quinta-feira, 8 de julho de 2021

Letras refugadas

"Enquanto combatia gigantes imaginários, Dom Quixote estava apenas representando um papel; mas, quando realmente mata alguém, ele se agarra a suas fantasias com toda a sua força, pois elas são a única coisa que dão significado a esse crime terrível. Paradoxalmente, quanto mais nos sacrificamos em benefício de uma história imaginária, mais forte ela se torna, porque desesperadamente queremos dar um sentido ao sacrifício e ao sofrimento que causamos." - Homo Deus, de Yuval Noah Harari, tradução por Paulo Geiger, Companhia das Letras, 2016.

    Em outubro de 2010, encaminhei um e-mail para bob com uma série de Letras. Nele, além de pedir uma avaliação delas, eu comentava como uma, Árvore da Solidão, referenciava um conceito que ele havia criado alguns anos antes, o do o som das motosserras. Ainda que vez ou outra ele comente como não gosta das coisas que escreve. Acha que não tem vida. Os textos soam forçados,  sem poesia e sem conteúdo, para mim é justamente o contrário: vejo seus versos como o momento em que virei uma chave. Escrever publicamente, mesmo que para consumo de pessoas próximas, era possível. Compor canções? Podia ser um bicho-de-sete-cabeças mas poderia ser desconstituído uma cabeça por vez. Revendo a mensagem, percebo como nenhum dos outros versos ali se tornou nada - até o momento, é bom lembrar. Estou preso à falácia dos custos irrecuperáveis?

    Nos últimos anos, conheci pessoas que tratam as próprias palavras de uma forma muito distinta: escrevem para não esquecer, levam para a terapia e depois jogam fora. É um exercício de desapego e minimalismo curioso. Perdi as contas de quantas vezes revirei um dos moleskines ou e-mails dos últimos dez anos procurando imagens que ilustrassem o processo de alguma letra, faíscas criativas, o que seja. Se eu levasse as ideias de composições para a terapia, as músicas deixariam de existir? Ou tornar-se-iam uma terceira coisa? Óbvio, há textos e papeis passíveis de descarte, mas, se uma ideia de 2012 pode se tornar uma canção em 2021, o que impede os versos abaixo... qualidade?

IV
Me abraço
Pode ser que oculte
O embaraço
Querer é estar errado
Mundo falso
O poente treme já
os próprios passos
Que não tem
por flutuar

V
Disse um certo poeta
Que era preciso crer
Pra tornar
Lagrima doída,
Melodia
Esse era um milagre que fazia.
Desconheço o que acredito
Mas evoco a luz agora
para me impulsionar
Destilado refletiu estranho brilho
E se partiu dentro de mim
Queimando ao redor
Deste lado caiu do papel, fitilho
E lá dentro o que eu vi
Era só ar e pó.

VI
Implantar falsas memórias
É futuro que demora
Reserve um espaço
Que quero de volta
Alguma paz
Pouco já é demais
àquele sem nenhuma grama
E deixarei de ser
O que faz perceber
Cada segundo a mais
Sempre um a menos
E deixarei de ser
De sempre a morrer
Vou respirar então
com meu sorriso mais ameno

P.S.: Apenas ao reler os poemas antes da postagem, notei que um trecho do IV se partiu em um verso da letra que fiz para: Fim.

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