“Enquanto reflete a situação do país e sua tristeza com o último lançamento de Leoni, o single Sete de Setembro, outros versos que encapsularam uma série de situações distintas surgiu na mente de Thales. Ainda que ele os tivesse visto pela primeira vez nove meses e doze dias antes, sentiu que seguiam atuais. Mais relação ainda havia: Paula a escrevera durante o curso da oficina de composição ministrada pelo próprio Carlos Leoni Siqueira Junior. Ele decidiu que era hora de trazê-la ao blog.” - Prefácio por Jorge Luís Barros
Em apenas algumas horas, a canção Sete
de Setembro, de Leoni, alcançou mais de mil execuções. Considerando a população
brasileira com mais de duzentos milhões de pessoas, dos quais, pelo menos trezentas
mil o seguem no Facebook e sua carreira já contar com mais de quarenta anos, o
número é expressivo, mas não impressiona. “Ain, mas você está falando sobre
o que não sabe, hoje é feriado nacional, em um país cada vez mais polarizado.
Há mais que música na vida, sabe? Duvido você lançar qualquer coisa e alcançar
de gente.” Antes mesmo eu pudesse replicar, você, leitor ou leitora tão
perspicaz quanto voraz complementaria: “você já lançou algo repercutido pelo
jornalista Mauro Ferreira? Ele comenta música
desde antes você ter sequer nascido!” Diante de tais comentários, tudo o
que eu poderia fazer seria dizer: “Sim, mas eu não estou escrevendo por
despeito e sim por sentir que devo. Antes que você diga que perdi uma grande
chance de ficar calado, são
só palavras e o que eu sinto não mudará.
O problema, claro, pode ter sido expectativas
descompensadas: quando vejo o artista
compartilhando a coluna de José Eduardo Agualusa em que o jornalista compara o
bolsonarismo ao talibanismo, projeto um alinhamento. Quando dias depois ele
comenta acerca de que o Rio de Janeiro pode tornar-se um epicentro da pandemia
por seus recordes de infecção, penso em bom-senso. Já ao ler, parafraseando “esse
Sete de Setembro parece ameaçador no Brasil. Para quem vai ficar em casa, para
não se arriscar (política e sanitariamente), tem o lançamento do meu novo
single. Composta há uns 30 anos, com os Heróis da Resistência” meus sinais de
alerta não despertaram naquele momento, primeiro pelo próprio compositor ter mudado neste período, e também pois, o cancioneiro brasileiro tem
composições como Que País é Este, 1978, a qual fui apresentado formalmente
quando a canção já tinha completado maioridade. A teatralidade ou, como diria
Gessinger “o nome unidimensional e heroico” do título da banda me iludiu. Naquele
momento não me veio a mente que um dos maiores sucessos deles era, justamente, “Só
Pro Meu Prazer”, 1986, é claro que o compositor é especializado em pop, isso
não está em discussão.
“O
primeiro ato de violência que o patriarcado demanda dos homens não é a violência
contra a mulher. Em lugar disso, o patriarcado demanda de todos os homens que se
envolvam em atos de automutilação psíquica, que eles assassinem todas as partes
emocionais deles. Se um indivíduo não tem sucesso em aleijar-se emocionalmente,
ele poderá contar com homens patriarcais para pôr em prática rituais de poder
que irão atacar sua autoestima.” A vontade para mudar: Homens, Masculinidade e
Amor (2004), p.66 (tradução livre)
Também não pensei na conturbada saída do
Kid Abelha que em 1987 lançou Tomate,
primeiro álbum sem Leoni, e que abre com Paula Toller cantando “Me Deixa Falar”,
canção com versos tais “Brasileiros, marcianos/Fazem tanto pra agradar/Mas
querem muito, querem tudo/Só não querem me escutar/Me deixa falar, me empresta
um ouvido/Me deixa falar, me presta atenção” e que parecem uma indireta direta.
Os relatos acerca do incidente que serviu como propulsor para a separação,
inclusive, mencionam que houve mais de uma possibilidade de violência no dia. O
escritor Jorge Wakabara descreve toda a situação e contexto com fotos, áudio,
links e o que mais você quiser em O
incidente no Estádio de Remo da Lagoa, publicado em novembro de 2020. Paula
ainda iria compor uma série de sucessos, como Grand’ Hotel e Amanhã é 23 e
mesmo pérolas lado B como Paris,
Paris sem a sombra do compositor.
Não quero com isso dizer que a música é ruim
(sim, mesmo que se possa ouvir Oswaldo Montenegro cantando “embora não
pareça”) foi curioso descobrir que ela foi inspirada no filme Não
Amarás, 1988, dirigido pelo diretor polonês Krzysztof Kieslowski. Como uma
série de outros dele, o filme pode ser visto atualmente no Telecine, mas, uma
vez que não o assisti, parafrasearei a sinopse: “jovem espia sua vizinha pelo
telescópio, lê suas cartas e faz chamadas anônimas... a música corresponde sua “tímida
forma de demonstrar o amor” e passa a provocá-lo.” Sem querer problematizar –
uma vez que não assisti AINDA – mas o próprio Telecine coloca: “o
relacionamento entre os dois toma rumos complicados.” Se os rumos complicados
forem os mesmos de As
Duas Faces da Felicidade, 1965, de Agnés Varda, não sei não. De todo modo,
descobri o filme devido ao lançamento, logo, não há como dizer que não aprendi
nada com a canção.
“Aspirante a engenheira física e amante do mundo musical. Ainda no engatinhar da composição, do cantar e do tocar. Busco transparecer no que escrevo o que vivi, o que gostaria de ter vivido, minhas frustrações e revoltas.” Paula em minibiografia, 19/07/2021
Mas, para mim, aprendi
mais com os versos de Paula. A imagem que, temporariamente, ilustra esta postagem
foi feita por mim em 2018, para redirecionar a um texto de 2016, discorrendo
acerca de uma composição que ficou pronta em 2009, mas foi iniciada em 2007: Solipatria. Se você já viu o texto sobre Pequenas Conversas
Levando ao Real, sabe que sou dado a saltos no tempo. Mas me recordo da
empolgação que tive, alguns minutos depois de ler e reler os versos que Paula
escreveu depois de ruminar as coisas em água quente e montar algumas frases com
rimas. Ela comentou que, durante a aula, rascunhou no caderno e saiu a letra
que encabeça a postagem.
Ainda eu não soubesse durante
a leitura qual era o ritmo que ela havia desenvolvido, a melodia que minha mente
tocou para mim era um punk rock. Ainda eu pudesse citar nominalmente uma série de
casos, tive a impressão de que, ao não o fazer nos versos, ela a tornou
atemporal: os problemas estão além dos noticiários atuais, são chagas
estruturais, frutos do patriarcado, do racismo... e ainda assim, há esperança
nos versos do refrão; há mensagem. No fim das contas, conhecer as criações de
pessoas que eu conheço é muito mais satisfatório.
Atualização: 11/10/2021
Há muitos anos Gessinger comentou que tudo o que sentia era que algo lhe faltava. Comigo aconteceu o mesmo. Quando postei os versos da canção e a história na Independência não tinha a imagem que pudesse representá-los como imaginava. Era necessário que fosse algo atual, ainda que as tensões nacionais sejam constantes como capturar o ar dos acontecimentos? Normalmente sou o senhor das pautas frias. Era domingo quando comentei com a artista visual Isabella Proença acerca do desarranjo que havia entre a composição exalando o zeitgeist de Paula e o post. Diferente de outros briefings este foi breve: os versos deveriam bastar. Quando ela comentou sobre a silhueta do mapa de Brasília me peguei pensando em como as asas que compõe a cidade podem assemelhar-se a uma besta ou a um riso de escarnio. As figuras de resistência à frente como bradassem: "não quero mais nenhum direito à menos!". Todas as cores não se deixando apagar. É mais um belo trabalho.
P.S: Poucos dias após o post, tive a oportunidade de, enfim, assistir ao filme supramencionado. Não Amarás. Me admira que este tipo de filme siga sendo trazido ao presente como representação de um amor romântico. Em um trabalho baseado no último álbum de Duda Beat, a psicóloga Fabíola Passos comentou aqui sobre a canção Melô da Ilusão e a forma como o ato de stalkear foi, com a ampliação do uso das redes sociais, normalizada, nem sempre de uma forma saudável. O filme me recordou da obra de Milan Kundera A Vida Está em Outro Lugar com a presença do jovem e inexperiente Jaromil. Com qual intuito trazer um filme em que um personagem passa trotes, rouba correspondências, escreve cartas falsas e observa uma mulher com uma luneta? Mais que isso, o filme parece apresentar estes comportamentos como galanteios aceitáveis e a personagem Magda o contrapõe em determinado momento, mas aceita a atenção do jovem, como se, aproximando-se e seduzindo seu algoz, encontra-se poder. Após assistir ao filme, os verbos que Leoni traz em sua canção: invade, rouba soam ainda mais violentos como a absolvição de André de Camargo Aranha. Sigo reforçando os versos de Paula e agregando ao coro: Vivemos nessa decadência esperando que tudo seja melhor!