terça-feira, 15 de junho de 2021

P.C.L.R.

"Durante vinte anos só pensara em seu retorno. Mas, ao chegar, compreendeu, surpreso, que sua vida, a própria essência de sua vida, seu centro, seu tesouro, encontrava-se fora de Ítaca, nos vinte anos de suas andanças. E, esse tesouro, ele havia perdido e só voltaria a encontrá-lo contando (...) A um desconhecido perguntamos "Quem é você? De onde você vem? Conta!". E ele tinha contado. Durante quatro longos cantos da Odisseia, diante de atônitos feácios, relembrara os pormenores de suas aventuras. Mas, em Ítaca, ele não era um estrangeiro, era um deles, e por isso a ninguém ocorria dizer: "Conta!". A Ignorância, Milan Kundera, Tradução: Teresa Bulhões Carvalho da Fonseca, Companhia de Bolso.

Arte de @ellaproenca


P.C.L.R. (2021)
Letra e música: Thales Salgado

O que você tem feito?
Como foi sua vida?
O quanto desconheço
Do mundo que te habita?

Tanto ignoro de sua odisseia
Você foi cachoeira ou ainda é?

Refrão:
Quem é você, agora,
De onde veio? Conta!
Se quiser cantar.

Décadas passam lentas
Foram incalculáveis
Todos os fraseados
A perpassar o seu rocar

Ainda ri com olhos de escudo
Ou avistou sereias em Araruama?

Refrão

Tu és protagonista em uma história
Vejo tuas mãos nas cordas
Cantar rosa do futuro.

Refrão

    Esse texto conversa com o da semana anterior, Interescolar, não apenas por ter sido redigido pela mesma pessoa, claro, mas por ter na cidade de Arujá um ponto de convergência. Mesmo assim, não o pautarei pela psicogeografia, tampouco o considero um retcon, mesmo que a amizade que catalisou esta letra tenha surgido em minha infância, muitos anos antes de eu sequer tocar violão.

    Tendo o primeiro afastamento ocorrido com o fim do Ensino Fundamental 1, que eu fosse bater em sua porta cerca de mil dias depois, como fazia quando éramos crianças, deve ter sido estranho, para dizer o mínimo. Com isso, não me eximo da responsabilidade, todavia, confesso sempre ter tido a tendência a aparecer sem avisar. Teria o hábito nascido naquele 2004?

    Forçando a memória, me pergunto se o Orkut teve alguma relação com o evento, afinal, tendo sido lançado naquele ano, abria-se a possibilidade para manter todas as pessoas com quem já se tinha falado na vida ao alcance de um clique. No entanto, minha memória animal é falha. Mesmo consultando a Wikipédia, o máximo que descobri foi que a versão em português surgiu apenas em abril de 2005. Nada, além da falta de convite, impediria o uso da versão em inglês. Divago.

    Fomos nos encontrar novamente alguns anos depois e, mesmo que indiretamente, Paula Lima estava presente em algumas histórias de textos neste blog: em sua garagem, ouvi Segredos em Sussurros pela primeira vez. Na mesma rua que a sua, fiz parte da composição de Tributo aos Sentimentos, em outra visita à garagem, compus minha primeira melodia, que veio a se tornar Um Caminho para o Céu. Assim como também foi na praça em frente a sua casa que germinaram os versos que tornaram-se Madrugada. Isso para ficar em poucos exemplos. A distância não afasta, por exemplo, o sabor de um belo brigadeiro de panela...

    Treze anos depois, ela não apenas me dá um vislumbre de como soam composições que ela viu nascer com voz feminina, como a que ela mais gosta, Um Conto no Jardim, como me mostrou em primeira mão as letras de suas próprias composições, que pretendo comentar futuramente no blog, ambas contendo uma verve de consciência tanto social quanto sentimental de um modo que eu mesmo não alcancei em anos de ofício. Além disso, se em Um Conto, o eu-lírico falava em "quase um ano se passou", hoje, um outro eu-lírico pode constatar: "décadas passam lentas".

    Esse último salto na cronologia, tem um ar Floydeano "e então, um dia você percebe que dez anos ficaram para trás" mas conserva um aspecto das amizades que me chama a atenção, a possibilidade de elas desdobrarem-se de acordo com a vida. Enquanto refletia esse tema, me deparei com o artigo How Friendships Change in Adulthood (Como Amizades Mudam na Idade Adulta, em tradução livre) publicado em 2015 por Julie Beck, editora sênior no The Atlântico, falando sobre a estrutura das amizades, suas categorias, características, circunstâncias que levam ao fim etc. Nele, destaco um trecho que traduzi mencionando o trabalho de William Rawlins, professor emérito de Comunicação Interpessoal da Universidade de Ohio:
"Os entrevistados por Rawlins tendiam a pensar em suas amizades como contínuas, mesmo se eles passassem por longos períodos em que estivessem sem contato. Essa é uma visão um tanto positiva demais - você não assumiria estar em bons termos com seus pais se não tivesse notícias deles por meses. Mas a suposição padrão com amigos é que vocês ainda são amigos."
    Voltando às composições dela, foi justamente no dia seguinte a trabalhar na harmonização de uma delas, um forró, em janeiro deste ano, que P.C.L.R. nasceu. Eu não tinha intenção de fazer, mas ela começou a se delinear. Eu havia acabado de reler A Identidade, de Milan Kundera, e o trecho encabeçando este post voltou a me chamar a atenção. Me perguntava como teria sido a vida dela durante estes períodos, por onde ela andara? Coisas que, como diz o trecho, não perguntamos a pessoas que conhecemos. Até para destacar a influência da obra na composição, tarantinei seus versos no refrão "Quem és tu? De onde vens? Conta!".

    Afinal, podemos até procurar nos informar por postagens nas redes, ver as localizações,  mas nunca saberemos quais foram/eram as percepções das pessoas durante as vivências a menos que… elas nos contem, uma foto não informa se quindins foram ao forno ou não(!). Por estar acompanhando seu canto durante esse período de isolamento, decidi que o verso funcionaria melhor contemplando cantar em lugar de contar.

    Entre as conversas que tínhamos, ela me falou de como amava a bateria, tocava tocar, arranhava tamborim e surdo de terceira. E, ali, abria-se um outro mundo dentro da música, já que nada entendo de percussão. Era certo que o rocar deveria fazer parte dos versos.

A letra já organizada com as referências
    Pensando nas influências que surgem sem que estejamos plenamente conscientes, o termo 'protagonista' surgiu após ter assistido a Tenet pela segunda vez - na vã tentativa de gostar do filme para além de seu conceito. Musicalmente, meu pensamento flutuou por músicas como Todo o Tempo do Mundo, versão de Zeca Baleiro para a composição de Rui Veloso, Omission de John Frusciante e até Promessas de Navegação, da Vanguart, no sentido de que a música começa sem muitos rodeios.

    Considerando como as conversas já faziam parte de minha base para a letra, me admira que, apenas em fevereiro, tenha me ocorrido o título: Pequenas Conversas Levando ao Real, ao mesmo tempo em que o acrônimo guardava mais que lima e a rosa.

    Eu pensava em tudo isso quando, na noite de aniversário de Arujá, entrei em contato com a multiartista Isabella Proença para pedir a ela emprestar seu talento para ilustrar esta canção. Fiz o possível para resumir o encadeamento que me levou aos versos e deixei a critério dela a existência, ou não, de uma figura humana. A meu ver, o essencial na cena era o céu rosa e o pé de laranja lima (sem relação alguma com o livro de José Mauro de Vasconcelos ilustrado por Jayme Cortez, o filme de Aurélio Teixeira ou o de Marcos Bernstein) em que um rocar repousaria.

    Foi uma escolha dela, tanto seguir com a figura a observar a cena, criando, a meu ver, uma segunda camada de contemplação, quanto deixar tudo no mesmo tom do céu, criando a sensação de unidade, algo que eu sequer me passou pela cabeça durante a proposta mas, concluída a obra, sinto que não poderia ser de outra forma, quase como a areia fosse rica em minerais como cálcio, magnésio e potássio. Mais uma vez, sua arte traduz uma parte na outra - questão de vida ou morte diria Gullar - bastando-se por si, mesmo para quem jamais pouse os olhos em meus versos.

    Tão logo terminei de gravar a demo da canção, encaminhei para Paula via WhatsApp e, assim como Nando Reis, não tive resposta. Não que seja necessário, mas não podia deixar esta referência passar.

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