terça-feira, 7 de setembro de 2021

Somos Resistência ou (ainda é Sete de Setembro)

 “Não tenho muito o que dizer. A primeira é crítica mesmo, para demonstrar a indignação com tanta injustiça e impotência de ser mulher nesse país, que não importa o quão errado e absurdo sejam os escândalos políticos, nada muda.” – Paula Lima em 04/12/2020

 

Arte de @ellaproenca


Somos Resistência (2020)
Letra: Paula Lima

Fomos lutar em Brasília
Pôr a tapa, o nosso rosto
Nossa briga por justiça
Sair do fundo do poço
Vamos expor o inimigo
Revelar nosso rancor
Confunde cérebro com intestino
Pátria armada e louvor

Somos a resistência
Mudamos o mundo ao nosso redor
Vivemos nessa decadência
Esperando que tudo seja melhor

Como pode ser culposo
Se viola outro corpo
Como pode o retrocesso
A Terra plana ser sucesso
Essa vida bagunçada
Desrespeito pela cor
Vítima estraçalhada
O show ao vivo do horror

Somos a resistência
Mudamos o mundo ao nosso redor
Vivemos nessa decadência
Esperando que tudo seja melhor
 

“Enquanto reflete a situação do país e sua tristeza com o último lançamento de Leoni, o single Sete de Setembro, outros versos que encapsularam uma série de situações distintas surgiu na mente de Thales. Ainda que ele os tivesse visto pela primeira vez nove meses e doze dias antes, sentiu que seguiam atuais. Mais relação ainda havia: Paula a escrevera durante o curso da oficina de composição ministrada pelo próprio Carlos Leoni Siqueira Junior. Ele decidiu que era hora de trazê-la ao blog.” - Prefácio por Jorge Luís Barros

    Em apenas algumas horas, a canção Sete de Setembro, de Leoni, alcançou mais de mil execuções. Considerando a população brasileira com mais de duzentos milhões de pessoas, dos quais, pelo menos trezentas mil o seguem no Facebook e sua carreira já contar com mais de quarenta anos, o número é expressivo, mas não impressiona. “Ain, mas você está falando sobre o que não sabe, hoje é feriado nacional, em um país cada vez mais polarizado. Há mais que música na vida, sabe? Duvido você lançar qualquer coisa e alcançar  de gente.” Antes mesmo eu pudesse replicar, você, leitor ou leitora tão perspicaz quanto voraz complementaria: “você já lançou algo repercutido pelo jornalista Mauro Ferreira? Ele comenta música desde antes você ter sequer nascido!” Diante de tais comentários, tudo o que eu poderia fazer seria dizer: “Sim, mas eu não estou escrevendo por despeito e sim por sentir que devo. Antes que você diga que perdi uma grande chance de ficar calado, são só palavras e o que eu sinto não mudará.

    O problema, claro, pode ter sido expectativas descompensadas:  quando vejo o artista compartilhando a coluna de José Eduardo Agualusa em que o jornalista compara o bolsonarismo ao talibanismo, projeto um alinhamento. Quando dias depois ele comenta acerca de que o Rio de Janeiro pode tornar-se um epicentro da pandemia por seus recordes de infecção, penso em bom-senso. Já ao ler, parafraseando “esse Sete de Setembro parece ameaçador no Brasil. Para quem vai ficar em casa, para não se arriscar (política e sanitariamente), tem o lançamento do meu novo single. Composta há uns 30 anos, com os Heróis da Resistência” meus sinais de alerta não despertaram naquele momento, primeiro pelo próprio compositor ter mudado neste período, e também pois, o cancioneiro brasileiro tem composições como Que País é Este, 1978, a qual fui apresentado formalmente quando a canção já tinha completado maioridade. A teatralidade ou, como diria Gessinger “o nome unidimensional e heroico” do título da banda me iludiu. Naquele momento não me veio a mente que um dos maiores sucessos deles era, justamente, “Só Pro Meu Prazer”, 1986, é claro que o compositor é especializado em pop, isso não está em discussão.

 

“O primeiro ato de violência que o patriarcado demanda dos homens não é a violência contra a mulher. Em lugar disso, o patriarcado demanda de todos os homens que se envolvam em atos de automutilação psíquica, que eles assassinem todas as partes emocionais deles. Se um indivíduo não tem sucesso em aleijar-se emocionalmente, ele poderá contar com homens patriarcais para pôr em prática rituais de poder que irão atacar sua autoestima.” A vontade para mudar: Homens, Masculinidade e Amor (2004), p.66 (tradução livre)

    Também não pensei na conturbada saída do Kid Abelha que em 1987 lançou Tomate, primeiro álbum sem Leoni, e que abre com Paula Toller cantando “Me Deixa Falar”, canção com versos tais “Brasileiros, marcianos/Fazem tanto pra agradar/Mas querem muito, querem tudo/Só não querem me escutar/Me deixa falar, me empresta um ouvido/Me deixa falar, me presta atenção” e que parecem uma indireta direta. Os relatos acerca do incidente que serviu como propulsor para a separação, inclusive, mencionam que houve mais de uma possibilidade de violência no dia. O escritor Jorge Wakabara descreve toda a situação e contexto com fotos, áudio, links e o que mais você quiser em O incidente no Estádio de Remo da Lagoa, publicado em novembro de 2020. Paula ainda iria compor uma série de sucessos, como Grand’ Hotel e Amanhã é 23 e mesmo pérolas lado B como Paris, Paris sem a sombra do compositor.

    Não quero com isso dizer que a música é ruim (sim, mesmo que se possa ouvir Oswaldo Montenegro cantando “embora não pareça”) foi curioso descobrir que ela foi inspirada no filme Não Amarás, 1988, dirigido pelo diretor polonês Krzysztof Kieslowski. Como uma série de outros dele, o filme pode ser visto atualmente no Telecine, mas, uma vez que não o assisti, parafrasearei a sinopse: “jovem espia sua vizinha pelo telescópio, lê suas cartas e faz chamadas anônimas... a música corresponde sua “tímida forma de demonstrar o amor” e passa a provocá-lo.” Sem querer problematizar – uma vez que não assisti AINDA – mas o próprio Telecine coloca: “o relacionamento entre os dois toma rumos complicados.” Se os rumos complicados forem os mesmos de As Duas Faces da Felicidade, 1965, de Agnés Varda, não sei não. De todo modo, descobri o filme devido ao lançamento, logo, não há como dizer que não aprendi nada com a canção.

“Aspirante a engenheira física e amante do mundo musical. Ainda no engatinhar da composição, do cantar e do tocar. Busco transparecer no que escrevo o que vivi, o que gostaria de ter vivido, minhas frustrações e revoltas.” Paula em minibiografia, 19/07/2021

    Mas, para mim, aprendi mais com os versos de Paula. A imagem que, temporariamente, ilustra esta postagem foi feita por mim em 2018, para redirecionar a um texto de 2016, discorrendo acerca de uma composição que ficou pronta em 2009, mas foi iniciada em 2007: Solipatria. Se você já viu o texto sobre Pequenas Conversas Levando ao Real, sabe que sou dado a saltos no tempo. Mas me recordo da empolgação que tive, alguns minutos depois de ler e reler os versos que Paula escreveu depois de ruminar as coisas em água quente e montar algumas frases com rimas. Ela comentou que, durante a aula, rascunhou no caderno e saiu a letra que encabeça a postagem.

    Ainda eu não soubesse durante a leitura qual era o ritmo que ela havia desenvolvido, a melodia que minha mente tocou para mim era um punk rock. Ainda eu pudesse citar nominalmente uma série de casos, tive a impressão de que, ao não o fazer nos versos, ela a tornou atemporal: os problemas estão além dos noticiários atuais, são chagas estruturais, frutos do patriarcado, do racismo... e ainda assim, há esperança nos versos do refrão; há mensagem. No fim das contas, conhecer as criações de pessoas que eu conheço é muito mais satisfatório.

     Atualização: 11/10/2021

   Há muitos anos Gessinger comentou que tudo o que sentia era que algo lhe faltava. Comigo aconteceu o mesmo. Quando postei os versos da canção e a história na Independência não tinha a imagem que pudesse representá-los como imaginava. Era necessário que fosse algo atual, ainda que as tensões nacionais sejam constantes como capturar o ar dos acontecimentos? Normalmente sou o senhor das pautas frias. Era domingo quando comentei com a artista visual Isabella Proença acerca do desarranjo que havia entre a composição exalando o zeitgeist de Paula e o post. Diferente de outros briefings este foi breve: os versos deveriam bastar. Quando ela comentou sobre a silhueta do mapa de Brasília me peguei pensando em como as asas que compõe a cidade podem assemelhar-se a uma besta ou a um riso de escarnio. As figuras de resistência à frente como bradassem: "não quero mais nenhum direito à menos!". Todas as cores não se deixando apagar. É mais um belo trabalho.

     P.S: Poucos dias após o post, tive a oportunidade de, enfim, assistir ao filme supramencionado. Não Amarás. Me admira que este tipo de filme siga sendo trazido ao presente como representação de um amor romântico. Em um trabalho baseado no último álbum de Duda Beat, a psicóloga Fabíola Passos comentou aqui sobre a canção Melô da Ilusão e a forma como o ato de stalkear foi, com a ampliação do uso das redes sociais, normalizada, nem sempre de uma forma saudável. O filme me recordou da obra de Milan Kundera A Vida Está em Outro Lugar com a presença do jovem e inexperiente Jaromil. Com qual intuito trazer um filme em que um personagem passa trotes, rouba correspondências, escreve cartas falsas e observa uma mulher com uma luneta? Mais que isso, o filme parece apresentar estes comportamentos como galanteios aceitáveis e a personagem Magda o contrapõe em determinado momento, mas aceita a atenção do jovem, como se, aproximando-se e seduzindo seu algoz, encontra-se poder. Após assistir ao filme, os verbos que Leoni traz em sua canção: invade, rouba soam ainda mais violentos como a absolvição de André de Camargo Aranha. Sigo reforçando os versos de Paula e agregando ao coro: Vivemos nessa decadência esperando que tudo seja melhor!

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