“O meu mundo não é como dos outros, quero de mais, exijo de mais, há em mim uma sede de infinito, uma angústia constante que eu nem mesmo compreendo, pois estou longe de ser uma pessoa pessimista; Sou antes uma exaltada, com uma alma intensa, violenta, atormentada, uma alma que se não se sente bem onde está, que tem saudade... sei lá de quê!” – Florbela Espanca, Cartas e Diário, edição de 1995, excerto de carta à Guido Battelli.
Ilustração fractal desenvolvida para o blog |
Parte de 2013 foi fértil para
composições por alguns motivos: até o final de setembro estava desempregado e
as manhãs sozinho permitiam que eu registrasse qualquer ideia quando ela
surgisse. Minha adaptação à mudança de cidade ocorria de forma paulatina, mas
menos traumática do que eu imaginava é como diz a canção “A vida é bem mais
simples/Do que geralmente a gente faz”.
De alguma conversa avulsa com
Kariny surgiu a ideia de fazermos um Duo musical e poético. Eu já havia
colocado melodia em seu poema que se tornou Referência e, no mês de março, ela
surgiu com o poema que se tornou Passeio Azul. Levantaria, então, os poemas,
versos, frases, tudo que oferecesse caminhos e musicaria. Mais que isso, me
parecia importante que houvesse o mínimo de ‘unidade’ no pensamento do duo o
que me levou a ir até a biblioteca e encontrar todos os livros que ela tivesse
comentado indicado O Estrangeiro, As Vantagens de Ser Invisível, O Mundo de
Sofia, O Apanhador no Campo de Centeio, poemas de Hilda Hilst... o que fosse.
Fora os que emprestei com ela, tal A Idade da Razão.
Partindo dessa imersão, o nome do
“álbum” seria Envahissement tanto pelo interesse dela em ter uma banda com esse
nome quanto por representar não apenas uma invasão francófona quanto a presença
mais ativa da poesia que ela trazia na bagagem no processo criativo, uma vez
que eu não era o mais ávido consumidor dessa modalidade textual.
Em uma conversa sobre poemas,
veio a lembrança de um trabalho que realizamos em 2011 nas aulas de Fonética e
Fonologia da Língua Inglesa da profª Iris Maitê em que graváramos um texto no
idioma. Este é um ponto fundamental para esta composição, pois, por mais que
muitas vezes eu fizesse minhas as palavras de Flea em sua autobiografia “Não
conseguia me concentrar na aula. De vez em quando, um interesse fugaz na
inflada no ego propiciada por um bom boletim me motivava a ser bem-sucedido,
mas eu sempre acabava me desligando no fluxo de pensamentos sem destino ou
bancando o palhaço da sala” aquela foi uma das atividades que mais gostei de
fazer por envolver áudio, conversões e gravações e, apesar de ser um trabalho
individual, trabalhei “produzindo” a gravação de um pequeno grupo de colegas. Entre eles, Kariny, que recitou
since feeling is first de e.e. cummings. Se eu tivesse participado da
experiência social que vi no perfil da professora há alguns meses, Um Encontro
entre Breadfruit, provavelmente teria mencionado essa atividade ou quando
aprendi a tocar Diamonds On the Soles of Her Shoes para uma de suas aulas, mas divago.
Vasculhando documentos do período
no Centro Universitário, verifiquei que ainda possuía a gravação. Escreveria,
então, uma canção que conduzisse, de algum modo, ao poema, espelhando a canção
Vênus de Moska (já falei do álbum em que ela se encontra aqui) e o recém
lançado álbum duplo de Vitor Ramil: Foi no Mês Que Vem, em que ele revisava sua
carreira em arranjos que deixavam proeminentes as afinações pouco usuais de
seus violões. Isso me interessava tanto do ponto de vista estético, ao enxergar
possibilidades de soar diferente, quanto do ponto de vista instrumental,
afinal, desconhecendo os rudimentos da percussão, sempre fiquei limitado a
gravar apenas voz e violão. Logo, era interessante analisar um grande expoente
trabalhando, por escolha, com arranjos, em sua maioria, para dois violões. Abaixo, a gravação realizada naquele ano:
HMK (2013)
Letra e Música: Thales Salgado
Intervenção poética: Kariny Camargo
Kafkiano despertar
Armado de asas ao
Revés, decido procurar
Idílica figura
No limiar do
Yin-yang
Certo que ela
Revelará
Isto que falta e
Sob a tua lente
Trarei à vida outra matiz
Invisible madame! venez a moi, vôtre voix:
“since
feeling is first
who
pays any attention
to
the syntax of things
will
never wholly kiss you;
wholly
to be a fool
while
Spring is in the world
my
blood approves,
and
kisses are a better fate
than
wisdom
lady
I swear by all flowers. Don’t cry
-the
best gesture of my brain is less than
your
eyelids’; flutter which says
we
are for each other: then
laugh,
leaning back in my arms
for
life’s not a paragraph
And
death i think is no parenthesis”
(e.e. cummings)*
Nevoeiro a abarcar
Afagos velados no
Deserto desse sublimar
Eclipse de silêncios
Confluência de Amanhãs
Mar que a fitar
Aliançará a
Rara cura para o
Gris de teus olhos
O vento a esfuziar me diz
Compus HMK entre 02 e 19/09/2013.
Esse é, provavelmente, o período mais documentado de minha criação artística.
Em uma conversa com Estela após submeter a composição para audição eu dizia:
Naquele tempo eu ainda não havia definido o que significaria o HMK. Recordo que o retirei da personagem Hilde Møller Knag
d’O Mundo de Sofia. Uma vez que a própria Kariny era conhecida como Hilde do
período em que trabalhou com uma grande companhia aérea, parecia um passo
lógico. Já tendo refletido a composição por mais de um mês, comentei com
Fabíola que "a letra poderia funcionar de duas formas, se escrita sem a declamação a segunda estrofe poderia ser uma segunda voz dentro do texto. Numa apresentação ao vivo - que, óbvio, nunca aconteceria - o 'invisible madame' poderia ser uma chamada para a entrada de poemas diferentes." Esse comentário acerca da
apresentação me faz crer que a ideia do Duo não teve seguimento. Em
outubro, inclusive, eu havia inscrito a letra “como poema” para tentar uma vaga
na coletânea A Palavra em Prisma, realizada com autores guarulhenses... sem
sucesso.
No fim das contas, acabei por não atribuir significado oculto ao acrônimo e ficou apenas HMK mesmo. No dia 23/09/2013 comecei a trabalhar para a editora Saraiva e, apesar de ainda ter as manhãs livres pelos três meses seguintes, o fôlego para compor começou a se esvair e só retornaria ao fim de 2016. Algo que notei enquanto escrevia este texto é que não encontrei registro de ter encaminhado essa gravação para a própria Kariny (!) ao menos não via e-mail ou Messenger, será que o fiz por algum número outro de whatsapp? Este é um dos males de compor e deixar na gaveta, passado algum tempo, fica parecendo que nunca existiu. Seja como for, posto estas essas reminiscências hoje, quando, para ela, amanhã já é.
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