sexta-feira, 8 de junho de 2018

Milonga de Partida

"Conheci um paulista que disse que depois que leu “A Estética do Frio” ele se deu conta de pensar nas coisas dele, de São Paulo, de como ele se via dentro do Brasil, dos preconceitos que ele tinha em relação a isso ou aquilo. Essa coisa de tu tirar o centro do lugar é muito legal, essa coisa do “não, não estou à margem do centro, isso aqui é um centro”. Tu pode determinar o teu centro em qualquer lugar: se tu é do Piauí, tu pode enxergar esse centro. Eu acho que todo mundo que cria, por mais que tu esteja ligado com o mundo — e eu acho que tu tem que estar ligado com o mundo, sabendo tudo — tu tem também que saber o que está acontecendo na tua rua; o universo passa na tua rua. Tu tem que estar ligado plenamente nas coisas." - Vitor Ramil em entrevista para o site Screamyell em maio de 2017

Gravação feita em 2013:

Milonga de Partida (2013)
Letra e música: Thales Salgado 


O rio que nunca cruzei 
Caudaloso vi findar 
Um fantasma do que sou 
A noite vem me lembrar 
Quando criança fui
O hino me fez jurar 
Que eu ficaria ali 
Por tanto amar o lugar
E agora que cresci 
Acabei por me mudar
Quanto de mim ficou 
Nas terras de Arujá? 

Estrelas, girassóis
E tulipas nos jardins 
A primeira canção 
Já é mais de uma em mim
Sem falsa modéstia
Eu penso em visitar
Numa memória distante
Me transportei para lá 
E hoje quem ficou 
E não mais me vê passar 
Apaga tudo o que fiz 
Das terras de Arujá


        Quando olho para as composições feitas entre 2007 e 2013 percebo não haver marcas geográficas aparentes. Ainda que, no início, o transporte das canções entre as cidades de Arujá e Itaquaquecetuba tenha sido representativo para o que viria depois, não houve necessidade para refletir sobre isso. Em 2007 Memórias Distantes menciona emprestar palavras “de algum lugar” mas não esclarece. Em 2008, Canção para ti versa “as asas multicoloridas da joaninha refletem pela mata o brilho dos vagalumes” ainda assim é mais um reflexo do deslumbramento com a faixa de abertura do álbum Matizes de Djavan.
Arujá é a cidade natureza mas, a mata na canção seria a mata arujaense? Teria o inseto sido avistado na estrada da P.L., nos arredores do ginásio no Jardim Rincão ou até mesmo nas proximidades do Macaxeira antes de erguidas suas grades? Apacresce, de 2009, inicia com “Eu a vejo passear graciosa, pela estrada vai sozinha” e, embora esse avistar tenha se dado em algum lugar entre a Santa Catarina, a Amapá e a Piauí o fato não influencia a letra.
         A letra de Meio-dia (2010) menciona um velho deitado no banco próximo à fonte na praça do coreto, alguém realmente avistado mas num espaço em comum com uma série de outras memórias. A questão de endereços foi parte do que constitui a letra de Pode Ser em que um eu-lírico declara “a cidade é nossa, nada se perdeu”. Morando numa cidade pequena, coincidências são lugar comum. Certamente alguém se esbarrará no centro.



       A mudança de cidade criou a necessidade de pontuar uma canção com algo mais concreto: quanto de mim ficou nas terras de Arujá? Assim, sem me valer de acrósticos era premente mencionar o rio Baquirivu, e o hino da cidade, composto por Toninho da Pamonha e oficializado em 1985. Em agosto de 2017 enquanto lia o livro Arujá: Cidade Natureza de João G. Machado talvez me tenha passado pela cabeça o Encontro das Nações e minhas interações com a festa. Primeiro a criança tomando noção da existência de outras culturas, passando pelo adolescente buscando estar “onde todos da cidade estavam”, mais tarde como músico se apresentando junto a meus amigos por dois anos seguidos e, hoje em dia, como o visitante da cidade vizinha. Assim, foi um alento saber no início da semana que a festa, como patrimônio municipal, não deixaria de ocorrer em eco resultante da greve dos caminhoneiros que a postergou.
         É provável que o espaço e o lugar influenciem o desenvolver da arte individual. Em 2013 ouvindo e lendo sobre a Satolep de Vitor Ramil fui tomado da vontade de escrever sobre onde era a casa, é por esta influência sulista que me veio a ideia de nomeá-la "milonga". A cada visita encontro algo novo por lá. Arujá é cidade mutante, mutável e até o que nasceu memória tem fim. Mas ela também vive em quem, por lá, passou.

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