quarta-feira, 29 de junho de 2016

The Getaway e as metamorfoses do tempo

“Ao telefone um jovem executa uma versão simplificada de I Could Die for You para seu primeiro amor. No pátio da escola um grupo de amigos se diverte aos passos de Elvis enquanto bradam “California rest in peace”. Caminhando para o trabalho, um homem qualquer percebe querer escolher o amor em vez do medo. Corta para um universitário que decide assistir ao show do Red Hot Chili Peppers no mesmo dia de um seminário valendo 80% de sua nota: àquela altura ele mesmo já compusera uma canção dizendo ‘daria a vida por você’. Com tantas histórias permeando uma vida, ele se perguntava quais matizes The Getaway acresceria a esse caleidoscópio. ”          
Coalition II de Kevin Peterson

          Lendo em entrevistas quanto a escolha do primeiro single ter sido de Danger Mouse percebi o quanto desconhecia o trabalho do produtor – à parte Demon Days e Attack & Release – mesmo assim, chamou atenção a ideia de ele buscar um clássico em cada canção. Em entrevistas Anthony afirmou que a banda possuía dezenas de músicas prontas quando o contataram e a instrução de deixa-las de lado para descobrirem o que poderia nascer no estúdio foi uma surpresa; vencida a relutância inicial, Flea afirmou que o grupo foi estimulado a pensar a composição em camadas e essa sistematização do processo criativo rendeu, entre outras, We turn Red. A confiança no trabalho do produtor se mostrou acertada para o foco percebido nas canções e letras.
          Dark Necessities surgiu no início de maio e meu sentimento era de que a banda estava a se mostrar da melhor maneira, diversas audições trouxeram a impressão de ali haver um pouco de tudo que gostava na banda. O baixo bem marcado com a bateria, os timbres de guitarra, os versos, por vezes crípticos, mas sempre melódicos de Anthony Kiedis. Esses anseios obscuros permeiam o álbum, à primeira vista talvez sejam o tema norteador, o que carregamos interfere em cada interação que fazemos, por mínima que seja.
The Getaway ser lançada no final de maio foi uma surpresa, embora, lendo sobre ter havido um impasse quanto a escolha do primeiro single e esta canção ser a escolha da banda, é de se entender tenham decidido disponibilizá-la antes do lançamento do cd. “Entregue-se a coragem interior”. Esse seria um passeio pelo futuro. O encerramento abrupto da melodia atiça a vontade por mais. E ela foi reafirmada com We turn Red e sua viagem com ares de Californication. Haviam ainda dez músicas esperando para serem ouvidas, degustadas, debatidas.          
         Notas mentais em junho, agora Josh estaria mais integrado ao grupo, Flea passou alguns anos estudando teoria musical, Anthony havia saído de um relacionamento e mesmo o Chad havia estrelado Zoolander 2. O ano de 2016 já começara surpreendente: Aeroplane surgindo numa apresentação da banda depois de quase vinte anos! Era como afirmassem estar dispostos a, finalmente, abraçar a todos os aspectos de sua própria história e seguir em frente. Tomei essa expectativa como certa enquanto esperava o lançamento. Finalmente o dia dezessete de junho chegou! Era hora de ter as próprias impressões:
      The Longest Wave apresenta um dedilhado na guitarra que não deve em nada para canções como I Could have Lied. Kiedis versa sobre se permitir viver. Goodbye Angels guarda um ótimo momento ao final quando a bateria vai construindo uma tensão que se supõe será resolvida pela guitarra, até que é Flea quem surge num final que pode se tornar uma grande jam. Esta faixa tem muito dos Peppers de outrora, umas das melhores!
       Sick Love num verso a dizer algo como “super-heróis tendem a desaparecer”  remeteu diretamente à Mix Tape do Senhor das Estrelas d’Os Guardiões da Galáxia, uma atmosfera setentista capitaneada pelo piano de Elton John, e o instrumento não soa deslocado ou forçado; diversas faixas o utilizam em seu arranjo e confesso fui descobrir acerca da participação do Sir apenas posteriormente, tamanha a coesão das canções. Aqui, ele fala sobre como abertamente defeituoso é cada amor eleito. O amor está em todos os lados. Os Peppers comentaram que Go Robot era a escolha da gravadora para divulgar o álbum e com razão! Há de tudo até sintetizadores, mesmo rimas inesperadas tais “trooper” com “Alice Cooper” tem seu lugar. O aprendizado está presente quando deixamos de tomar as decisões de outrem como irreversíveis, insuportáveis ou terríveis. Há, ainda, esperança.
       Feasting on the Flowers soou, em sua superfície, um enigma. A forma como nos desligamos do mundo centrados em nós mesmos. Seria sucessora espiritual de This is the Place? As canções são um convite à intimidade daqueles indivíduos. Depois de Califórnia, Michigan, Hollywood, é impossível ouvir RHCP por muitos anos sem querer realizar um tour por cada local mencionado por Anthony. A 9ª faixa toma lugar em Detroit, ela me lembrou em algo a fase de Navarro, coisa que já havia ocorrido antes em This is the Kitt ou Brave from Afar. Pode ser que haja consciência disso quando ele canta algo como “você pode ver o surgimento dos velhos restos do passado”. As guitarras sujas de urgência conduzem a uma bela calmaria em This Ticonderoga, há alguns riffs que parecem remeter a Central de Frusciante - sendo cada personagem na capa um integrante, seria a raposa solitária John? - Seguindo a linha de Torture me e Open/Close temos nova menção curiosa ao Brasil, desta vez em um narciso. “somos todos soldados neste épico e amável vôo e ninguém que conheço, até hoje, fez direito”.
        As três últimas faixas se tornaram favoritas, daquelas de se pensar poderiam ser um single, mostrar os outros lados da banda uma vez que suas composições mais intimistas nem sempre ganham os holofotes. De Encore surgem versos tais “Mais tarde lerei para você coisas das quais venho procurando dizer adeus. Se afastar de sua mãe e pai de modo a achar o amor que você nunca teve, não diga mentiras. Continue e escreva uma canção que diga tudo e mostre, antes de morrer. ” Compartilhar é um salto no escuro, mãos se entrelaçam sem resultado óbvio. The Hunter parece falar de perdão paterno, o tempo encontra sua forma de apaziguar cicatrizes que ficaram, quebrar o ciclo de violência valorizando a existência de laços familiares. O trompete ao final é um achado no arranjo.
       A jornada se encerra com um piano, seguido de um lamento que parece saído de uma peça orquestrada por Seiji Yokoyama, o baixo e a bateria se apresentam para a voz. Me pergunto a possibilidade de Dreams of a Samurai ser executada num show, um encerramento apoteótico. Não há mais o que esperar, - além de nova visita ao Brasil, claro - os RHCP voltaram! Além de treze canções sólidas parece haver uma unidade sonora e lírica, as letras carregam narrativas para além de abstracionismos. Sejam as interpretações descobertas ou projeções, dizer que é um clássico instantâneo será meu clichê moderno.

“Há um crepitar no centro morto da cidade; três figuras aproximam-se do que parece ser uma erupção vulcânica. Quem visse desacreditaria ao ver o grande urso negro ao lado de uma frágil menina. Os olhos do guaxinim brilham de malícia. O crocitar corta o ar quando, num rasante, um corvo deixa algo na mistura: ardentes pimentas vermelhas. Não é lava – ele diz. É nosso mais novo chili.”

ä

Nenhum comentário:

Postar um comentário