Irrompeu
com a caixa do DVD em mãos, a vida no tráfego o tornou exímio conhecedor dos
labirínticos corredores asfálticos, respirando noticiários radiofônicos desde
antes das 5h da manhã. Aquele fim de tarde era distinto: as vezes uma canção
emergia da FM. Por conta de Telegrama meu pai adquirira o
Líricas me apresentava, naquele instante, a Zeca Baleiro.
Compositor maranhense,
confluência de amor e amigo, escárnio e maldizer. Partiria dali com uma série
de canções no imaginário: Skap, Meu amor, meu bem me ame, Banguela, Tem
que acontecer. Há um termo para designar as pessoas que julgam sem
conhecer? Havendo ou não já me enquadrei mais nele do que hoje, dizia não
gostar de Bob Dylan, mas nunca o conhecera de fato. Ao ouvir sua versão para
One more cup of coffee gostei tanto que me lancei, ávido a internet para
procurar quem era o compositor, qual não foi minha surpresa? Oh Águas antes
inconcebíveis em que mergulhamos! Lembro de um show no Sesc Santo André –
fevereiro de 2008 se não falha a memória – em que fui acompanhado por dois
Fabios. O pai, e o amigo e companheiro de banda. Os dois volumes do Coração do
Homem Bomba se firmaram como álbuns multi-climáticos, a utilização de vinhetas
também chamou atenção como Aquela Prainha ou Jesus no
Cyber Café do Inferno entender os bailes de Baleiro foi fundamental
para apreciar melhor o artista, afinal, tendo um primeiro contato de natureza
intimista foi um leve choque se deparar com faixas como Você não liga
pra mim ou Datena da raça. Tomei como mantra os versos de Samba
de um janota só “Tome uma atitude sua besta/Seja uma besta com
atitude/Pode ser uma atitude besta/Mas que seja uma atitude” e recebi em Tacape a
primeira menção ao lendário Carcará.
Depois vieram a Virada Cultural e a
oportunidade de conhece-lo pessoalmente na biblioteca Alceu Amoroso de Lima em
2009 quando ele participou com o poeta Celso Borges do projeto ‘Parceria: a voz
da poesia’ em que tratavam dos diálogos possíveis entre música e poesia. Não
consegui ingressos e passei o evento todo em frente a biblioteca acompanhado
por outros fãs. Havia ainda espaço na biblioteca, um ou outro acorde ainda era
captado por algumas das frestas laterais do prédio. Ao fim do evento, enquanto
a provável centena de pessoas saía, entrei no contra fluxo para procura-lo. Ele
afirmou não ter ciência de quantas pessoas haviam ficado de fora, mas foi
solícito, tirou fotos e deu autógrafos a todos os que não puderam acompanhar o
debate. Anos depois num dos efeitos retroalimentares por apresentar Baleiro a
minha amiga Juliany fui convidado por ela a acompanhar o lançamento de seu
primeiro livro de crônicas, Bala na Agulha na Saraiva do
Center Norte. Como haveria um bate-papo decidi tirar uma dúvida relativa ao que
eu chamei de A Trilogia da Alma: Em Babylon ele diz “Vou botar
minh‘alma à venda” seguindo com Ela falou Malandro e seu verso
“até já botei a minha alma à venda” fechando com Balada do Asfalto “Há
alguns dias atrás vendi minh’alma a um velho apache”. Essa ligação era
proposital? Lembro de sua surpresa com a pergunta, e a sagacidade na réplica,
essa vontade de desvendar a alma, de cantar o que havia além dos véus de nossa
existência carnal era parte de sua curiosidade como compositor, isso se
refletia em sua música, de maneira inconsciente. Lembro de uma conversa na
UniSant’Anna em que a professora de inglês dizia ter tentado falar com ele ao
menos uma vez, sem sucesso. Assunto que surgiu quando, numa aula em 2011 ela
trouxe poemas traduzidos de Emily Dickinson, entre eles I’m Nobody já
musicada por ele.
No ano seguinte, O Disco do Ano tinha,
já no título, um deboche seguindo a linha do que Titãs fizera em 2001 com ‘A
melhor banda de todos os tempos da última semana’. Há sempre essa intenção de
encontrar “the next big thing”, mais que isso, professa-la por parte de alguns
membros da imprensa, em suas listagens arbitrárias. Baleiro se
reuniu a Chorão em O Desejo, rap que poderia ser encarado como caminho natural
depois de composições de ambos como Piercing e O Preço. Dentre as tantas, uma
pequena pérola: Felicidade pode ser qualquer coisa.
Se você quer ser feliz, tente
Felicidade pode ser só ilusão
Mas se o coração não mente
Felicidade pode ser qualquer coisa
Uma cachaça, um beijo, um orgasmo
Um futebol na tarde de domingo
Uma canção de Roberto e Erasmo
Vida eterna (vida eterna)
É a vida dos sonhos
Deus é o tempo
Sonhar é a salvação
O sonho de Lennon morreu
O meu não
O sonho de Lennon morreu
O meu não
O sonho de Lennon morreu
Eis que, em um dia de junho, procurando
com minha namorada pelo último cd dos Chili Peppers me deparo com Era
Domingo. Grata surpresa! As onze músicas começam com a faixa homônima.
De acordo com Baleiro: “É uma canção sobre (...) a sobrevivência da alma no
mundo contemporâneo” Eis a alma em voga. Ares do mellotron Beatle de Strawberry
Fields Forever ou seriam as cordas de She’s leaving home? Nada. A canção ecoa
os outros Blues do próprio Baleiro , e essa questão de identidade sonora
envolve o ouvinte desde o início. Ela parou no sinal é
ska-mariachi com um protagonista tão inseguro quanto o de Bola Dividida de Luiz
Ayrão. A moça dá bola e o eu-lírico cheio de medos não avança. Agosto, o
asfalto, o ceú negro e até mesmo Giorgio Armani receberam de Baleiro uma
“balada”. Sua temática avança com mais uma: A Balada do oitavo andar com
seus versos em que o vento personificado diz a um desolado personagem que “nada
respira sem que roce a pele em carne viva a dor e tudo espera pela mágica da
primavera flor”. Se na faixa do álbum anterior a faixa O desejo tinha entre
seus versos a forte sentença “Você se olha no espelho/E vê que tudo é mentira/A
vida é uma mentira/Felicidade, mentira/O amor mentira covarde/Olha pro
relógio/E vê o quanto é tarde/Tarde demais pra ser feliz”, De mentira retoma
o tema com o conselho: “A vida é dura irmão cheia de fúria/Amor dor e paixão
cobiça ira/Mais uma razão pra não viver a vida de mentira”. A vida pode nada
significar ou conservar misteriosos desígnios, mas é só uma. Evoca então os
famosos versos de Pessoa em sua Autopsicografia de 1931. Agora, quanto de nossa
dor é verdade?
Homem só expande a
dialética almática de Baleiro, o eu-lírico desalmado é, na verdade, a multidão
resignada e apática, fruto das mentiras contínuas de seus suicídios cotidianos.
Depois de tantos sacríficos, olha para trás, e ao ligar os pontos se percebe
“como um Cristo demasiadamente humano, ódio a Judas, Inveja a Barrabas”. É
reiterada a apatia metalinguística já que homem só tem a participação da
cantora Ellen Oléria. Desejo de matar tem uma das melodias
mais divertidas e poderia facilmente ter um clipe dirigido pela dupla
Rodriguez/Tarantino numa mistura dos timbres de guitarra das trilhas James Bond
com os metais de Era uma vez no México se passando numa cidade qualquer do
Brasil. Parece louco, mas não é. Nosso Charles Bronson tupiniquim é narrador
não confiável como Bentinho, desejando matar alguém como o próprio Santiago.
Ele diz ter sido feito de bobo. Seu desejo de matar não surge por necessidade
de vingança, e isso por despeito. É uma faixa divertida, mas carrega a carga
dramática de histórias que vemos nos jornais a cada dia, quando o desejo de
matar deixa o mundo das ideias. O arranjo de cordas vem para resolver a tensão
construída na faixa anterior no reggae solar, O amor é invenção,
ainda assim, o(a) interlocutor(a) não acredita no amor, o vendo como mero
produto criado para satisfazer industrias, sejam elas o cinema, a música ou a
publicidade. Na impossibilidade do amor, melhor prezar a dor e o prazer.
Deserta é uma das únicas
parcerias dessa leva de canções, o congolês Lokua Kanza, com quem Baleiro já
havia tocado em conjunto no Rock in Rio de 2011, canção que, ainda que despida
de seu arranjo, teria a força do piano que a orbita. Tem um dos melhores
grooves de baixo. Aqui surge a esperança, a vontade de que o outro(a) “pegue
sua mão e o leve para onde quiser”. Pequena canção tem
temática similar à de Boi do Dono. Tudo o que se deseja dar a pessoa amada, mas
não se pode. Faz sentido que seja a canção mais antiga do disco. Todas as
outras composições foram feitas no período de três anos que antecedeu o disco. Pequena foi
resgatada e inserida como fina flor, delicada em meio ao cinza. O último
suspiro antes da segunda parceria. Desesperança um rap feito
sobre um poema do maranhense poeta romântico Sousândrade. Os versos lancinantes
“Eu queria poder rir e celebrar o amor beber brindar a vida/Esquecer a funda
ferida só por um segundo/e crer que enfim o mundo é um lugar gentil/pros meus
pros seus/Eu queria que Deus acordasse do seu sono profundo”. A faixa ainda
conta com o compositor Paulo Monarco. Partindo desse desassossego, Baleiro
coloca a crônica contemporânea Ultimamente Nada aglutina
diversas paisagens do universo baleireano dos backing vocals aos grandes
corais, bandolins, a urgência de Soneto Erótico. O compositor reflete acerca do
afastamento dos amigos, mergulho no trabalho, o piloto automático. Mais uma
vez, Baleiro captura as angústias das multidões sem alma, mas descontrai sem
desconstruir. Ainda que não se sinta nada e mesmo as paixões sejam ficção,
n’algum lugar, ainda há prazer!
NÃO SEI SE MUITAS PESSOAS LERAM ISSO, MAS ADOREI SEU TEXTO BEM ESCRITO E TÃO DESCRITIVO QUE ME DEU ATÉ UM ORGULHO BOBO DE SER FÃ DE ZECA BALEIRO E ESSAS CANÇÕES CAUSAM UM ORGASMO NA ALMA, DESCREVEM BEM NOSSA HUMANIDADE UM TANTO PERDIDA!
ResponderExcluirFico contente que você tenha gostado Rubens! Hoje ele estará na Livraria da Vila as 19h30 e tentarei fechar o ciclo deste texto entregando uma cópia para esse grande artista. Muito ainda pode ser dito. Em breve teremos posts novos. Muito obrigado pelo comentário!
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