descreve sua jornada de inquietação com os próprios rumos, o medo de olhar pra si mesmo. Destaque para as vocalizações de Flanders. É um upbeat - reflexo da abertura para influências de acid rock e hippie glam, como descrito na programação do Sesc? - e abre o disco soando diferente de tudo o que a banda fizera antes.
         Se eu fosse apostar uma música para encabeçar o repertório nos shows certamente seria Todas as Cores, sabe aquela coisa de "canta uma canção bonita falando da vida em ré maior" da Intuição de Oswaldo Montenegro? Começa com a gaita, violino, as vozes de Hélio e Reginaldo se fundem em algo que só pode ser definido como Vanguartiano. A guitarra de Dafré domina essa faixa que, diferente dos sentimentos da anterior que flutuavam entre despeito e resignação, fala de acreditar no amor e seguir em frente sem medo. A confiança mútua se apresenta como trilha para seguir por qualquer salto no escuro. Us against the world, Bonnie e Clyde, "ninguém vai nos parar". Na faixa seguinte finalmente o verso de Helio e Reginaldo no Sesc Bom Retiro em outubro de 2016 faz sentido. Naquela vez, depois da segunda música eles cantaram "o inverno acabou" e disseram que o público em breve entenderia. Felicidades principia com as pétalas, delicadas notas no teclado caindo e o trompete de Hélio num contexto alegre - ou muito me engano ou é a primeira vez. O arco de Fernanda costura os versos. O brejo das almas faz lembrar de Drummond. Whitmânicas visagens converte as Folhas da Relva em matéria prima. A influência de WW avança na criação.  Gosto de sentir um quê críptico na letra, seu final, todavia, carrega uma verdade: O amor é mais simples do que amar.
         "Não sentir vontade que não seja de infinito" me lembrou do Verbo no Infinito de Vinicius de Moraes. E o Meu Peito Mais Aberto que o Mar da Bahia é uma faceta do Vanguart mezzo-dançante. Dá para flutuar com as cordas, vocalizações e sair guiado pelo groove do baixo. Uma declaração que desemboca num cântico ao final. Tem ares de poder se tornar uma das favoritas dos fãs nesta nova safra com versos tais "E eu só queria te guardar/Onde eu pudesse ter/Sempre que eu sentisse medo/Tudo então seria pra dizer/Que o teu amor sem fim/Já mudou a minha vida". Homem-Deus traz Julio Nganga no cravo e o arranjo do lendário Wagner Tiso. Mais uma vez o duo Reginaldo/Hélio comandando a atmosférica canção; com imagens tais "quero água pra deitar". Em entrevista recente ao Estado, Flanders pontuou que esse não é um disco que será fácil para alguém que costuma seguir o trabalho da banda. Pode parecer pretensão, mas, no meu caso julguei ser justamente o contrário: se no disco anterior a intenção criativa era parar de fazer metáfora e falar o que as coisas são. Beijo Estranho se sobressai por apontar um equilíbrio entre as líricas dos álbuns anteriores.

Foto: Felipe Ludovice
         Quando eu Cheguei na Cidade já foi definida por Hélio como um rock-psicodélico-deprê-fantasmagórico. No show de lançamento de Muito Mais que o Amor ao vivo esta foi a primeira composição nova a dar as caras. Àquela altura com Júlio Nganga no orgão. Após a saída do baterista Douglas Godoy, Júlio dividiu as gravações do instrumento no álbum com Loco Sosa. A letra me lembrou o microcosmo de Nessa Cidade. Se naquela o eu-lírico explicava haver uma casa que ele não podia mais entrar, agora, há um sujeito se dirigindo a alguém nos termos "hoje já não tens a chave" e segue "e o que foi teu já é meu" afirmação que vai de encontro ao verso "boa parte de mim vai embora/a sua parte que hoje sou eu". Fantasmas do passado assombram o presente. Elas são parte da vida de um personagem em vários momentos: quando ele sai pra cidade, quando ele chega, e até mesmo quando ele foge e se depara com "todo o fim é bom" nos neons. Na cidade vanguartiana orbitam personagens diversos. Indo além, em Demorou pra Ser havia menção à chuva, âncora de lembranças em sua narrativa. As guitarras de Dafré explodem após o prelúdio da angústia ao violino de Kostchak. Em Eu Preciso de Você a banda apresenta uma doce balada pop, numa letra não-óbvia. É aquele momento de dizer que compositores menos talentosos não alcançariam a sutileza presente. A paixão e o ardor são desenvolvidos em sua curta duração. Se a alma não sente saudades de nada, os corpos se dispõe à concretude do enlace.
          Foi sozinho o meu caminho, quem ia cuidar de mim melhor que eu? Casa Vazia está repleta de expectativa. Haverá mudança? Se lar é onde o coração está, onde está o coração de alguém que não tem ninguém? É como a frase-motor da obsessão do jovem Vilnius Lancastre no romance Ar de Dylan: Quando escurece precisamos sempre de alguém. Você acredita num sentimento maior e anda pelas ruas o esperando, sem de fato compreender qual é o objeto desta espera, como saberá reconhecer? Há quem me pergunte a razão de gostar tanto tanto de Vanguart. No início era mais subjetivo e estético. No ano em que lançavam o primeiro álbum eu começava a compor e a certeza de que se podia fazer canções refletindo a próprio-Eu, independendo do resultado. Com o passar dos anos a identificação com o trabalho só fez crescer. Quente é o Medo também vem sendo apresentada pela banda desde o lançamento do segundo dvd. Naquele dia, o trompete fazia parte do arranjo. Será que pode vir como uma surpresa no decorrer desta nova turnê? Essa é uma das curiosidades que a audição suscitou. Voltando à canção: a sintonia entre a guitarra e o violino merece destaque nesta faixa, sua letra vem como um contraponto às incertezas. Aqui há entrega e partilha. "o que é meu é seu e esse mundo é nosso". O medo é visto como propulsor de transformações. 
       Quem é família sempre aparece. O tecladista e membro fundador Luiz Lazzaroto entrou em recesso da banda há pouco mais de um ano. Ele dá as teclas em Menino. Era 1985 e The Smiths já pediam que não se esquecesse as canções que nos salvaram e preencheram a vida. Menino é assim, boia salva-vidas, tábua de salvação ou outra metáfora a sua escolha. Quantos sonhos deixamos escorregar pelo caminho por receios diversos, julgamentos, pressões... Há uma primeira vez para tudo. Será? Talvez as palavras não devessem doer. As questões do tempo podem se aplicam a muitos campos da vida. Há uma frase que ecoará a cada pensamento agora: vai, e faz o que você não fez!
           Eis então a melhor faixa de encerramento entre os quatro álbuns do Vanguart: Pancada Dura. Há sempre alguma partida. Poetas inventam viagens, vão embora sem saber para onde, vão embora levando o amor consigo. Vão, mas voltam! Vão viver o que for mesmo que os faça chorar. . A canção contempla um pouco de tudo o que a criação é capaz de atingir. As guitarras nos alvejam antes de podermos sequer imaginar o piano ou o dedilhar violonístico, há o baixo sempre urgente, a voz catártica. Como em outros momentos há Deus. A investigação da vida prossegue num continuum. No instante em que o trompete chega o arco do violino já está a deslizar nos levando a navegar por um rio escarlate e a canção se encerra no exato instante em que desejamos mais. A espera pelo disco findou, e, o resultado não poderia ser melhor. A identidade coletiva da banda manifesta esmero e esboça novas possibilidades para o futuro, ao tempo que apara arestas passado num todo coeso; O melhor álbum da banda.

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