quinta-feira, 23 de julho de 2020

Res, non verba

“Freddie e Dean entraram na minha frente, me dizendo para esperar até que eles desenrolassem o esquema, e fecharam a porta. Esperei por eles mais ou menos uma hora naquele beco escuro, a frustração aumentando. (...) . Freddie, depois, me explicou que eu era baixinho demais e teria arruinado o plano deles. Por que diabos então eles não me disseram isso antes de entrar? É uma dor muito específica, a da traição de um amigo, mas nunca uma surpresa de fato. Se você prestar atenção, eles dão sinais muito antes de acontecer.” – Flea, Acid for the Children – Uma autobiografia
A Queda de Faetonte, de Johann Liss (Séc. XVII) - Domínio Público

      Ao ler este trecho da adolescência de Flea, lembrei imediatamente na letra de “Res, non verba” (Fatos, não palavras) canção composta quase que instantaneamente em uma jam entre Bob Barduchi e eu, na garagem de Fabio Kulakauskas.
      Estávamos no intervalo de um ensaio da Falsa Modéstia e Bob começou a tocar uma linha de baixo, tateei por alguns instantes – ou foram minutos inteiros? – até encontrar os acordes que se acoplavam aquela escala e a forma como toquei o violão foi pensando em Pr’esse Vício, do álbum de estreia da RPM. Coloquei um aparelho de mp3 para gravar, não muito tempo depois, comecei a cantar uma letra que eu, até então, não pensara musicar. Não me considero um “poeta”, então, raras são as vezes em que escrevo versos sem ter uma música em mente. Este caso foi uma exceção.      
     A letra era um desabafo soprado pelo ego ferido de um jovem adulto, ancorado em tolices. “rejeições” e “traições” ocorridas, ou melhor, interpretadas assim, no meio de meu último ano do Ensino Médio. E, se as coloco entre aspas, é justamente por, apesar de poderem ser inseridas em uma narrativa que conduza a elas, em última análise, pouco sentido há nisso. Diria Gessinger “O papel aceita toda qualquer coisa”. Aquilo a que dei voz há 13 anos era um senso de direito equivocado e inapropriado, de modo que hoje, aos 30, não me sentiria confortável em cantá-la, não me reconheço nos versos. A bem da verdade? Houve vez – e aí já vão mais de sete anos (!) – em que, em uma conversa com Bob, tentei, sozinho em casa, regravar a música. Tanto para ter um áudio mais límpido que o da garagem, quanto para, pela primeira vez, cantar todos os versos...



Res, Non Verba (2008)
Música: Bruno Barduchi Oliveira
Letra: Thales Salgado

Não confunda o meu romantismo
Com tua falta desse algo mais
A inveja é cega e você tem
Já corrompidos os teus ideais
A perfeição se esconde da vaidade
(é verdade)
Você pensa que isso é lindo
Não importa quem acabe se ferindo

Eu sei tudo sobre você e sei
Você não sabe nada sobre mim
Tudo o que eu dizia só ouvia
O que fizesse bem a você
Eu desisto de entender você
Que pensa me entender melhor assim
Quando for tarde demais
Vira me procurar e não me encontrará

Não confunda este meu lirismo
Com sua visão errada do ser
Você sabe que há mais na vida
Do que torpes jogos de poder

     Não consegui encontrar o mesmo ímpeto, revolta, nada. Além de não orbitar a gravidade do baixo, o que despiu minhas gravações caseiras do charme inerente ao compositor da melodia.Se não me vejo na situação que ocasionou a letra e tampouco sou capaz de cantar da mesma forma, o que me fez trazê-la ao blog? 
     Honestidade com versões passadas de mim mesmo, apesar do que foi escrito, do que levou a isso, o importante foi aquele momento em que estávamos naquela garagem e está capturado neste áudio: A sensação de ouvir a melodia de um amigo e sentir-se confortável para cantar na mesma hora o que rondava a cabeça sem vergonha ou receio, por mais tolas que as palavras, hoje, soem. Tão poucos registros de nossos ensaios foram feitos, há uma série de composições que a banda começou a ensaiar e nunca deram o ar da graça em nenhuma apresentação: Dom Casmurro! Por mais que te desejo e Estelar são algumas das que vem à mente.
     Quem sabe dia desses eu escreva outra letra que case com a melodia e faça sentido no presente?

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